domingo, 29 de dezembro de 2019

Opinião do dia: Rodrigo Maia* – a necessidade de fazer da ação política um catalisador

A quem está na vida pública não é dado o direito de ser pessimista ou a chance de deixar-se acomodar resignado ante os obstáculos. O ano de 2019 foi muito difícil para o Brasil; 2020 será ainda mais desafiador. Mas há um legado a ser celebrado no período que fica para trás.

Com alguma surpresa, o país descobriu a diferença entre governo e governança. Abriu os olhos também para a necessidade de fazer da ação política um catalisador permanente das forças da sociedade, e não apenas um elixir para animar períodos de campanha eleitoral. Por meio do Parlamento e contando com a moderação sempre bem-vinda do Judiciário, a sociedade se organizou para melhorar, corrigir e às vezes dar novos rumos aos ímpetos reformistas de quem tentou ler o resultado das urnas de 2018 com lentes muito particulares e sob prismas unipessoais.

*Rodrigo Maia, deputado federal (DEM-RJ), é presidente da Câmara dos Deputados. “Aos trancos e barrancos”, Folha de S. Paulo, 28/12/2019

Luiz Carlos Azedo - À guisa de balanço

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Se o governo é liberal e bem-sucedido na economia, em áreas como educação, cultura e direitos humanos adotou uma orientação de ultradireita que o puxa para baixo”

O primeiro ano do governo praticamente acabou, pois o presidente Jair Bolsonaro já está em férias na base naval de Aratu, na Bahia, e nada demais deve acontecer em termos políticos e administrativos. Qual é o balanço a ser feito sobre sua gestão e a situação do país, que são coisas que se combinam? Diria que é uma situação do tipo “copo pela metade”. Os otimistas dirão que está quase cheio, principalmente em razão da economia e da inexistência de escândalos de corrupção (não é pôr a mão no fogo, mas o único problema de Bolsonaro é o caso Queiroz, que não o atinge diretamente, mesmo que venha a ser envolvido, por ser anterior ao exercício do mandato). Os pessimistas verão o copo quase vazio, por causa da política externa e dos disparates da ala ideológica do governo, principalmente na educação, na cultura, nos direitos humanos e no meio ambiente, que a maioria dos analistas aponta como ameaças à democracia no Brasil.

É um diagnóstico que precisa ser equalizado de forma objetiva. Sim, houve avanço na economia, com a política liberal do ministro Paulo Guedes, que injetou otimismo no mercado (a Bolsa de Valores de São Paulo é um indicador seguro desse otimismo). Há lenta retomada do crescimento e geração de emprego em escalas modestas, mas continuadas. Os juros continuam em queda e já são os mais baixos da história do Real. Para comércio e consumidores, foi o melhor Natal desde 2014. Convém destacar que nada disso estaria ocorrendo sem a aprovação da reforma da Previdência pelo Congresso. Houve empenho de Guedes para que isso ocorresse, portanto, lhe cabe mérito, mas os grandes artífices da aprovação da reforma foram o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o relator, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), e o ex-deputado tucano Rogério Marinho (RJ), secretário especial de Previdência e Trabalho, o negociador de Guedes.

Ainda nesse quesito, o governo tem um dever de casa por fazer: o ajuste fiscal na administração federal, pois o deficit orçamentário da União continua e as reformas emergencial, administrativa e patrimonial ficaram pelo caminho. O ambicioso pacote enviado ao Congresso, neste final do ano, tem esse objetivo, mas estava descosturado politicamente, com muitos jabutis e algumas jabuticabas. Se não for refinado, não será aprovado num ano eleitoral como o próximo. O que mais atrapalhou o governo no primeiro ano de mandato de Bolsonaro foram os embates ideológicos. Se o governo é liberal e bem-sucedido na economia, em áreas como educação, cultura e direitos humanos adotou uma orientação de ultradireita que o puxa para baixo. Por seu caráter reacionário, até mesmo setores conservadores que apoiam o governo não escondem o constrangimento que passam diante de certas atitudes fundamentalistas.

Janio de Freitas - Um final simbólico no Ano Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Indulto é abuso de poder com fins não revelados e ataque ao Porta dos Fundos diz mais do que se nota

O tema da violência armada, que no apagar do ano criou dois casos especiais, cai muito bem como encerramento do Ano Bolsonaro, em lugar daqueles balanços que mais balançam do que consolidam. O que está chamado de indulto, e é muito mais, consiste em um abuso de poder com fins não revelados no que mais importa: sua motivação. O ataque homicida e incendiário ao estúdio do Porta dos Fundos, por sua vez, diz mais do que se nota.

A libertação dos condenados das polícias Militar e Civil, militares, bombeiros e “agentes de segurança” em geral, sentenciados por crimes culposos (ditos “sem intenção de matar”), está à espera de uma pergunta: por que esse ato de Jair Bolsonaro?

Os tradicionais indultos de Natal receberam críticas iradas entre as acusações do candidato Jair Bolsonaro a causas de criminalidade. Assumia o compromisso de extingui-los. Pouco antes da posse, embaraçou Michel Temer, que buscava incluir nos seus indultados alguns presos por corrupção. Como lembrado agora, Bolsonaro disse então que, com ou sem corruptos, Temer faria o último indulto presidencial.

