Exposição não retrata os que optaram pela luta pacífica e foram igualmente presos, torturados e mortos
Fui ao CCBB aqui no Rio para ver a exposição "Resistir É Preciso...", organizada pelo Ministério da Cultura e Instituto Vladimir Herzog, uma das diversas manifestações que assinalam os 50 anos do golpe militar que, em 1964, depôs o presidente João Goulart. Tais manifestações parecem demonstrar o repúdio da sociedade brasileira àquele regime e a todo e qualquer regime que pretenda cercear a liberdade dos cidadãos.
A exposição é bem montada com fotos, desenhos, pintura e pensamentos que expressaram a resistência à ditadura militar. Mas se sente falta de referência a personalidades e atividades que desempenharam importante papel na luta de resistência ao regime autoritário.
Lembrei-me, por exemplo do show "Opinião", escrito por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, dirigido por Augusto Boal e interpretado por Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale.
Esse show foi a primeira manifestação de resistência ao regime militar, pois estreou no dia 11 de dezembro de 1964, isto é, oito meses após o golpe. O público se sentiu expressado naquele espetáculo, sem nenhuma dúvida, tanto assim que o teatro lotava com um mês de antecedência. Por que não há qualquer menção a ele na exposição?
Após esse show, o mesmo grupo teatral montou "Liberdade, Liberdade" escrito por Millôr Fernandes e Flávio Rangel, que também o dirigiu. De novo, casa cheia. Os militares, sentindo-se criticados, tentaram tirar a peça de cartaz, provocando um conflito, com homens armados (como se viu depois) a vaiar o espetáculo e acusá-lo de comunista. Era, sem dúvida, uma denúncia do autoritarismo do regime. No entanto, não há qualquer referência a ele na exposição do CCBB.
Como também não há referência à peça "Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come", outro sucesso de bilheteria que criticava a ditadura. A ideia de escrevê-la foi do Vianninha, temeroso da censura que acabara de proibir o "O Berço do Herói", de Dias Gomes, dirigido por Abujamra. Para burlar os censores, devíamos escrever uma obra-prima, do ponto teatral e literário. Foi o que se tentou fazer.
A peça passou na censura e ganhou todos os prêmios do teatro brasileiro naquele ano de 1966. Há alguma referência a ela na mostra do CCBB? Não, nenhuma. Como também não há referência a "Arena Canta Zumbi", de Gianfrancesco Guarnieri, nem aos demais espetáculos montados por outros grupos de São Paulo, do Rio e de outras capitais brasileiras.
Os organizadores dessa exposição parecem ignorar o papel desempenhado pelo teatro brasileiro na luta contra a ditadura. E a Passeata dos Cem Mil? Há dela apenas uma foto ali. Nenhuma alusão ao fato de que foi realizada graças à atuação da classe teatral, com o apoio logístico do Partido Comunista Brasileiro.
Mas não é só isso. Ênio Silveira, desde 1965, editou uma revista chamada "Civilização Brasileira" (que depois se chamou "Encontros com a Civilização Brasileira"), que publicava ensaios, artigos, poemas, entrevistas, reportagens, denunciando os abusos do governo militar e analisando os fatores que o determinaram. Essa revista foi editada durante 15 anos, resultando na prisão de seu editor. Não há menção a ela na exposição "Resistir É Preciso...".
Sem dúvida alguma, ao se falar do regime autoritário, não se pode esquecer aqueles militantes que escolheram a luta armada como o caminho correto para combatê-lo. Nem todos concordavam com isso, e pode-se dizer que essa era opinião da maioria das pessoas engajadas na luta, e com razão, pois era um equívoco. Não obstante, quem se dispôs a essa aventura demonstrou coragem e desprendimento.
A exposição faz referência a eles e particularmente aos que foram mortos pela repressão. Está certo. O que não está certo é não fazer qualquer referência àqueles que, optando pela luta pacífica, foram igualmente presos, torturados e mortos. Basta dizer que, de 1972 a 1974, um terço do Comitê Central do PCB foi assassinado, mas a exposição, se não me engano, não alude a eles.
Lula, porém, aparece ali como um exemplo de resistente. Está certo, mas por que não aparecem outros líderes como Fernando Henrique, José Serra, Miguel Arraes e tantos outros? Deve ter havido alguma razão para isso, mas não sei qual seria.
Ferreira Gullar, poeta, ensaísta e crítico de arte
Fonte: Folha de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário