"O sertão vai virar mar, dá no coração/ o medo que algum dia o mar também vire sertão." O refrão de Sobradinho, a música de Sá e Guarabyra, tem sido ao longo das últimas três décadas referência das mais usadas para explicar transformações nas paisagens urbana e rural do País e até mudanças que se operam no próprio cotidiano dos brasileiros. Mas a profecia do beato Antônio Conselheiro que dizia que o sertão ia alagar, cada vez mais improvável ante a inclemência de secas continuadas que deixam tórrida a terra nordestina, desviou o curso para outras direções, chegando às margens das metrópoles. Hoje o bordão é outro: as periferias viram centros e estes ganham jeito das margens periféricas.
Depauperados e vazios, os espaços centrais vão perdendo o glamour que outrora enfeitava o sonho das elites. Essa é uma faceta pouco percebida da atual anatomia urbana, cujos reflexos se projetam em múltiplos compartimentos da vida social, a partir de uma nova realidade plasmada por emergentes polos de força, renda e consumo.
O fato é que paradigmas estão sendo quebrados no hábitat dos aglomerados metropolitanos, que passam a ser foco de investidores imobiliários e de uma ação mais ativa do Estado. Passam a incorporar a estética arquitetônica das avenidas centrais, as estruturas de serviços básicos, os empreendimentos de lazer, enfim, dando adeus à antiga roupagem que os mostrava como lugares ermos e lúgubres, distantes e desorganizados. A modernização - aqui entendida como as formas de vivência e convivência com os equipamentos do progresso civilizatório - adentra as periferias, puxando uma locomotiva de novidades e amplificando as rotas de consumo, sobretudo em face da nova composição social, cuja classe média, que representa 54% da população (108 milhões de pessoas), gastou no ano passado mais de R$ 1,17 trilhão, movimentando 58% do crédito no Brasil, segundo dados da recente pesquisa Faces da Classe Média, feita por Serasa e Data Popular. As periferias não devem ser mais caracterizadas pelo distanciamento "geométrico", conforme pregam Carlos Ritter e Olga Lúcia Firkowski no trabalho Novo Conceitual para as Periferias Urbanas. Tal reengenharia tem conexão com os grupamentos sociais que ascenderam na pirâmide sob o empuxo das políticas de distribuição de renda.
A dinâmica social e o processo de "desperiferização" sinalizam a ocorrência de certos fenômenos, alguns com forte impacto na frente política e, por conseguinte, no pleito eleitoral de outubro. A começar pela elevação da autoestima. A melhoria de padrões de vida funciona como alavanca de ação, otimismo e esperança, despertando os valores de engajamento na vida social, observação mais atenta do processo político e acesso aos bens de consumo. Explica-se, assim, a razão por que sete em cada dez pessoas de classe média se preocupam mais com qualidade e marca de produtos. É razoável inferir que a ascensão social expande a aura de cidadania, o que tornaria o consumidor mais exigente, crítico e consciente de seus direitos.
Ora, sob tal hipótese, conclui-se que, também na esfera política, esse padrão cidadão transparece na maior conscientização sobre os processos da política e os atores que entrarão no palco eleitoral. O voto, portanto, será mais racional. Neste ano os eleitores de nível universitário da classe C já somam 11 milhões. Entre 2002 e 2010 saltaram de 6 milhões para 9 milhões. Já os de ensino médio chegarão aos 52 milhões.
Noutra frente é possível distinguir traços que ligam o clamor das ruas aos contingentes que sobem a escada social. Concentrações de grupos e mobilizações pipocam por todo o País, mas as maiores movimentações ocorrem em São Paulo e no Rio de Janeiro, caixas de ressonância da Região Sudeste, que abriga 43% da classe C. Acontece que a rápida ascensão de 30 milhões de brasileiros ao meio da pirâmide, saindo da base, não ganhou correspondência nas frentes da infraestrutura social, ou seja, o pão garantido na mesa não foi acompanhado por ingredientes necessários para assegurar não apenas barriga saciada, mas conforto, segurança, saúde, educação, água e luz.
Alguém poderá contra-argumentar: "Mas as periferias não assumem a forma dos centros e ganham estruturas de serviços?" Esse é o nó da questão. As bordas estão-se aparelhando, sim, na esteira de grupos imobiliários e setores do comércio, mas a ação do Estado ainda é frágil, não acompanha o ritmo das demandas. Veja-se a mobilidade urbana, alvo de constantes conflitos: ônibus e metrôs superlotados, massas humanas comprimidas à espera de seu meio de transporte, depredações. Na área da saúde, postos em estado precário, longas filas para atendimento, meses para marcar cirurgias. Há, portanto, muita pólvora acumulada no arsenal das periferias em remodelação.
A indignação é produto de carências. E acaba acendendo o pavio dos conflitos. O grupo de jovens da categoria "promissores", identificado pela pesquisa citada, com idade média de 22,2 anos, soma 14,7 milhões de pessoas, 95% solteiras. Essa turma exibe propensão à rebeldia e vitamina para engrossar o caldo de rolezinhos e manifestações de rua. Faz também ecoar reclamações de outra categoria, a dos "batalhadores", que soma 39% da classe média (30,3 milhões), gasta R$ 388,9 bilhões com prioridades vinculadas à família e tem idade média de 40,4 anos. Nesta se fincam as fortalezas da contrariedade.
Dentro dessa configuração - periferias e classes médias - reside o fato novo: extraordinária força social centrípeta a fustigar os polos do poder. Que água não falte nas torneiras nem se apague a luz da sala de TV, principalmente das casas dos emergentes, o maior feito nas áreas social e econômica do Brasil na contemporaneidade. E não vai adiantar apelo ao civismo pelo fato de o País sediar este ano o maior evento esportivo do planeta. Futebol e política são jogados em campos diferentes. Se algum candidato tentar engrupir, acabará levando cartão vermelho e voto contra.
Jornalista, professor titular da USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
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