O futebol, nosso esporte favorito, universo mítico de habilidade e precisão, mas também de ética, vive mandando recados para a nação brasileira, como uma espécie de metáfora viva de nosso destino, do que somos e do que precisamos ser. Agora mesmo, essa nova seleção de Tite, além de nos encher de alegria e orgulho, nos traz de volta a memória do que sempre cultivamos — a esperança que costumava nos alimentar (mesmo que, em grande parte das vezes, enganosamente) e da qual andávamos esquecidos.
Resta-nos transformar essa esperança em confiança em nós mesmos, como fizemos nos melhores momentos de nossa história moderna. A mesma confiança que faz com que Paulinho faça um gol batendo de muito longe da área, contra o Uruguai. Ou que faz com que Neymar venha driblando (ou deslizando?), desde lá detrás, até fazer seu gol contra o Paraguai.
Durante a Copa do Mundo de 1950, eu era criança e acompanhava o futebol pelo rádio (meu pai não gostava do jogo, nunca me levou ao Maracanã, que só fui conhecer graças a um tio tricolor). Depois de goleadas que encantaram o torcedor, fomos para a final com o Uruguai, precisando apenas do empate para levar o caneco. Friaça abriu o placar no inicio do segundo tempo, e o país inteiro começou a comemorar o sucesso. Nós não sabíamos que éramos tão bons.
Aí deixamos o Uruguai empatar e logo fazer dois a um, quando faltavam apenas dez minutos para o jogo terminar. A depressão que tomou conta de nós era um ensaio para o drama que o período democrático de Getulio Vargas, eleito naquele mesmo ano, nos reservaria. Depois da esperança num país moderno, empenhado no take off do desenvolvimento econômico, com trabalhadores pela primeira vez no proscênio do palco político, em regime de absoluta liberdade, o Brasil tentava se impor como carta no baralho da Guerra Fria. No finalzinho do segundo tempo, Getulio se suicidava, cerca de um mês depois de nosso vexame decadente na Copa de 1954.
O país ruiu numa sucessão de golpes e só foi se reorganizar com a eleição de Juscelino Kubitschek. Três anos depois, celebrávamos os anos JK de crescimento, criatividade e cultura original, com a invenção de Garrincha e Pelé, a cara do período, na Copa de 1958. A alegria e o ineditismo eram a prova dos nove de um país do qual aprendemos a nos orgulhar, mesmo que depois descobríssemos que não era bem assim. Mas era mais importante o que pensávamos de nós mesmos, do que o que éramos de fato.
E assim se passaram as Copas, como se disputássemos nosso espaço na história do planeta, nosso papel diante do mundo. Vou pular a de 1970, um fenômeno que não se explica, a melhor seleção que já tivemos, em plena desgraça da ditadura militar. Como vou pular a de 1982, uma equipe de jogadores excepcionais batida por um time inferior, como nos deixamos bater na redemocratização pela impotência do governo Sarney, ensaiado na própria ditadura. Como pulo também a Copa “científica” de 1994, uma homenagem ao racionalismo do Plano Real daquele ano (Romário era o nosso Gustavo Franco nas canchas americanas). Ou a de 2002, a celebração da expectativa de um novo país do povo, liderado pelo presidente Lula e o goleador Ronaldo Fenômeno.
Em 2014, como o próprio Brasil, nossa seleção chegou ao fundo do poço, na derrota para a Alemanha por 7 a 1. Aprendemos que o poço não tem fundo, que sempre podemos ir mais fundo, no fundo do fundo do empobrecimento, da inflação, do desemprego, da miséria geral, essas coisas. É sempre melhor ganhar; mas, como velho botafoguense, sei que ganhar gera só celebração, enquanto perder faz a gente pensar.
O Brasil não anda nada bem. Mas, como escreveu outro dia Elio Gaspari, parou de piorar. Não que Michel Temer seja o nosso herói; mas o “Fora Temer” radical e insano só pode nos levar ao caos, à desmaterialização da política, introduzindo um desmanche do sistema democrático já tão abalado, que poderá gerar um golpe restaurador da ditadura, antes de 2018. Aí, sim, veremos o que é um golpe de verdade e suas consequências para a organização do país e a liberdade da população.
Vamos defender nossas ideias, qualquer uma que seja, com mais serenidade, maneirar na polarização sem deixarmos de pensar o que pensamos, chegar inteiros às próximas eleições. Não podemos, por exemplo, nos perder no ódio de uma final sem arbitragem, disputando o título de paternidade de um projeto como o da transposição do Rio São Francisco, que, segundo o Ipea, existe desde 1847, no reinado de dom Pedro II.
Em 2018, vamos tentar renovar a seleção política como renovamos a de futebol. Vamos descobrir um Tite, um personagem novo que tome conta do país com sabedoria e imaginação. Quem sabe, o próprio Tite?
*Cacá Diegues é cineasta
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