De lá para cá, o que houve de novo, na conexão de “agentes da segurança” e criminalidade, foi apenas a verificada proximidade dos Bolsonaro com milicianos. Com mais clareza, até agora, proximidade intermediada pela integração de milícias e parte da Polícia Militar. E na qual o matador “culposo” Fabrício Queiroz e o ex-capitão Adriano Nóbrega, dado como chefe do “escritório do crime” de morte, são os citados costumeiros, mas não os únicos.

Vinicius Torres Freire - O ano em que arrancaram nosso olho

- Folha de S. Paulo

Uma crônica do final do ano de crise de 1983, uma paisagem com ruínas e esperança

O ano de 1983 encerrou o pior triênio recessivo de que se tem registro no Brasil. Mas política econômica era assunto perdido no meio das páginas da Folha daquela época, entre Natal e Ano-Novo. O jornal fazia campanha pelas eleições diretas, assunto que dominava as manchetes, animadas com o possível fim da ditadura. Era uma paisagem com esperança e ruínas.

Na Primeira Página, a notícia mais impressionante do final de 1983 parece agora a do linchamento do ex-presidiário Tiãozinho, 22, na tarde de Natal. Pouco antes de ser morto, havia assassinado um peixeiro que lhe negara um empréstimo de 3.000 cruzeiros (dinheiro que dava para comprar 12 exemplares da Folha).

Depois do linchamento, “a favelada F.S.S. tentou extrair o olho esquerdo do egresso [ex-preso] com uma chave de fenda”. Tinha “bronca” do morto, que “aprontava” no bar do marido dela.

No mais, a crise social quase não aparecia ou era “fait divers”: “Desempregado oferece rim em troca de um trabalho”. “Diretas ou explosão social, alerta Ulisses”, o deputado federal Ulisses Guimarães (1916-1992), o “Senhor Diretas”, condestável da Nova República. Não teve nem uma coisa nem outra.

Bruno Boghossian – Um ano fake

- Folha de S. Paulo

Presidente se especializou em divulgar informações falsas para justificar absurdos

Em maio, Jair Bolsonaro ultrapassou mais um limite da realidade. Ao insistir na retirada de radares das estradas, ele disse que o controle de velocidade era uma das causas da violência no trânsito. “Prejudica. Causa mais acidente, até”, declarou.

Não era lapso ou distorção. Era mentira. O governo surfou nessa lorota e removeu os equipamentos móveis. Os acidentes não diminuíram, é claro. Ao contrário, houve aumento no número de mortos e feridos nos meses seguintes, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal.

O presidente se especializou em divulgar informações nitidamente falsas para embasar decisões disparatadas. Esse método, como se vê, tem consequências práticas sobre as políticas públicas e a sociedade.

Hélio Schwartsman - Uma década mágica

- Folha de S. Paulo

Em 'Tempo de Mágicos', Eilenberger esmiúça o pensamento e as vidas de quatro grandes filósofos

Para quem gosta de filosofia e vê com preocupação o momento em que vivemos, recomendo “Tempo de Mágicos”, de Wolfram Eilenberger. O autor escolhe uma década, a de 1919 a 1929, e, a partir de seus eventos, esmiúça o pensamento e as vidas de quatro grandes filósofos: Walter Benjamin, Martin Heidegger, Ernst Cassirer e Ludwig Wittgenstein.

Explicar a obra entremeando-a com muita biografia é uma fórmula que está se tornando cada vez mais popular. A principal razão para isso é que ela funciona. Permite abordar as abstrações de sistemas de pensamento por vezes herméticos, dando-lhes enredo e ritmo de romance, especialmente no caso de filósofos que tiveram a vida atribulada.

O blend de Eilenberger é pesado. Entre seus autores, há dois que entram na lista dos mais difíceis da história da filosofia (Heidegger e Wittgenstein) —não que os outros sejam “fáceis”— e dois cujas biografias renderiam eletrizantes séries da Netflix (Wittgenstein e Benjamin).

Vera Magalhães - 2013, o ano que mudou a década

- O Estado de S. Paulo

Jornadas de junho foram prenúncio do tsunami que viria em seguida, com a Lava Jato

“Infelizmente assinei a lei que criou a delação premiada.” O sincericídio foi cometido por Dilma Rousseff durante palestra proferida em Londres em 5 de maio de 2018, dois anos depois de ser apeada da Presidência da República. A síntese dos anos 10 do século 21 no Brasil é, também, a da ascensão e queda da primeira mulher a ser eleita e reeleita presidente do País, justamente no ano inaugural da década. E o ano da virada entre uma coisa e outra foi justamente aquele em que Dilma assinou a lei pela qual viria a se lamentar: 2013, quando pegamos o desvio que nos trouxe até aqui.

As chamadas "jornadas de junho" explodiram, sem que houvesse qualquer aviso prévio, aparentemente por um motivo banal: o aumento de R$ 0,20 no preço das passagens de ônibus em São Paulo. Dilma estava, então, no auge de sua popularidade. Em abril, tinha 65% de avaliação ótima ou boa, segundo o Datafolha. As eleições do ano seguinte eram consideradas um passeio pelo entorno da petista, então ainda vista como uma gerentona que havia feito uma “faxina” no próprio governo, afastando sem hesitar ministros acusados de desvios e promovendo uma limpeza na Petrobrás.

