Ex-dirigente do Partido Comunista Italiano, Lucio Magri reconstrói em livro a trajetória da organização, do pós-guerra à dissolução, em 1991, que deixou um vazio na política do país
Por Leonardo Cazes
Começou com uma morte anunciada, no dia 3 de fevereiro de 1991, o 20º congresso do Partido Comunista Italiano (PCI): a septuagenária organização encerrava ali a sua história e dava origem ao Partido Democrático de Esquerda (o Partito Democratico della Sinistra, PDS). A transformação, proposta no fim de 1989 pelo secretário-geral Achille Occhetto, ocorreu na esteira da queda do muro de Berlim, do colapso da União Soviética e do chamado “socialismo real”. A decisão não foi uma exceção naqueles anos, mas marcou o fim daquele que ainda era o maior partido de massas da Europa Ocidental e o terceiro maior partido comunista do mundo, atrás apenas da China e da própria URSS. E os reflexos daquela opção são sentidos até hoje na política italiana.
O PCI não era um partido revolucionário, que defendia a tomada do poder pela força. Pelo contrário, teve papel central na redemocratização italiana após a derrubada do fascismo e chegou a ser a segunda maior força eleitoral do país no século XX. O que levou essa experiência a terminar na autodissolução é uma das questões perseguidas por Lucio Magri, ex-dirigente comunista e fundador do jornal “Il Manifesto”, morto em 2011, no livro recém-lançado no Brasil “O alfaiate de Ulm — Uma possível história do Partido Comunista Italiano” (tradução de Silvia de Bernardinis, Boitempo).
A possível história de Magri começa na Resistência italiana à ocupação nazista, que marca a volta do então secretário-geral Palmiro Togliatti a Itália, em 1944, após anos de exílio imposto pelo fascismo, e vai até o derradeiro congresso de 1991, em uma narrativa minuciosa dos fatos. Ele procura reconstruir essa trajetória em um diálogo permanente com o contexto mundial e as mudanças do próprio capitalismo. A relação entre o PCI e a União Soviética, muito tensa e cheia de contradições, também recebe grande atenção e são apontados os seus avanços e limitações.
— O comunismo italiano foi um fenômeno único. O PCI foi de longe o maior partido comunista na Europa, com 2 milhões de filiados por muitas décadas, e esse partido foi dissolvido em 1991 sem nenhuma análise profunda do que ele significou. De lá para cá, muitas biografias foram escritas, mas não são uma reflexão do que ele foi. A razão pela qual Magri escreveu o livro foi para dizer que não era possível simplesmente achar que tudo foi um erro e que deveria ser esquecido — afirma Luciana Castellina, fundadora do “Il Manifesto” junto com Magri e organizadora da sua obra póstuma.
Logo no início do livro, o autor deixa claro que discorda das duas interpretações dominantes sobre a experiência italiana. De um lado, há a leitura de que o PCI sempre foi social-democrata na sua essência e que a sua transformação no PDS foi parte de um processo de reconhecimento dessa mesma essência; de outro, que o partido era uma espécie de quinta-coluna da União Soviética no país. Magri, por sua vez, acreditava que o PCI representava uma via democrática alternativa para o socialismo e acreditava que a Revolução Russa não podia ser simplesmente replicada na Itália.
“Quero mostrar, ao contrário, que o PCI foi, de modo intermitente e sem levá-la plenamente a cabo, a tentativa mais séria, em certa fase histórica, de abrir caminho para uma ‘terceira via’, ou seja, de conjugar reformas parciais, de buscar amplas alianças sociais e políticas, de empregar com firmeza a democracia parlamentar, com duras lutas sociais, com uma crítica explícita e compartilhada da sociedade capitalista”, escreve ele.
Magri entrou no partido em 1956, aos 24 anos, no mesmo ano em que Nikita Kruschev fez o famoso discurso em que denunciou as violências, as deportações e os expurgos promovidos por Josef Stálin. Como definiu o historiador marxista Perry Anderson, no obituário de Magri publicado na revista “New Left Review”, ele entrou no PCI “com os olhos mais abertos do que aqueles que se juntaram ao partido no entre-guerras ou ainda durante a Resistência ao fascismo”. Seu olhar crítico lhe rendeu, inclusive, a expulsão do partido junto com o grupo que lançou o “Il Manifesto”, em 1969. Ele só retornaria ao PCI 15 depois, em 1984, e foi, internamente, um dos grandes opositores da proposta de extinção feita por Occhetto.
Para Luciana Castellina, a principal consequência do fim do PCI foi o desencantamento com a política e o empobrecimento da democracia. O PDS virou, em 1998, apenas DS (Democratas de Esquerda, em italiano). Em 2007, juntou-se a outras forças de centro-esquerda para formar o Partido Democrático (PD), que hoje governa o país com o direitista Povo da Liberdade (PDL), de Silvio Berlusconi. A união das duas forças ocorreu após o Movimento 5 Estrelas, liderado pelo comediante Beppe Grillo, ser o mais votado nas eleições parlamentares de abril de 2013 e se recusar a fazer alianças com os partidos tradicionais. Grillo fez sucesso ao levantar a bandeira da antipolítica.
— O modo como o partido foi dissolvido quebrou a espinha do que milhares de militantes acreditavam. Quando o PCI acabou, uma pequena parte criou um novo partido, Refundação Comunista. O resto foi para o PDS. Contudo, dos 1,5 milhão de militantes na época, 800 mil simplesmente decidiram voltar para casa e abandonar a política. A política deixou de existir como uma atividade social. Restaram apenas as eleições e a presença nas instituições, no parlamento, nos conselhos municipais. O desaparecimento de um partido com impacto social deixou a democracia mais pobre.
Fonte Prosa &Verso
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