Assim como Gramsci, em um artigo juvenil, designou Marx como o “nosso Marx”, a publicística e a academia brasileira têm razões de sobra para se referir a ele como “nosso” em razão da larga difusão que promove, em ondas sempre renovadas, do seu pensamento.
Assim tem sido desde o lançamento de suas obras, em meados dos anos 1960, pelo notável homem público Enio Silveira, então editor da Civilização Brasileira, sob a curadoria dos não menos notáveis Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mario Gazzaneo, com a tradução, três décadas depois, de Carlos Nelson Coutinho, em alguns volumes em parceria com Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, da íntegra do monumental Cadernos do cárcere, magnun opus do autor. A edição de textos de renomados especialistas italianos sob a responsabilidade editorial da Fundação Astrojildo Pereira e da Contraponto Editora, como este importante trabalho de Leonardo Rapone que o leitor tem em mãos, faz parte desse movimento.
Com efeito, as primeiras traduções da obra de Gramsci foram recebidas como uma lufada de ar fresco em um ambiente saturado pela perplexidade dos seus intelectuais em encontrar, a partir das velhas categorias e modelos de análise a que estavam afeiçoados, interpretações plausíveis para a irrupção do golpe militar de 1964, que interrompera a experiência democrática brasileira. A derrota política do campo democrático, surpreendente pela rapidez do seu desenlace e pelo desamparo a que foi relegado o governo que então o representava por parte da opinião pública e da sociedade civil da época, tinha deixado patente que a busca das causas de um desastre daquelas proporções deveria se orientar para a crítica das concepções reinantes sobre a natureza da nossa formação econômico--social e sobre as que informavam nossa teoria da ação em favor da mudança social – no léxico da época, da revolução brasileira.
Tal crítica não deveria valer por si mesma, pois se empenhava na sondagem de novos caminhos, sob a suspeição generalizada de que os antigos tinham perdido serventia, a essa altura já diante do imperativo de formular uma política capaz de se contrapor ao curso de uma vigorosa modernização burguesa pelo alto, quando se revelou a verdadeira natureza do regime militar. Os propósitos do regime autocrático, imposto pelos militares pela via dos atos institucionais, à margem de qualquer procedimento de controle social, longe de visar, como tantos imaginaram, impor freios ao desenvolvimento das forças produtivas nacionais, guardava outro sentido. Tratava-se de um projeto aplicado à sua expansão, sob uma modalidade especificamente burguesa, e que dependia da coerção a fim de remover obstáculos políticos e sociais que vinham interditando a sua plena imposição, projeto que as forças da oposição democrática, por seu atraso teórico, tardaram em reconhecer.
Foi nesse terreno difícil, uma vez que prevalecia no campo democrático a concepção de que o golpe militar tinha como endereço obstar o desenvolvimento do país a fim de aprofundar sua subordinação ao imperialismo americano, que a recepção da obra de Gramsci pouco a pouco demonstrou sua fecundidade para a interpretação do novo cenário em que se instalava a ordem capitalista no país. Categorias como guerra de posição, agências privadas de hegemonia, transformismo, revolução passiva passaram a ser incorporadas ao nosso léxico político. Sobretudo, o caso particular de modernização da Itália, do Risorgimento ao fascismo, veio a enriquecer o elenco que participava do nosso repertório de estudos de processos de modernização, em geral limitados à comparação com as revoluções francesa – especialmente esta –, inglesa e americana. O caso italiano nos trazia, quase que por gravidade, o alemão e o japonês.
O tema da revolução burguesa brasileira, antes um enigma criptografado na nossa bibliografia, sob a inspiração da renovação trazida pela obra gramsciana e do clássico de Barrington Moore sobre as origens das ditaduras e da democracia, passa a ser tratado como um processo de longa duração cujo desfecho não se encontraria em um horizonte distante, mas era algo que se realizava diante de nós, infelizmente por vias autocráticas, e não pela “clássica”, do tipo francês com ruptura revolucionária, como nas elucubrações de tantos nos idos dos anos 1950-1960.
Sob a inspiração de Gramsci, passou-se a reconhecer que a ordem burguesa no país era do tipo ocidental, na medida em que se dispunha entre o Estado e sua sociedade civil um complexo sistema de trincheiras que a defendia, tal como ficara demonstrado com o apoio das camadas médias ao movimento que culminou com o golpe militar, inclusive de setores majoritários da Igreja católica e da influente corporação dos advogados.
A bibliografia das ciências sociais e a ensaística da esquerda logo se vão tornar polos de irradiação dessas novas influências. A revolução burguesa no Brasil, clássico de Florestan Fernandes (em particular nos capítulos dedicados ao processo da Independência), de 1975, Liberalismo e sindicato no Brasil, de 1976, e A revolução passiva. Iberismo e americanismo no Brasil, de 1997, ambos do autor deste prefácio, que pede vênia para se citar, são obras de interpretação do Brasil largamente influenciadas pela análise e categorias gramscianas.