Os protestos se alastraram pelo País como um rastilho de pólvora, levando milhões às ruas com uma pauta difusa, em que começava a aparecer uma insatisfação geral com os políticos, os serviços públicos e de má qualidade e a corrupção. A lei das delações, sancionada por Dilma em agosto, foi uma tentativa do Congresso e da presidente de “limpar a barra” com os que foram às ruas, e, curiosamente, viria a ser peça-chave no outro fato definidor da década: a Lava Jato.

Carlos Melo* - Mesmo thriller, segunda temporada

- O Estado de S.Paulo

Ao longo do ano, o mercado cantou “só quero saber do que pode dar certo”. Mas há de admitir que muito tempo se perdeu

O otimista rejubila-se com a reforma da Previdência enfim aprovada pelo Congresso Nacional. Também aponta a inflação sob controle, os mais baixos juros e a retomada econômica que, tímida, dá o ar da graça. É melhor ser alegre que ser triste. E é necessário justificar apostas (frustradas), feitas após a eleição. Ao longo do ano, o mercado cantou “só quero saber do que pode dar certo”. Mas há de admitir que muito tempo se perdeu.

Os mais rigorosos sabem que o ano poderia ter sido melhor. Rejubila-se o otimista porque o ano foi bom somente por não ter sido pior. Para um primeiro ano de governo, o presidente Jair Bolsonaro desperdiçou a lua de mel já na noite de núpcias: nos discursos de posse, amarrou-se ao mastro do sectarismo e ao gueto eleitoral. Não atinou para a obrigação de ser “presidente de todos”, foi estreito. Abusou do personalismo, desprezou a impessoalidade republicana; transformou a família no centro do governo. Não percebeu que deixara de ser deputado do baixo clero, da pauta de costumes, da crítica kitsch ao socialismo; da política externa incapaz de diferenciar interesses de ideologias.

De fato, Bolsonaro prometeu – e tem entregue – uma nova forma de fazer política: a não política, que troca o diálogo pela truculência. Quase nada construiu. Ganhou fama no planeta soando arrogante; isolou o País do continente; colocou em risco relações com a China, os árabes, a maioria da Europa. Agarrou-se a Donald Trump com paixão e indisfarçada submissão – política e estética. Na ciência, basicamente, retrocedeu ao terraplanismo; no meio ambiente, o descaso e o estímulo às piores práticas bateram recordes diários de constrangimento.

Monica de Bolle* - A década da ansiedade

- O Estado de S. Paulo

Os anos 2010 foram marcados pelo aprofundamento da polarização política como forma de lidar com o medo daquilo que não se sabe

"A ansiedade é a tontura da liberdade"
Soren Kierkegaard

Para alguns, a década prestes a se encerrar foi de rupturas. Na economia, a crise global de 2008 redefiniu os rumos da política econômica ao longo de todo o período transcorrido entre 2010 e o fim de 2019: velhos dogmas caíram por terra, como o de que inflação seria a consequência inevitável da emissão de moeda em grandes quantidades que ainda fazem os bancos centrais nos países desenvolvidos. Na política e nas relações internacionais, o repúdio à globalização, que parecia bem estabelecida durante os anos 1990 e o início dos anos 2000, fez ressurgir o nacionalismo estridente em seus diversos matizes. Na vida social e política, o alcance das mídias sociais contribuiu para exacerbar a polarização de arranjos, práticas e opiniões, abalando instituições que haviam sido concebidas para facilitar a convergência ao centro e à moderação. Tudo isso pode ser interpretado como ruptura. Mas tudo isso também pode ser interpretado como uma vertigem da liberdade, fruto de uma ansiedade causada por um mundo em contínua transformação.

A constatação de que as políticas econômicas não funcionavam mais como imaginávamos foi fonte de grande ansiedade ao longo da década. Como impedir que o abalo financeiro de 2008 se transformasse em profunda depressão econômica, tendo os instrumentos macroeconômicos se esgotado: os juros reduzidos a zero, a política fiscal com pouca margem de manobra ante dívidas elevadas? A ansiedade provocada por essas perguntas levou, no início da década, a uma profunda transformação na maneira de se pensar e de se fazer política monetária. Vieram os afrouxamentos quantitativos – as políticas de emissão monetária em grande volume pelos bancos centrais; vieram, também, as antes impensadas taxas de juros negativas. A ausência de pressões inflacionárias nos países desenvolvidos proveniente dessas medidas revolucionou a macroeconomia. Economistas e gestores de política econômica foram forçados a repensar todo o arcabouço teórico que sustentara durante décadas o que parecia ser um entendimento profundo dos canais de transmissão e dos efeitos associados ao uso desse ou daquele instrumento na economia. Esse esforço de reformulação está em curso, e isso é algo positivo. Há muito o que repensar na macroeconomia.

Era da polarização: Hegemonia das ruas, redes e da antipolítica

Bolsonarismo e lulismo alimentam-se mutuamente, e confronto dessas forças extremadas vai dominar a política por muito tempo, ao lado do enfraquecimento dos partidos.

Jerônimo Teixeira | O Estado de S. Paulo

“Pela primeira vez não vamos ter um candidato de direita na campanha”, celebrava o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em um evento no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um ano antes da eleição que consagraria Dilma Rousseff como sua sucessora. “Não é fantástico isso? Vocês querem conquista melhor do que numa campanha neste País a gente não ter nenhum candidato de direita?” Ficava implícito que o candidato tucano em 2010, José Serra, não era de direita.

