quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O estrume do futuro - Maria Cristina Fernandes

• Gilmar Mendes se credencia para controlar a porteira

- Valor Econômico

O ministro do Supremo Tribunal Federal José Antonio Dias Toffoli ofereceu uma oportunidade ímpar a Gilmar Mendes. Ao defender o colega, alvo de uma acusação sem provas ou evidências que extrapolem a delação de um empreiteiro, o ministro blindou-se de críticas de partidarismo, sensibilizou o corporativismo da Corte e credenciou-se como líder da tropa que enfrentará o Ministério Público para conter a Lava-Jato.

A força-tarefa de Curitiba foi, até outro dia, alvo da admiração de Mendes. Na condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fez uma piada - "Antes batiam à nossa porta e a gente sabia que era o leiteiro, não a polícia" - antes de sair em defesa da ação: "Não tenho elementos para avaliar a decisão do juiz Sergio Moro, mas certamente ele deve ter tomado todas as cautelas". Foi dele a liminar, depois confirmada pela Corte, que sustou a ida do ex-presidente para a Casa Civil.


Na posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro foi além: "As competentes investigações em curso na operação Lava-Jato comprovam, de forma cabal, que o Brasil leniente e apático ficou para trás". Um mês depois, em debate em São Paulo, Mendes sairia em defesa da delação premiada: "A delação tem dado bons resultados. É inegável que não teríamos acesso a tantas informações nesse caso [petrolão] sem o instituto".

Muitas delações sem provas já haviam se acumulado na operação sem despertar os instintos de advogado-geral do ministro. Chegou a dizer que o Brasil havia institucionalizado a superação de crises: "No passado, em crises dessas dimensão, começava a se falar em nome de generais. No momento, não conhecemos nomes de generais, mas de juízes".

Entre o encanto de Mendes com a Lava-Jato e o desabafo desta semana, quando acusou o deslumbramento de jornalistas com atuação do Ministério Público ("Esses falsos heróis vão encher o cemitério"), apareceram delatores que desconhecem fronteiras partidárias. Surgiram, ainda, iniciativas que ameaçam desencavar, como mostrou André Guilherme Vieira, no Valor, operações como a Castelo de Areia, arquivadas pela origem anônima de denúncias que atingiam de tucanos ao presidente interino.

Foi precisamente a validação de provas ilícitas que levou Mendes a desancar as dez medidas anticorrupção, de iniciativa do Ministério Público. A proposta recolheu assinaturas durante oito meses e foi protocolada em março na Câmara, mas o ministro apenas agora se deu conta da 'cretinice' das propostas.

Não é a primeira vez que o ministro se desentende com a corporação na qual iniciou sua vida pública. Quando o presidente do Senado era o muro de arrimo de Dilma Rousseff, Mendes terceirizou para o procurador-geral da República uma cobrança que lhe foi dirigida em relação aos inquéritos contra o senador.

O momento, no entanto, é distinto. A crise, como o próprio ministro já definiu, está sob a égide de Judiciário e é nela que se dá a luta interna por seu desfecho, ainda que os partidos, nesta disputa, sejam mais do que figurantes. Pode ser coincidência, como assegura o MP, mas a primeira operação ('decantação') depois da nova investida de Mendes, levou à prisão um dirigente estadual do PSDB.

Não se deveu, certamente, a uma casualidade a discriminação da terceira perna da força-tarefa, a Polícia Federal, nas dez medidas anticorrupção. As disputas por competência entre a PF e o MP que já levaram manifestantes às ruas, desta vez fizeram com que, a proposta em tramitação no Congresso considerasse o teste de integridade como uma possibilidade para os agentes públicos e uma obrigatoriedade para os policiais.

O momento de dissenso interno é mais do que propício para que Mendes surja, na definição do próprio ministro sobre as tarefas por vir, como um Marquês de Pombal depois do terremoto de Lisboa, a enterrar os mortos e cuidar dos vivos.

Não parece haver dúvidas de que, se dependesse do ministro, a primeira vala a ser cavada seria a do PT. O partido tem seu registro ameaçado de cassação por Mendes. Ontem parlamentares petistas evitavam se expor abertamente contra o ministro com quem passaram a convergir nas críticas à Lava-Jato. A alcunha de 'bêbados' com a qual Mendes se dirigiu ao Congresso como um todo, pela aprovação da Ficha Limpa, outra de suas birras, não evitará que parlamentares de todos os partidos se escudem no ministro que sobe à rinha contra o ministério público.

Em seu novo figurino de algoz da Lava-Jato, a investida do ministro também ganhou a adesão de advogados que têm discutido salvaguardas para seus clientes da Lava-Jato a partir de uma nova tipificação de caixa 2. Há menos de um ano, os advogados, por meio de sua principal associação, foram acusados por Mendes, no plenário do STF, de serem manipulados pelo PT na defesa do financiamento público.

Mendes já avisou que o desastre que se avizinha em outubro provará a superioridade de suas convicções e favorecerá a reabertura do tema. Na condição de presidente do TSE, é natural que seja um dos puxadores da discussão. O cargo reforça a importância estratégica de Mendes para Temer. Herman Benjamin, ministro que herdará o processo contra a chapa vitoriosa em 2014 é conhecido no tribunal pela resistência a pressões.

Com a migração de Nelson Jobim para o setor financeiro, Mendes se consolidou como o principal interlocutor de Temer no Judiciário. A sinalização veio no final de maio quando o presidente interino, depois das gravações do ex-presidente da Transpetro, que custaram a cabeça de dois ministros do governo, antecipou seu retorno a Brasília e, num sábado à noite, recebeu Mendes para jantar.

O espaço sobre o qual Mendes avança em todos os poderes enfrentou a voz isolada do ministro Luis Roberto Barroso, que não é conhecido, na Corte, pela capacidade de agregação. A posse da ministra Carmen Lúcia, com quem Mendes se une na crítica ao corporativismo do Judiciário, deve tornar sua vida ainda mais fácil do que sob Ricardo Lewandowski.

Esta condição não lhe caiu no colo. Semanas antes do impeachment, quando o instituto que dirige discutiu, em Lisboa, "remédios institucionais para bloqueios críticos do sistema político", Mendes citou Fernando Pessoa: "O mundo tem sede de que se crie. O que aí está a apodrecer a vida, quando muito, é estrume para o futuro". Ainda não se sabe quem vai escapar do curral da Lava-Jato, mas não parece haver dúvida sobre o nome habilitado para controlar a porteira.

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