[Resumo] Um dos mais brilhantes economistas da atualidade, o sérvio-americano Branko Milanović examina em seu novo livro as obras de seis autores clássicos de diferentes vertentes (como Adam Smith e Karl Marx) sobre a desigualdade de renda. Nessa viagem de mais de dois séculos, da Revolução Francesa ao fim da Guerra Fria, ele analisa as visões de cada época a respeito da concentração de riquezas, retrata o nascimento, o posterior ostracismo e o atual ressurgimento desse debate e lança perguntas oportunas sobre as turbulências de hoje.
Em "Visões da Desigualdade: da Revolução
Francesa ao Fim da Guerra Fria", o
economista Branko Milanović promete uma história intelectual a
respeito do tema através das obras de seis autores clássicos: François Quesnay,
Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx, Vilfredo Pareto e Simon Kuznets.
Na verdade, o livro entrega muito mais do que
isso. Primeiro, porque uma boa história intelectual é também uma boa história
dos problemas sociais concretos que os autores analisados tinham diante de si.
Segundo, porque Milanović nos mostra que esses problemas são extremamente
atuais.
O livro acaba sendo uma história da modernidade sob o ponto de vista da desigualdade. Nos estudos pioneiros de Quesnay ainda vemos as classes do Antigo Regime, mas também já temos uma perspectiva tecnocrática característica do Estado Moderno, importantíssima para a história da economia.
Adam
Smith nos apresenta o capitalismo já plenamente formado, com
suas virtudes e seus problemas. Karl Marx traz para a mesa de discussão a
perspectiva das classes subalternas do capitalismo, que até então mal começavam
a desfrutar os benefícios do crescimento acelerado.
Kuznets descreve um quadro em que a
desigualdade, após crescer muito no início do período capitalista, tende a
cair, o que reflete bem a experiência social-democrata do século 20 —mas não o
momento da globalização recente.
A leitura de Milanović da obra de Adam Smith
busca distanciá-lo da versão simplista em que o autor de "A Riqueza das
Nações" seria um defensor acrítico do capitalismo. Smith abraçava, como
Quesnay, a ideia de que o progresso econômico se mede pelo nível de vida dos
mais pobres.
Embora fosse um defensor da livre
concorrência, apontava um canal pelo qual a desigualdade de classe promovida
pelo mercado poderia gerar resultados indesejáveis: os ricos sempre terão uma
chance razoável de colocar o Estado a serviço de seus interesses.
A propósito, se os defensores da globalização
neoliberal tivessem levado isso em conta nos anos 1990 e 2000, poderiam ter
notado a captura dos governos, inclusive os de esquerda, pelos apologistas da
desregulamentação financeira, um lobby poderoso com grande capacidade de
financiar campanhas e think tanks.
A incapacidade de perceber isso nos levou à crise
de 2008, o maior golpe contra as ideias liberais das últimas décadas,
o início da crise de hegemonia global em que vivemos até hoje.
Isso não quer dizer, é claro, que Adam Smith
possa ser aproximado da perspectiva "anticapitalista", seja lá o que
signifique. Só mostra que, exatamente por ter entendido corretamente os
mecanismos que tornavam a economia de mercado mais eficiente do que as outras,
Smith também percebeu momentos em que ela podia dar errado.
O que nos traz ao capítulo sobre Marx, que
facilmente poderia ser expandido e publicado como uma obra independente.
Nascido
na ex-Iugoslávia, Milanović conhece bem o pensamento
marxista e a realidade dos sistemas socialistas. Isso, por si só, já lhe
confere certa singularidade nos dias de hoje: poucos defensores ocidentais
contemporâneos do marxismo dedicaram muito tempo a ler, por exemplo, os estudos
críticos elaborados nos próprios países da antiga Cortina de Ferro.
A Iugoslávia, que desenvolveu seu próprio
modelo de socialismo de mercado, era um ponto de observação privilegiado.
É provável que essa biografia, que combina o
domínio do instrumental técnico da economia moderna, o conhecimento da tradição
marxista e a vivência em um país socialista altamente singular, explique muito
da originalidade de Milanović.