Lula nem sempre seria tão generoso com o PSDB: em um comício pela reeleição de Dilma na campanha de 2014, chegou a comparar os tucanos aos nazistas e a Herodes. A retórica petista mais costumeira tentava caracterizar o PSDB como o completo oposto dos governos de Lula e Dilma – era o partido da elite que não gostava de ver pobre em aeroportos e faculdades.

Lula mostrou-se mais razoável nas declarações que deu no Ipea em 2009: de fato, PT e PSDB têm óbvias diferenças, mas não são antípodas ideológicos. A ideia de que a ausência da direita em um pleito presidencial seja algo desejável, de outro lado, embute um nítido componente autoritário: Lula afirmava, em essência, que a democracia mais saudável é aquela em que só um campo político está representado. E agora a tal direita que esteve ausente nas eleições de 2010 chegou ao poder na sua versão mais agressiva: Jair Bolsonaro. Essa virada de um extremo ao outro define a trajetória política brasileira na década que se encerra.

Já se dizia que o País saiu dividido do pleito de 2014, quando Dilma reelegeu-se no segundo turno com uma estreita vantagem de cerca de 3,5 milhões de votos em relação a Aécio Neves. Mas a polarização só se tornou realmente abissal com a emergência recente de Bolsonaro.

Zander Navarro e outros - Rumo à Amazônia mais sustentável

Região precisa de iniciativas realmente viáveis, com resultados mais efetivos e rápidos

Zander Navarro, Alfredo Homma, Antônio José Elias A. de Menezes e Carlos Augusto M. Santana* | O Estado de S.Paulo

Eis um fato categórico: este será um ano que jamais esqueceremos. São incontáveis os acontecimentos memoráveis, alguns trágicos, muitos outros bizarros. Sendo impossível comentar sobre tantos eventos extraordinários, destacam-se os desastres ambientais.

Começaram com o dantesco rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, com centenas de vítimas. A partir do meio do ano, as notícias, igualmente apocalípticas, sobre incêndios que sugeriam o fim do mundo na Amazônia. E, recentemente, a assombrosa contaminação de óleo nas praias nordestinas, sobre a qual mal identificamos a origem. Três tragédias que demonstram a improvisação do País para lidar com situações ambientais de maior gravidade.

Especificamente sobre a Amazônia, acesos debates vieram à tona sobre as medidas que garantiriam mais sustentabilidade àquele bioma. É discussão urgente, pois somente assim se irá construir um caminho consistente a seguir. A região sempre foi irresistivelmente sedutora, pois é misteriosa e gigantesca, fomentando teorias e especulações. Afinal, isoladamente, seria o sétimo país em extensão, abrigando dez vezes mais espécies de peixes do que em toda a Europa, e onde convive um quarto das borboletas do planeta! Seria o “celeiro do mundo”, asseverava Von Humboldt em 1800; depois, o “inferno verde”, na conhecida expressão de Alberto Rangel consagrada em 1904. E ganhou manchetes internacionais em 1975, quando o livro de Irwin e Goodland introduziu a possibilidade de transformar a região num “deserto vermelho”, resultante dos desmatamentos e queimadas.

Merval Pereira - Caminho alternativo

- O Globo

Vetos sugeridos por Moro, e não aceitos pelo presidente, mostram que relação de Bolsonaro e ministro está abalada

A lei anticrime sancionada pelo presidente Bolsonaro traz avanços importantes no combate ao crime organizado, com reflexos na segurança pública, não sendo estranho, portanto, que o ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro tenha decidido dar mais ênfase a essa missão de seu ministério.

Trata-se de um movimento auto-defensivo de quem precisa encontrar espaços de atuação depois que a mesma lei limitou o combate à corrupção, ou pelo menos estabeleceu parâmetros mais estreitos para esse combate.

Não tem sentido dizer que o juiz de garantias, por si só, seja um atalho para favorecer a impunidade, mas o conjunto da obra provavelmente vai dificultar o trabalho do Ministério Público e da Polícia Federal no combate à corrupção, favorecendo, portanto, a impunidade.

Implantado em meio aos processos já em curso, certamente o juiz de garantias vai causar pelo menos embaraços, pois terá que começar do zero seu trabalho, e condições de impugnar provas já obtidas, de não permitir novas investigações. A simples mudança do juiz de investigação pode influir no resultado final do inquérito.

Elio Gaspari - Não existe terrorismo light

- O Globo | Folha de S. Paulo

Ataque contra o Porta dos Fundos tem a mesma marca dos que agiam em 1968

Na madrugada do dia 24, quatro pessoas atiraram dois coquetéis molotov contra o prédio onde funciona a produtora de vídeos do grupo Porta dos Fundos. Nos últimos anos, pelo menos três sedes do PT foram atacadas e até hoje ninguém foi preso. Em março do ano passado, a vereadora Marielle Franco e seu motorista foram executados numa rua do Rio. O ex-sargento da PM Ronnie Lessa está preso, acusado de ser dono do braço tatuado que disparou os tiros, mas guarda obsequioso silêncio.

O atentado que matou Marielle segue o padrão de execuções das milícias. Já os molotovs atirados contra o prédio do Porta do Fundos e as sedes do PT têm a marca do terrorismo light dos grupos de direita que agiam em 1968. Esse foi um terrorismo interessado em estimular a radicalização, preocupado em não fazer vítimas.

