Um tema bem característico da cultura brasileira é o da importação de idéias e modas, bem como da relativa incapacidade de gerar um pensamento autônomo, nacional, nem por isso desligado provincianamente das grandes correntes culturais que atravessam cada época.
Tema difícil, contraditório, que deu origem a situações até curiosas: veja-se o exemplo do positivismo do século XIX, que, nas suas vertentes heterodoxas, marcou profundamente, para o bem e para o mal, o início da República e o seu próprio desenvolvimento posterior, ao passo que, na sua versão ortodoxa, influenciou relativamente muito menos, legando-nos pouco mais do que um singular templo positivista na cidade do Rio de Janeiro.
(Abro um necessário parêntese: por mais bizarro que seja, tal templo merece o tratamento cuidadoso que se deve a tudo aquilo que diga respeito à memória nacional, e até parece que, infelizmente, não vem tendo este tratamento.)
O marxismo também seria uma "flor exótica" nos trópicos, alheio à índole pacífica do povo, sempre disseram os conservadores ou, para ser preciso, os mais reacionários. E, no entanto, desde pelo menos o Caio Prado Jr. de Evolução Política do Brasil, de 1933, tal suposto exotismo teórico enraizou-se na nossa cultura e contribuiu, inegavelmente, para a decifração (sempre inacabada) do grande enigma que chamamos de Brasil.
Neste contexto de situações nem sempre fáceis de explicar, insere-se a penetração e difusão de um marxista italiano - a bem dizer, sardo - morto em 1937, há mais de 70 anos. Contemporâneo de Mussolini, Gramsci foi o mais ilustre prisioneiro do fascismo, e dele se salvaram, milagrosamente, os "cadernos" escritos no cárcere, por obra, especialmente, de Tatiana, a cunhada russa que o assistiu de perto nas prisões do regime; do economista Piero Sraffa, que podia entrar e sair da Itália a partir do seu posto de atuação profissional, em Cambridge; e de Palmiro Togliatti, dirigente comunista então exilado, que imprimiria marca considerável à Itália do pós-guerra à frente do PCI, um dos grandes partidos da esquerda ocidental durante décadas.
Poder-se-ia explicar a difusão brasileira de Gramsci como um mero capítulo da enorme difusão dos seus trabalhos em todo o mundo, o que não estaria longe da verdade, embora não esgote a questão. De todo modo, seria uma explicação mais plausível do que a fornecida por uma extrema-direita ideológica que ainda luta a guerra fria e vê em Gramsci a fonte de uma estratégia insidiosa e solerte, a solapar os valores tradicionais, mudando-os sem que ninguém perceba. Nada a fazer, a democracia admite opiniões de todo tipo, mesmo as que parecem desajuizadas (à direita e à esquerda, diga-se passagem).
Mais sensato seria ver que a presença moderna de Gramsci entre nós remonta aos anos 1960 e 1970, quando passou a ser sistematicamente veiculado por intelectuais majoritariamente ligados ao velho partidão. A Editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, e personalidades como Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mário Gazzaneo, fizeram circular na esquerda o pensamento de um marxista que tentava compreender - e valorizar - as estruturas "ocidentais" da política e da sociedade. Um marxista que, lido dessa forma, parecia desautorizar as ilusões da esquerda armada, que se batia contra o regime - bravura pessoal à parte - segundo uma estratégia que só tinha como consequência reforçar o aparelho repressivo.
Mais importante ainda é que conceitos do repertório gramsciano se generalizaram e ganharam corpo nessa época. Para dar um exemplo, apelava-se à articulação cada vez maior da "sociedade civil", fruto não deliberado da modernização conservadora inaugurada em 1964, como o âmbito essencial em que se faria a transição da ditadura para a democracia - o que efetivamente ocorreu. Autores importantes, como os já mencionados Carlos Nelson e Leandro, o sociólogo Luiz Werneck Vianna e os cientistas políticos Marco Aurélio Nogueira e Gildo Marçal Brandão, entre muitos outros, incorporaram categorias gramscianas para entender o andamento da modernização brasileira, como "revolução passiva", "hegemonia" e "guerra de posição", para citar termos de uso corrente.
Este Gramsci, na verdade, tornou-se um instrumento para compreender a realidade brasileira a partir da esquerda, para diagnosticar alguns dos males dessa realidade e propor certas estratégias. Mas tudo isso deve ser visto de uma perspectiva infensa ao doutrinarismo e mesmo a qualquer ortodoxia. Pura insensatez ver - à direita - um "gramscismo em marcha", ainda mais incorporado nos governos de Lula e do PT, que vivem conflitos e contradições por conta própria, sem o "patrocínio" de nenhum teórico em particular.
Igual insensatez, por outro lado, procurar em Gramsci - à esquerda - resposta para todas as deficiências do sistema educacional, da assistência social ou da estrutura política do país. Seria como erguer, cento e poucos anos depois, uma nova igreja positivista, respeitável como qualquer corrente de opinião, mas pouco duradoura na sua irrealidade espectral. Melhor ver aquilo que os marxistas de inspiração gramsciana podem fazer para aprofundar a compreensão do país, ao lado de uma infinidade de outras tendências e "partidos" intelectuais, em livre e democrático debate entre si. Um debate que, por sinal, jamais se conclui com a vitória definitiva de qualquer um dos contendores sobre os demais, o que, de resto, corresponderia a um pesadelo autoritário de que mal começamos a despertar.
Luiz Sérgio Henriques. Vice-presidente da Fundação Astrojildo Pereira, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil (www.gramsci.org).
Fonte: Monitor Mercantil
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