Além desse foco macroestrutural, tal como nos trabalhos acima citados, a fortuna de Gramsci entre nós prosperaria, até com mais desenvoltura, nos estudos dedicados às chamadas agências privadas de hegemonia. A imensa produção universitária nos cursos de formação em Ciências Sociais, Pedagogia, Serviços Sociais, Letras e Comunicação, tendo como referência teórica problemas e hipóteses suscitados por Gramsci, como que o naturalizou em nossa academia, e ainda está para ser inventariada.
Contudo, a sua trajetória de formação, fora a publicação dos seus escritos políticos anteriores a seu encarceramento, publicados pela editora Civilização Brasileira em dois volumes, ambos sob a curadoria de Carlos Nelson Coutinho, abrangendo o primeiro volume os textos produzidos entre os anos 1910-1920, e o segundo, os textos dos anos 1921 a 1926, ano de sua prisão, continuava ausente das estantes de nossas editoras. Este trabalho de Leonardo Rapone, em boa hora, vem a suprir essa lacuna, em particular porque seu foco exclusivo é o da fase juvenil do autor e pela ampla contextualização dos seus artigos, percorrendo os cinco anos decisivos entre 1914 e 1919, que vão da Primeira Guerra Mundial à emergência, em 1917, da revolução do proletariado russo.
O retrato do jovem Gramsci – ele nasceu em 1891 – que daí emerge é o de um intelectual envolvido em um esforço sem tréguas em compreender a natureza do seu tempo – a seu juízo, certamente trágico – a fim de forjar uma identidade própria para si e um programa de ação para a intelligenzia de que fazia parte como membro da corrente socialista italiana. Rapone apresenta o resultado da sua pesquisa em cinco capítulos, cada qual dedicado a um período e aos temas que predominaram nos anos de sua formação política e intelectual. De suas leituras, que Rapone rastreia com cuidado, se identificam os alicerces do autor: Benedetto Croce, principalmente este, Henri Bergson, Georges Sorel, Robert Michels, Antonio Labriola, Max Weber, com o qual terá uma forte afinidade quanto ao papel da ética na política e na valorização da reforma protestante para o advento da modernidade capitalista.
Do seu diálogo crítico com eles, ora os incorpora em parte, ora rejeita-os quase totalmente, como no caso de Michels, mas, nessa fase juvenil, ele pode ser incluído como um herdeiro heterodoxo da filosofia do idealismo alemão, que valorizará mesmo em seus escritos de maturidade.
Tal como observa Rapone, “Sorel é até o encontro com Lenin aquele [autor] em quem o jovem Gramsci mais encontrou indicações e respostas às exigências das quais partia sua investigação teórica, aquele que, por conseguinte, mais influiu para formar seu pensamento”. Dessa influência, reforçada por suas leituras de Bergson, ficarão as marcas do seu antipositivismo, do seu culto à vontade e às energias criadoras que os homens podem mobilizar para mudar suas circunstâncias, bem presentes no texto “A revolução contra O capital ”, de 1917, com que saúda a revolução dos sovietes.
De Sorel, Gramsci também é herdeiro das concepções sobre o sindicalismo revolucionário, da postura de intransigência na luta de classes, cujos limites deveriam ser duramente recortados, e de oposição às alianças políticas, sempre conservando uma perspectiva de distância quanto ao Estado. Para ele, nessa fase da sua trajetória, o cenário mais oportuno para a afirmação da identidade operária é o do embate direto na luta de classes diante de um Estado mínimo, razão por que a Inglaterra – no que, curiosamente e por outros motivos, se aproxima de Weber – se constitui no seu paradigma de análise. É de Rapone a afirmação, justa, por sinal, de que Gramsci era fascinado pela Inglaterra.
A Revolução Russa, com suas repercussões na vida italiana, em particular sobre seu movimento operário, extrai nosso autor das fábricas e do mundo dos conselhos operários para instalá-lo, em fins da segunda década do Novecentos, no coração da política.
Lenin sucede a Sorel no seu panteão intelectual, mas, em qualquer leitura da sua obra de maturidade como pensador marxista, tal como ela se apresenta nos Cadernos do cárcere, lá está a presença forte dos temas analisados nos seus trabalhos de juventude, como nos textos magistrais dedicados ao estudo do americanismo e do fordismo (Caderno 22, volume 4 da edição brasileira).
Não há como interpretar um sem conhecer o outro, como Leonardo Rapone nos motiva e ensina a pensar.
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