Voltemos
a Marx: uma das melhores passagens do livro oferece um corretivo à
ideia de que o capitalismo sempre geraria desigualdade crescente. Na verdade,
utilizando somente os parâmetros da teoria econômica marxista, é possível
projetar vários cenários para o futuro da desigualdade de renda no livre
mercado: em alguns, ela cresce; em outros ela, cai.
Isso é consistente com a experiência
histórica. Embora Marx tenha municiado seus críticos ao criar formulações
excessivamente simples, ele
era menos determinista do que se pensa.
A
desigualdade de renda, tal como a entendemos, não era o problema
central do pensamento marxista. O filósofo alemão obviamente se preocupava com
as condições de vida dos pobres sob o capitalismo, esse foi o problema que
inspirou seus estudos, e defendia todas as propostas reformistas que pudessem
melhorá-las. Entretanto, não acreditava em uma solução de longo prazo que não
passasse pela abolição das classes sociais e pelo advento de um novo sistema
econômico.
Aqui o contraste da perspectiva marxista com
a perspectiva social-democrata, na qual a desigualdade de renda é absolutamente
central, fica claro. A luta concreta dos trabalhadores no século 20 mostrou
que, em certas circunstâncias, é possível reduzir muito a desigualdade e elevar
muito a qualidade de vida sob o capitalismo.
Nada parecido com isso havia acontecido
quando Marx era vivo. É legítimo nos perguntarmos se o filósofo alemão tinha
como prever esses desdobramentos, em que, aliás, a influência de seu próprio
pensamento foi muito importante. A utopia socialista provavelmente ajudou a
aumentar a propensão de trabalhadores do mundo todo à ação coletiva.
De qualquer forma, se Karl Marx for
ressuscitado como inteligência artificial, vai ter que reconhecer que os
sociais-democratas provaram que as fronteiras do possível eram mais amplas do
que ele supunha.
Mesmo assim, Milanović, que sabe disso tudo,
faz bem em lembrar que a perspectiva marxista, com seu foco na estrutura de
classes do capitalismo, tem duras lições a ensinar
à social-democracia, que sofreu, e continua sofrendo, pesados golpes
desde que a globalização foi retomada no final do século 20.
O populismo nativista de extrema direta
cresceu, em boa parte, conforme as soluções sociais-democratas do século
passado foram sendo abandonadas. Na verdade, a própria ideia de "crise da
democracia" é, em grande parte, a
crise de uma democracia de perfil social-democrata.
Esse tipo de modelo tem que se mover entre
esses dois polos, permanentemente: a democracia oferece inúmeras possibilidades
aos trabalhadores sob o capitalismo, possibilidades ausentes nos regimes
leninistas, mas a estrutura econômica da sociedade moderna favorece o
crescimento, não necessariamente a justiça.
A social-democracia sempre vai ser uma
ofensiva da política contra as tendências "automáticas" do mercado.
O grande momento do livro, contudo, não é a
discussão de nenhum dos seis autores citados, mas sim o capítulo 7, em que
Milanović fala do declínio dos estudos sobre desigualdade durante
a Guerra Fria. Arrisco dizer que o coral dos clássicos está no livro
para enfatizar o quão estranho foi o silêncio sobre o assunto quando o mundo
era dividido entre os blocos capitalista e socialista.
Na discussão sobre a desigualdade nas
sociedades socialistas, Milanović joga em casa: é difícil imaginar outro
pesquisador célebre no Ocidente que possa citar com desenvoltura o economista
iugoslavo Branko Horvat, ou o sociólogo húngaro Iván Szélenyi, dois grandes
pensadores que estudaram o socialismo real.
Um dos estudos citados, de autoria de
Miroslav Janicijevic, mostrou em 1977 que, sob o socialismo, quanto mais alto a
pessoa estivesse na hierarquia do partido, maior sua propensão a dizer que não
existiam classes na sociedade. A comparação com os ricos no capitalismo é
evidente —e divertida.
Os sistemas socialistas reduziram muito a
desigualdade de renda quando extinguiram a propriedade do capital, mas daí em
diante seu foco não foi mais na igualdade salarial.