Em 1968, havia uma esquerda assaltando bancos e praticando atos terroristas, inclusive matando gente. Hoje, esquerda terrorista não há. A direita armada daquele tempo agiu sobretudo em São Paulo e no Rio. Em São Paulo, era coordenada por um maluco que dizia ter conexões com o Palácio do Planalto. Comprovadamente, ele tinha ligação com um general da reserva e liderava 14 policiais militares.

No Rio, o negócio era outro. Desde 1962, quando um oficial do Exército fez a bomba que explodiu à noite numa exposição industrial da União Soviética, todos os atentados tiveram a participação de militares. (Em 1968, o mesmo oficial jogou uma bomba no jardim da embaixada russa.)

Esses militares eram avulsos, mas, a partir da criação do Centro de Informações do Exército, alguns deles aninharam-se por lá. Em abril de 1968, militares sequestraram os irmãos Rogério e Ronaldo Duarte e os levaram para um quartel, onde foram torturados. (Duas semanas depois, o serviço de inteligência do Exército americano identificou os sequestradores mas, passados 51 anos, o crime continuou insolúvel.)

Em junho de 1968, os legionários aninhados no CIE decidiram agir contra teatros: “A gente invadia, queimava, batia, mas nunca matava ninguém”, contou o veterano coronel Luís Helvécio da Silveira Leite, que ficou nesse ramo até 1977.

O Exército combatia um terrorismo letal de esquerda, mas não via aquele que estava entre a tropa. Nas palavras do general Antônio Carlos Muricy, um dos grandes chefes militares da época: “Nós ouvíamos falar nesses atentados, mas a informação dada ao ministro era de que não se tratava de coisa do Exército, e muito menos do CIE”.

Esse tipo de terrorismo evoluiu para bombas em livrarias e bancas de jornal, até que em 1981 um capitão do DOI-Codi foi ao show do Riocentro e uma bomba explodiu no colo do sargento que o acompanhava, matando-o. O resto é história. Uns poucos militares anexos à repressão política meteram-se com bicheiros. Hoje, o jogo do bicho é coisa de freiras se for comparado às milícias e ao Escritório do Crime do Rio de Janeiro.

A hierarquia militar tolerou o terrorismo light contra teatros vazios e bancas de jornal fechadas. Tolerou também espancamentos de atores, um sequestro de bispo e o assassinato da secretária do presidente da OAB. O preço dessa tolerância foi esgarçamento da disciplina militar.

No dia 12 de outubro de 1977, quando o presidente Ernesto Geisel demitiu o ministro do Exército, general Sílvio Frota, oficiais do CIE estocaram dezenas de coquetéis molotov para atacar o Palácio do Planalto. Se ousassem, tomariam bala, mas não tentaram e no dia seguinte, respeitosamente, apresentaram-se ao novo ministro.

Dorrit Harazim - Pontos na curva

- O Globo

Raya El-Hassan é a única a emergir mais ou menos intacta dos protestos que transformaram as ruas de Beirute em assembleia geral permanente

Ela é chamada de “Erin Brockovich da Eslováquia”, referência à combativa ativista americana que em 1993 derrotou o conglomerado elétrico Pacific Gas and Electric Company numa causa ambiental considerada perdida. (O papel desta dona de casa que arregaça as mangas valeu a Julia Roberts o Oscar de melhor atriz no filme homônimo de 2000). A versão 2019 de Erin chama-se Zuzana Caputová, é advogada e, aos 45 anos, tornou-se a mais jovem presidente da história da Eslováquia.

O ativismo de Caputová a fez lutar por sete anos a favor do fechamento de um aterro sanitário tóxico na sua cidade natal de Pezinok e contra a construção de outro a menos de 300 metros de área residencial. Estava grávida ao se juntar ao movimento e na hora do parto ainda assinou relatórios. “A maternidade me levou ao ativismo”, diz. Não desistiu até ser ouvida perante a Corte Europeia de Justiça, que lhe deu ganho de causa. Desde a chamada “Revolução de Veludo” de 1989 na antiga Tchecoslováquia não se via um caso de vitória cívica tão relevante no país.

Míriam Leitão - Medo e ridículo no ano da cultura

- O Globo

Dois membros da ABL contam suas impressões sobre esse tempo de ataques à cultura que levam ao retrocesso e ao medo da censura, em pleno 2019

Na cultura, o ano foi de reaparecimento de velhos fantasmas. A censura “mostrou suas garras”, lembra o poeta Geraldo Carneiro. O escritor Antonio Torres alerta que “as apreensões estão no ar”. No horizonte desse tempo que começou em 2019, há desde o ridículo e o emburrecimento nas decisões dos censores, até a autocensura. “Penso no que o medo vai ter e tenho medo, que é justamente o que o medo quer”, disse Antonio Torres, citando o poeta português Alexandre O’Neill. No último programa do ano na GloboNews, decidi me cercar de inteligência literária.

