quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Nicolau da Rocha Cavalcanti* - Proteger a proteção da democracia

O Estado de S. Paulo

A Lei 14.197/2021 não tem nada a ver com incriminação por motivos políticos, nem com redução do espaço do debate público

No dia 10 de janeiro, houve um fato em São Paulo que pode causar enorme estrago. A Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021) foi usada para constranger manifestantes que protestavam contra o aumento do valor da passagem de metrô e trens, em ato do Movimento Passe Livre (MPL). Sob a alegação de que portavam objetos com potencial ofensivo, como faca, canivete e porrete, e colocavam em risco a ordem e a segurança pública, várias pessoas foram detidas pela Polícia Militar. Depois, sete delas foram indiciadas, entre outros crimes, por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Criado pela Lei 14.197/2021, o art. 359-L do Código Penal (CP) estabelece pena de quatro a oito anos para quem “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.

Evidentemente, esse indiciamento não tem nenhuma base jurídica. Protestar contra o aumento da tarifa do transporte público não representa tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito. O recurso à violência em uma manifestação pode, em tese, constituir a prática de outros crimes, mas não a do art. 359-L do CP.

Aumentar artificialmente a gravidade penal da conduta, incluindo no inquérito crimes sem relação com os fatos, é exercício abusivo do poder. Em seu art. 27, a Lei do Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) prevê pena de detenção de até dois anos para quem “requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”.

Além de desrespeitar direitos individuais, o indiciamento pelo art. 359-L do CP gera um problema especialmente grave, de potencial alcance sistêmico: o desvirtuamento da interpretação da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Com menos de três anos de vigência, a lei que revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) e proporcionou uma mínima proteção para o regime democrático está sofrendo um duplo ataque. Usá-la para fins autoritários pode também incapacitá-la de produzir os efeitos para os quais foi criada.

O Congresso revogou a Lei de Segurança Nacional. Ninguém tem o direito de transformar a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, voltada para a proteção das instituições, em uma reedição da Lei de Segurança Nacional, cuja estrutura estava orientada para a proteção ideológica do Estado. Foi precisamente este uso de proteção ideológica, promovido pelo governo de Jair Bolsonaro para criminalizar opositores políticos, que levou o Legislativo a revogar a Lei 7.170/1983.

Quando se utiliza a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito contra manifestantes, conferindo à nova legislação um sentido antidemocrático, ela é percebida como mecanismo de perseguição política e de criminalização do direito de manifestação. Fica, assim, desmoralizada – e aqui está o perigo. Sempre, mas especialmente no momento atual, com os julgamentos do 8 de Janeiro em curso, o País necessita de uma proteção da democracia efetiva e bem compreendida. A Lei 14.197/2021 não tem nada a ver com incriminação por motivos políticos, nem com redução do espaço do debate público.

Neste cenário de tantos desafios, com a confusão tentando prevalecer sobre a razão, lembra-se que nem tudo é poder – manda o mais forte – e nem tudo é discurso – manda o mais hábil. É preciso respeitar a lei tal como foi aprovada pelo Congresso, em seu sentido de proteção da democracia. Felizmente, o Judiciário dispõe de ferramentas para avaliar de forma técnica e fundamentada – de maneira jurídica – cada situação, sem sucumbir a pressões políticas e sem cair, ele mesmo, em decisões políticas.

Uma dessas ferramentas é o chamado juízo de tipicidade, no qual se avaliam os aspectos objetivos e subjetivos de uma ação suspeita, checando se ela corresponde efetivamente ao tipo penal específico. Por exemplo, condenar alguém pelo crime do art. 359-L do CP não é um ato de arbítrio. É necessário demonstrar que a conduta da pessoa preencheu a moldura típica, objetiva e subjetiva, prevista na lei. Um parêntesis: o tema da tipicidade é de particular relevância nos crimes econômicos e empresariais, para evitar que atos lícitos sejam criminalizados.

O Judiciário tem meios de proteger a nova legislação – e espera-se que o faça exemplarmente. Mas não deixa de ser triste que um importante passo do Congresso em defesa da democracia seja manipulado, de forma tão sem cerimônia, por agentes do Estado. É a apropriação de uma conquista da sociedade para fins opostos aos previstos originalmente.

Há um longo caminho de racionalidade democrática a ser percorrido, o que inclui melhorar a formação dos órgãos estatais. Eventuais erros de interpretação são inevitáveis, mas o uso da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito contra manifestantes é uma aberração jurídica, que não apenas envergonha, mas faz soar o alerta.

*Advogado

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