Milanović cita um discurso
de Stálin sobre a conveniência de maior desigualdade de
salários que facilmente poderia ser feito por Javier
Milei, o ultraliberal presidente argentino. E as desigualdades de
poder características da
gestão de Lênin reduziram o efeito do igualitarismo socialista.
Mesmo assim, e com todas as dificuldades de
mensuração impostas pelo autoritarismo leninista, a desigualdade socialista
parece ter sido, em geral, menor que a capitalista.
Se no Oriente os estudos sobre desigualdade
sofreram com a doutrina oficial de que as classes haviam sido abolidas, fato
contestado por alguns dissidentes, no Ocidente a ideologia oficial foi
reforçada com os resultados empíricos de Kuznets,
que mostravam uma queda da diferença de renda a partir de um certo ponto do
desenvolvimento capitalista.
O fato de que os trabalhadores podiam lutar
por melhorias salariais sem recorrer a uma revolução violenta era parte da
propaganda do sistema —e era, naquele período, verdade.
A economia ocidental, inclusive boa parte
do keynesianismo,
passou a tratar o tema da desigualdade de renda como uma questão menor.
Milanović passa muitas páginas batendo, com razão, no establishment de sua
própria disciplina por esse erro.
Afinal, esse equívoco ficou claríssimo nos
últimos anos da Guerra Fria, quando várias —mas, diga-se, muito menos do que
todas— conquistas sociais-democratas foram desmontadas, seja por governos de
orientação neoliberal, pela abertura comercial ou pela mudança tecnológica que
diminuiu o peso político da classe operária.
No epílogo, quando Milanović aborda a volta
do tema da desigualdade ao debate econômico em anos recentes, as curvas de
Kuznet já se transformaram em ciclos de Kuznets, nos quais as disparidades de
renda podem voltar a subir no capitalismo desenvolvido.
A propósito, Milanović teria feito um favor
ao leitor se tivesse passado mais tempo discutindo a abordagem teórica de Thomas
Piketty, um autor-símbolo desse novo momento do debate.
Um ponto que merece destaque para o leitor
brasileiro é a referência do livro aos economistas estruturalistas
latino-americanos (como Celso
Furtado) e a outros autores do terceiro mundo, como o egípcio
Samir Amin. Eles foram exceções à regra de ignorar a concentração de renda
durante a Guerra Fria, talvez por não viverem nos países mais diretamente
envolvidos na disputa ideológica.
Milanović admite que teses importantes dessas
escolas não se confirmaram (alguns países pobres se tornaram desenvolvidos) e
que houve um déficit de análises empíricas em algumas delas.
Mesmo assim, elogia a proposta de integrar
análise política e histórica aos estudos sobre desenvolvimento e desigualdade.
Infelizmente para o leitor brasileiro, o autor não dedica muitas páginas a esse
debate, por não se considerar especialista na obra desses pensadores.
A versão brasileira do livro consegue
reproduzir a fluidez do original, o que não é fácil. Entretanto, teria se
beneficiado do apoio de um profissional de economia, mais familiarizado com a
tradução padrão de termos clássicos.
Em alguns momentos, "rent" é
traduzido como "aluguel", ao invés de "renda". Nada que
prejudique a leitura do leigo, que talvez só ache esquisito o quanto os
economistas clássicos se importavam com os aluguéis. Mas irritará, com razão,
os especialistas.
Branko
Milanović é um dos pensadores mais originais do debate
contemporâneo —e neste livro está mais próximo de sua especialidade do que em
sua última obra, o
muito influente "Capitalismo sem Rivais" (também pela
editora Todavia).
Alguns leitores deste livro anterior podem
achar que o tema de "Visões da Desigualdade" é mais restrito,
interessante apenas para especialistas. Enganam-se: as duas obras tratam dos
mesmos grandes assuntos da modernidade, que talvez agora sejam até discutidos
com mais profundidade.
*Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra), autor de "PT, uma História" e colunista da Folha
Visões da desigualdade: Da Revolução Francesa
ao fim da Guerra Fria
Preço R$ 119,90 (352
págs.)
Autoria Branko
Milanović
Editora Todavia
Tradução Pedro Maia
Soares
Nenhum comentário:
Postar um comentário