Geraldo Carneiro surgiu como poeta ainda muito jovem, no final dos anos 60, fazendo parcerias com nomes consagrados, como Vinícius. Virou autor de teatro, tradutor de Shakespeare. Nasceu em Minas e veio logo para o Rio, porque o pai trabalhava com JK. Antonio Torres nasceu numa pequena cidade na Bahia chamada Junco, hoje Sátiro Dias. Cresceu num estado governado por Otávio Mangabeira e tendo como secretário da Educação Anísio Teixeira. Uma de suas professoras pedia que os alunos lessem em voz alta. Poesia, de preferência. Ele acha que deve o fato de ser escritor a essa origem que tinha bom governo e bons professores. As duas histórias são diferentes e iguais. Foram os livros e as boas leituras que os transformaram em bons escritores. Os dois estão na ABL. Geraldo Carneiro enfrentou um caso de censura este ano que ilustra o tempo em que vivemos.

— Eu estava traduzindo e adaptando Otelo, sob o ponto de vista de Iago, e havia uma semelhança incrível com uma grande personalidade da vida atual. O personagem é um oficial de baixa patente que não consegue promoção, fica ressentidíssimo e ameaça destruir a República de Veneza. Pelas semelhanças sugeriram que eu suprimisse este texto. Eu chiei, naturalmente. A gente entrou numa máquina do tempo. Já vivi uma ditadura — diz.

Antonio Torres também se espanta com o retrocesso e lembra que é de uma geração que “venceu muitas paradas”.

Um ano de avanços, retrocessos e freios

Estilo de conflito permanente marcou relação inusual com Congresso, onde agenda de costumes foi barrada, e traço ideológico levou à deterioração em áreas como Cultura e Educação

Paulo Celso Pereira | O Globo

RIO — Ao iniciar seu discurso de posse no Congresso Nacional, em 1º de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro agradeceu aos brasileiros que lhe confiaram a missão de governar o país em um período de “grandes desafios” e “enorme esperança”, e partilhou a responsabilidade com os parlamentares presentes: “(Vou) governar com vocês”. A despeito da promessa, a gestão do presidente não foi marcada por busca de consensos, e sim por um clima de enfrentamento permanente com outros poderes e instituições da sociedade civil. O ambiente belicoso não impediu o governo Bolsonaro de terminar seu primeiro ano com avanços em uma agenda econômica fundamental para pavimentar o fim da recessão, mas contribuiu para que ele não deixasse marcas relevantes em outras áreas.

Com uma maioria reformista e não alinhada ao lado mais ideológico da agenda presidencial, o Congresso definiu os rumos da reforma da Previdência e barrou a pauta de costumes. Ao longo do ano, ampliou seu controle sobre o orçamento e impediu canetadas presidenciais que tentavam desestruturar políticas públicas consolidadas nas últimas três décadas. Em boa medida, o sistema de freios e contrapesos entre os poderes da República funcionou. Ainda assim, retrocessos acabaram ocorrendo sobretudo nas áreas do meio ambiente, cultura e educação. Às vésperas de um novo ano, paira a dúvida sobre qual será o peso de cada uma dessas agendas — a reformista e a obscurantista — em 2020.

— Se o governo focar na agenda de reformas econômicas e sociais, terminará 2020 com um resultado até melhor que o projetado. Mas se a agenda ideológica prevalecer, será o que ocorreu este ano, quando tínhamos a previsão de crescer 2,5% e terminamos crescendo 1%. A gente espera é que essa agenda econômica, que também é social, porque diminui desigualdade e gera empregos, prevaleça. A agenda mais ideológica limita investimentos externos — avalia o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

O cerne da reforma da Previdência foi a instituição de uma idade mínima (de 65 anos para homens e 62 para mulheres) para se ter acesso à aposentadoria. Bolsonaro rejeitou a proposta que já havia sido apresentada no governo Temer e entregou seu texto ao Congresso no fim de fevereiro. Com dificuldade para estabelecer uma base aliada, o governo viu a reforma avançar após Rodrigo Maia assumir a tarefa de costurar o apoio dos parlamentares, atuando em conjunto com o Ministério da Economia.

Após idas e vindas, o texto foi promulgado no início de novembro, excluindo pontos considerados inicialmente importantes pela equipe econômica, como a transição para um sistema de capitalização e a inclusão de estados e municípios, mas ainda assim garantindo uma economia projetada de mais de R$ 800 bilhões nos próximos dez anos. Na esteira da reforma, o Banco Central iniciou no fim de julho um ciclo de derrubada na taxa básica de juros, reduzindo-a de 6,5% para a mínima histórica de 4,5%. O desemprego, no entanto, pouco regrediu e ainda atingia em novembro 11,9 milhões de brasileiros. Sinais de uma retomada ainda tímida da economia. O índice Ibovespa chegou ao recorde histórico de pontuação (117 mil pontos) na última quinta.

— A reforma não é a ideal, não atinge estados e municípios, mas foi essencial para consolidar esse ciclo de corte de juros. O ponto mais preocupante é que demorou muito para avançar nas outras agendas de ajuste fiscal e na reforma tributária — destaca Zeina Latif, economista-chefe da XP.

Onde o Ano foi perdido
Nas pastas de Educação, Cultura e Meio Ambiente, o sentimento é de ano perdido. No primeiro caso, a troca de cadeiras constante impactou o funcionamento de áreas fundamentais. Abraham Weintraub, que substituiu Ricardo Vélez Rodriguez, pautou sua gestão por ataques às universidades públicas, a estudantes e aos governos anteriores. As medidas concretas para reverter o fraco desempenho da educação nas avaliações globais não vieram.O projeto mais ambicioso, o Future-se, que tinha o objetivo de injetar recursos privados nas universidades federais, foi rejeitado pelas principais escolas. Em 2020, mais conflitos à vista: o Congresso terá de chegar a um acordo com o Executivo sobre as regras do novo Fundeb, principal instrumento de financiamento da educação básica.

