Folha de S. Paulo
Constituição brasileira tem o privilégio de
José Afonso da Silva, 100 anos
Jurista público não é produto num livre
mercado. Não é vedete nem lobista, não dedica tempo à adulação de autoridade.
Não vai a encontros nem subscreve atos disparadores de conflitos de interesse.
Não só porque recusa o oba-oba da bajulação gratuita, mas porque entende e
respeita a ética
da profissão. Sabe que o problema não desaparece quando a promiscuidade se
normaliza.
Jurista público não aceita vender opinião
jurídica da qual discorda, não oferece consultoria jurídica para o fim da
democracia e não se deixa envolver em festivais
juspornográficos contra a dignidade da profissão. Não aceita oferta
para mudar de lado e não negocia valores políticos ou monetários.
Entende que elaborar argumento jurídico exige tanto fibra intelectual quanto independência moral. Sabe que a profissão jurídica privada precisa enfrentar a tensão incontornável entre o interesse particular em honorários e o compromisso sincero com a democracia constitucional e o interesse público. E que a carreira jurídica estatal obedece a tetos, não só éticos, mas remuneratórios.
O jurista público, enfim, pratica virtudes
censuradas e desencorajadas na era da advocacia lobista e da magistocracia
rentista e nepotista à luz do dia.
José
Afonso da Silva completou 100 anos e recebe homenagem da Faculdade de
Direito da USP. Sua biografia é conhecida. Trabalhou na roça, foi padeiro e
alfaiate. Fez supletivo e se formou aos 32 anos nessa faculdade onde mais tarde
se fez professor titular. Foi procurador do Estado e secretário de Segurança
Pública em São Paulo.
Candidato ao Congresso constituinte, mas sem
dinheiro para a campanha, não se elegeu. "Um grande empresário me ofereceu
dinheiro e eu recusei." Ainda assim se consagrou como cérebro jurídico
da Constituição de
1988 por ter contribuído na sua redação, como assessor jurídico de Mário Covas,
e por ter educado, através de seus livros, gerações de juristas na
interpretação desse texto.
Orgulha-se por ter ajudado Mário Covas a
construir o "fenômeno raro" de uma "Constituição razoavelmente
progressista" diante de uma hegemonia conservadora, produto de um processo
que, apesar de tudo, não conseguiu "escamotear totalmente o interesse
popular".
Esse interesse popular se traduziu na
previsão de direitos sociais e trabalhistas, no dever de reduzir desigualdades,
promover a função social da propriedade e proteger direitos territoriais
indígenas.
A quem pede uma Constituição mais
"enxuta", responde: "Querem que saiam de lá os direitos sociais,
não querem que saia o direito de propriedade. Querem que saiam o direito à
saúde, o direito do índio, o direito ao meio ambiente. Se você tirar tudo isso
ela fica muito enxuta. Mas aí o povo fica desamparado. Todo conservador quer
uma Constituição enxuta que garanta apenas seu direito, o direito da
elite".
Mas José Afonso merece ser celebrado não
apenas pela biografia exemplar de jurista público. Ele nos oferece, acima de
tudo, um símbolo de integridade numa profissão miseravelmente degradada.
A profissão jurídica que se deixa corromper a pretexto da defesa de clientes ou
de interesses indisfarçadamente particulares e corporativos não encontra na
vida de José Afonso da Silva consolo para a consciência.
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