Há quase um ano, a Câmara dos Deputados, ao acolher o pedido de impeachment da presidente cassada Dilma Rousseff, expôs ao País a baixa qualidade da atual representação parlamentar. Não pelo resultado – ansiado pela maioria dos brasileiros –, mas pelo tom pitoresco, por vezes humorístico, adotado por cada parlamentar ao anunciar seu voto. Durante quase dez horas de sessão, o Brasil assistiu aos breves pronunciamentos de 504 dos 513 deputados, tempo suficiente para patentear a distância entre eleitos e eleitores, evidenciando o que se convencionou chamar de “crise de representatividade”. A mediocridade dos parlamentares humilhou a Nação.
A chaga da corrupção exposta em quase todas as esferas do poder público – contrária à natureza íntegra que caracteriza a imensa maioria do povo brasileiro – também contribui decisivamente para este descolamento. A cada novo escândalo que vem à luz é como se os brasileiros honestos sentissem as fraturas que, pouco a pouco, fragilizam as fundações de nossa democracia.
Trata-se de uma grave constatação. Já no preâmbulo, a Constituição consagra o Estado Democrático como diretriz basilar de nossa organização política. Imprescindível, também, é o papel exercido pelo Congresso para que os direitos fundamentais não se submetam ao arbítrio do Estado forte. É no Congresso que o povo se faz representar e exerce a sua soberania, ao lado da representação dos Estados.
É paradoxal, portanto, que a expressão “eles não me representam”, referindo-se aos parlamentares, venha sendo constantemente utilizada nos protestos populares. A contestação soa ainda mais descabida posto que nenhum parlamentar recorreu à força para ocupar o seu espaço no Congresso. Ao contrário, ali chegou pelo voto, ou seja, pela vontade do povo. É desta incongruência que trata Jairo Nicolau, cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisando os dilemas da representação em entrevista concedida ao Estado.
Em seus estudos, Nicolau atribui o “enorme abismo” em que caiu a atividade parlamentar, quando comparada à de 15 ou 20 anos atrás, a dois fatores: os descaminhos do voto – situações nas quais “a intenção original do eleitor, diante da urna, nada tem a ver com o resultado concreto de sua escolha” – e a pouca ou nenhuma atração que a política exerce hoje sobre as elites – intelectual, jurídica, empresarial e artística –, desestimuladas pela sucessão de escândalos que marcaram a atividade na história recente.
Entretanto, o problema pode ter raízes ainda mais profundas. Um terremoto político que ficou conhecido como “Pacote de Abril” propaga ondas capazes de distorcer a representação congressual mesmo 40 anos depois dos atos assinados pelo então presidente Ernesto Geisel.
Sob o pretexto de que o MDB, partido de oposição ao governo, dificultava a aprovação de uma emenda que mantinha indiretas as eleições para os governos estaduais de 1978 – à luz da Constituição em vigor, o pleito deveria se dar por voto direto –, Geisel decretou o fechamento do Congresso e, nesse período, editou 14 emendas à Constituição, à qual acrescentou 3 artigos, e baixou 6 decretos-leis, medidas que, em essência, visavam à manutenção da maioria governista no Legislativo.
Além do intento original, Geisel determinou a ampliação das bancadas de representação dos Estados em que a Arena – partido de sustentação do governo – obtinha bons resultados eleitorais, isto é, no Norte e no Nordeste. Instituiu-se, assim, um modelo de representação que distorceu a realidade política e econômica dos entes federativos e produziu resultados nefastos à boa organização do Estado brasileiro que repercutem até hoje.
Diante deste quadro, agravado pela crise, principalmente a crise moral que corrói a vida política nacional, urge fazer uma reforma política que corrija as distorções históricas e incentive a renovação dos quadros políticos, o que não será alcançado por meio de propostas esdrúxulas como a do voto em lista fechada. Assim agindo, o Legislativo terá oportunidade de reconciliar o povo com sua Casa de representação.
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