Por que a pauta conservadora travou no Congresso

Reforma da Previdência se tornou prioridade e fez até o governo deixar de lado agenda de costumes que se anunciava como marca de Bolsonaro

Natália Portinari | O Globo

BRASÍLIA — Setores conservadores da sociedade, que ajudaram a eleger o presidente Jair Bolsonaro, defendem alterações legislativas na área de costumes, como a restrição do aborto no Brasil e leis que controlem o conteúdo do que é lecionado nas salas de aula. Essa agenda, porém, não avançou em 2019, pois tanto o governo quanto o Congresso elegeram a reforma da Previdência como a prioridade, deixando de lado bandeiras caras ao conservadorismo.

Deputados defensores da pauta conservadora buscam minimizar a derrota, capitalizando avanços fora do Congresso. A bancada evangélica, composta por deputados ligados a igrejas, concentrou esforços em outras áreas, como o Judiciário. Silas Câmara (Republicanos-AM) deu o tom ao dizer em março, quando foi eleito presidente da frente evangélica, que não era o momento para a pauta de costumes no Congresso. Nove meses depois, ele acredita que, ao contrário do que se diz, essa agenda avançou, mesmo que isso não se traduza na elaboração de leis:

— Só funciona para as pessoas (a pauta de costumes) se for lei? Estão fazendo uma avaliação errada sobre a pauta de costumes.

Segundo ele, o diálogo do Supremo Tribunal Federal (STF) com a frente evangélica evitou com que fosse pautado o julgamento para debater a descriminalização das drogas em 2019. No julgamento em que a prática de homofobia foi considerada equivalente ao crime de racismo, Câmara enxerga outra vitória: “um acórdão que garante liberdade de culto e de expressão".

— A Bíblia diz que você paga pelo que faz e o que deixa de fazer. Foi nosso diálogo com o STF que fez com que não fosse pautada a questão das drogas — afirma o deputado.

Proposições legislativas que eram esperadas no início do ano, porém, não foram levadas adiante. A ministra Damares Alves, por exemplo, disse no fim de 2018 que elaboraria uma nova versão do Estatuto do Nascituro, desincentivando mulheres estupradas a abortar. Não foi para frente. Ela apoiou ainda a criação de uma frente parlamentar pelo ensino domiciliar, outro projeto parado mesmo depois de o governo ter enviado um texto ao Congresso.

O fundador do movimento Escola sem Partido, Miguel Nagib, disse no meio do ano que o grupo ia parar suas atividades, diante do trâmite paralisado do projeto de lei no Congresso. A proposição tinha como finalidade proibir “propaganda político-partidária” na sala de aula.

Aceno fiscal às igrejas
Para o líder eleito do DEM na Câmara, Efraim Filho (PB), a crise interna no PSL, partido do presidente até o fim de 2019, também fez com que a agenda conservadora de costumes não fosse prioridade do Legislativo. No partido, estão alguns de seus defensores mais fervorosos. O Parlamento, então, focou na agenda econômica.

— Acredito que o governo demonstrou que ele delegou ao Parlamento a construção da agenda prioritária do Brasil, e o Parlamento optou por uma agenda econômica — diz Efraim.

O deputado Silas Câmara aponta também ações do Executivo que, para ele, são um avanço da “pauta de costumes”. Uma é a militância do chanceler Ernesto Araújo com países cristãos para defender a liberdade religiosa em países onde evangélicos e católicos são perseguidos por outros grupos. Está agendada para o ano que vem uma viagem de líderes de igrejas brasileiros a países árabes para debater o assunto, diz o líder da bancada.

Neste ano, uma das prioridades da bancada evangélica foi a alteração de regras tributárias para igrejas. O governo Bolsonaro fez duas alterações importantes: acabou com a exigência de que cada templo tivesse um CNPJ próprio (agora, o da sede pode ser usado nas filiais) e aumentou o teto de R$ 1,2 milhão para R$ 4,8 milhões para organizações dispensadas de apresentar declarações trimestrais.

Sem base aliada, governo foi obrigado a reeditar propostas

Falta de apoio também fez Planalto recuar em temas como a legislação armamentista e a reforma administrativa

Isabella Macedo | O Globo

BRASÍLIA — Em seu primeiro ano como presidente da República, Jair Bolsonaro acumulou repetições de decretos e medidas provisórias. Sem uma base consolidada no Congresso, ele não conquistou apoio suficiente para algumas de suas propostas e teve que reembalar os mesmos temas, refazendo e reenviando medidas para tentar valer o poder de sua caneta. Só para tentar flexibilizar porte e posse de armas, foram nove decretos — que passam a ter validade imediata assim que editados pelo Executivo.

Publicado ainda em janeiro, o primeiro deles acabou revogado meses depois. O ato ampliava a posse de armas, deixava de exigir a comprovação da necessidade da posse e dobrava a validade de licenças. Foi revogado depois de o Senado decidir sustar a medida e para evitar que a Câmara enterrasse o tema de vez.

