quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A lei e a crise


Almir Pazzianotto Pinto
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)


Da lei se espera que trate a todos com igualdade, não faça distinções de classes, não pratique e coíba arbitrariedades, sendo tão útil nos anos de conflitos e crise quanto em períodos tranqüilos, de prosperidade.
A CLT foi concebida por Getúlio Vargas como espécie de constituição das classes trabalhadoras. Os juristas incumbidos de redigi-la deixaram-se, porém, dominar por estranha visão bipolar do sistema produtivo. Em um pólo foram arrebanhados os empregadores. Para o pólo oposto foram remetidos os empregados, estes sob a insólita marca da hipossuficiência.

Entre empregadores e empregados, o Estado paternal assumiu a posição de árbitro, com o objetivo de mantê-los em paz e a incumbência de solucionar os conflitos individuais e coletivos de interesses, normais no regime de livre iniciativa.

Por paradoxal que pareça, se na esfera do direito coletivo o modelo foi a Carta del Lavoro, fascista, no plano individual, ao se erguer o muro entre patrões e assalariados, prevaleceu a ideologia da divisão das classes, da espoliação do proletariado, e do inevitável conflito entre ambos.

Durante o governo Castelo Branco (1964 — 1967) a economia se encontrou abatida por forte crise de caráter recessivo, causadora de formidável onda de desemprego. Para remediá-lo, foi aprovada a Lei 492/65, conhecida como lei de crise. Nela foram prescritas medidas de defesa dos assalariados, uma das quais permitiria a redução dos salários, pelo prazo de três meses, até o limite de 25%, respeitado o mínimo regional. Com o tempo, o quadro recessivo refluiu, houve a fase do milagre brasileiro, e a possibilidade de redução salarial caiu no esquecimento.

A Constituição atual incorporou, no art. 7º, numeroso rol de direitos individuais. O inciso VI do artigo assegura a irredutibilidade salarial, “salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”. O XXVI, por sua vez, prescreve “o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”.

Que o Brasil se encontra às voltas com repentina e forte desaceleração econômica, nem mesmo o cândido otimismo do ministro da Fazenda põe em dúvida. Grandes e pequenas empresas acusam acelerada queda no faturamento; o mercado consumidor se encolhe; quebra-se o ritmo da construção civil e da venda de móveis e automóveis. Todos, enfim, tratam de economizar, diante do nebuloso futuro. Milhares de empregados foram postos em férias coletivas, administradores de pessoal traçam planos de desligamentos voluntários, ou partem de imediato para as demissões.

Por que, pergunta-se, empregadores e empregados ignoram as garantias constitucionais, não abrem negociações até se porem de acordo quanto à redução temporária de salários e de outros benefícios financeiros, com o propósito de manter empregos e evitar despesas com indenizações, avisos prévios, férias vencidas e proporcionais, além dos prejuízos com a perda de mão-de-obra experiente e treinada? Toda demissão sem justa causa (eis que a CLT considera a recessão mero risco do negócio) provoca, além de despesas, riscos imponderáveis. Afinal, os empregados contarão com o prazo de dois anos, contados da data do desligamento, para ajuizar reclamações trabalhistas destinadas à cobrança, por exemplo, de supostos danos morais, materiais ou à imagem.

A resposta à intrigante, mas oportuna indagação, apóia-se em três elementos: 1) a ficção da classe trabalhadora hipossuficiente como um todo; 2) a reduzida validade conferida ao recibo de quitação, mesmo passado sob assistência do sindicato profissional, ou do Ministério do Trabalho; 3) a baixa representatividade dos sindicalistas profissionais, cuja atuação, em momentos decisivos, sempre é encarada com reservas.

Em dias de calamidade econômica, o empresário sente-se diante de irrespondível dilema. Na hipótese de buscar negociações coletivas, destinadas à redução temporária dos salários, será acusado de tentar tirar vantagens da crise. No caso de celebrar o acordo coletivo, ninguém lhe assegurará que, restabelecida a normalidade, o documento não será submetido a juízo, sob a alegação de que os empregados, hipossuficientes, foram vítimas de coação irresistível, caracterizada pelo temor da perda do emprego. O desfecho de ação dessa natureza é imprevisível, mas a jurisprudência referente a planos de demissões voluntárias, previamente negociados, não sugere previsão otimista.

Governo, patrões e empregados se encontram em meio a grave crise. Como se sairão? Entre 2009 e 2010 saberemos.

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