O segundo decreto durou duas semanas, sendo alterado por um novo ato graças à polêmica gerada em torno da permissão da compra de fuzil. Ainda sob críticas, Bolsonaro assinou mais quatro medidas em junho, fatiando propostas anteriores. Novos decretos foram assinados em agosto e setembro. Um projeto de lei que fazia mudanças no Estatuto do Desarmamento também foi enviado para o Congresso. Da proposta original, pouco restou no que foi aprovado pelos deputados, limitando as flexibilizações a colecionadores, atiradores e caçadores (CACs).

Vai e vem nos ministérios
Bolsonaro insistiu ainda em reeditar medidas provisórias para organizar órgãos federais. As MPs também têm validade imediata, mas precisam ser validadas pelo Congresso em até 120 dias. Ao organizar seu ministério em janeiro, Bolsonaro passou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda (atual Economia) para a pasta da Justiça. O Congresso desfez a mudança em maio.

Nesta mesma MP, a Funai e a atribuição de demarcação de terras indígenas também eram remanejadas, o que também foi rejeitado pelo Congresso. Em junho, porém, uma nova MP transferia novamente a demarcação para a pasta da Agricultura.

Houve reação no Legislativo e no Judiciário. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, anunciou que devolveria a parte da matéria que tratava das demarcações, pois a Constituição proíbe a reedição de MPs no mesmo ano. No STF, o ministro Luís Roberto Barroso suspendeu a eficácia cinco dias após a edição. Em agosto, a decisão foi referendada com um voto duro do decano da Corte, Celso de Mello:

— O comportamento do atual presidente, revelado na reedição de medida provisória (...) traduz uma clara, inaceitável transgressão à autoridade suprema da Constituição e representa uma inadmissível e perigosa transgressão ao princípio da separação de poderes.

Depois da derrota no STF, Bolsonaro voltou a tentar mudar estruturas de governo por MP ao transferir o Coaf para o Banco Central (BC) e rebatizá-lo como Unidade de Inteligência Financeira (UIF). O Congresso, desta vez, aceitou manter a mudança no destino, mas manteve o nome de Coaf.

Na semana passada, o GLOBO mostrou que Bolsonaro é o presidente que mais teve MPs barradas pelo Congresso no primeiro mandato desde 2003. Entre as 24 MPs cujo prazo já expirou, 50% foram rejeitadas. Esse índice foi menor com Temer (29,5%), Dilma (20%) e Lula (1,8%).
— É um governo que legisla como sempre, mas perde como nunca. Tem sofrido derrotas em coisas que não são comuns à lógica da governabilidade do Brasil — avalia Humberto Dantas, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp).

Após rejeições de projetos, excludente de ilicitude vira indulto de Natal

Isenção de punição para agentes de segurança empacou na Câmara e entrou em decreto natalino

Isabella Macedo | O Globo

BRASÍLIA — Promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro, a isenção de punição para agentes de segurança em conflito — a chamada excludente de ilicitude — foi um dos projetos enviados mais de uma vez ao Congresso que não conquistou apoio suficiente para aprovação no Congresso. A medida inicialmente fazia parte do pacote anticrime do ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), apresentado em fevereiro. O grupo de trabalho na Câmara, que fez uma primeira análise do pacote, retirou essa medida em setembro, e a decisão foi mantida nas outras fases de tramitação.

Sem uma base aliada consolidada no Congresso, o presidente teve que reembalar alguns temas, reeditando e refazendo propostas, para tentar valer o poder de sua caneta.

Em novembro, então, o governo enviou um novo texto para tentar emplacar a excludente para militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). A proposta, porém, nem começou a tramitar e já enfrenta rejeição na Câmara.

Diante do risco de ver o projeto empacar no Congresso, o presidente decidiu, então, tentar emplacar medida com o mesmo intuito por meio do decreto de indulto de Natal, editado na semana passada. Bolsonaro decidiu conceder o benefício a agentes de segurança e militares em atuação na GLO para o crime de “excesso culposo”, quando a reação foi desproporcional à ameaça. A medida ainda incluiu crimes culposos desde que o agente já tenha cumprido um sexto da pena, e vale neste caso mesmo para atos praticados em dias de folga.

O que a mídia pensa – Editoriais

O que dizem as ruas – Editorial | O Estado de S. Paulo

O ano de 2019 foi marcado por grandes protestos em diversos países da América Latina. Governos caíram ou se viram obrigados a fazer concessões para não balançar, tamanha a pressão vinda das ruas. Cada país enfrentou sua crise particular, motivada por questões locais, mas é possível, na maioria dos casos, observar um padrão comum: o descontentamento de uma classe média que se considera esquecida ou menosprezada pelo Estado que ela paga para manter.

Nada disso começou em 2019. Recorde-se que governos da América Latina vêm sendo derrubados em meio a tumultos nas ruas desde os anos 2000 - como esquecer do então presidente argentino Fernando De La Rúa fugindo de helicóptero da Casa Rosada para não ser alcançado pela turba enfurecida em meio ao desastre econômico do país?

Portanto, há pelo menos duas décadas o continente demonstra, aqui e ali, mal-estar com a estagnação econômica que condena à mediocridade - quando não à pobreza - grande parte da população. E tem feito pouca ou nenhuma diferença se o governo é de esquerda ou de direita: a sensação dos eleitores em geral é que, em qualquer dos casos, as promessas de desenvolvimento e de prosperidade só se cumprem para os que já estão no topo da pirâmide.

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