Autora falou sobre o escritor que é um dos pais da literatura russa no texto que estava perdido no acervo da Biblioteca Mário de Andrade
Gutemberg Medeiros*/ O Estado de S. Paulo
A Biblioteca Mário de Andrade lança nesta quarta, 17, às 19h, na Rua da Consolação, 94, duas novas edições de sua tradicional revista, uma dedicada a Clarice Lispector e a outra a Monteiro Lobato. Como editor da edição sobre Clarice, a primeira providência que tomei foi realizar o levantamento de obras de ou sobre a autora no amplo acervo da biblioteca. O que mais me surpreendeu foi uma coletânea de ensaios dedicada ao escritor russo Maksim Gorki (1838-1936), publicada no Rio de Janeiro em 1968, pela Editora Teatro Novo, assinados por Clarice, Otto Maria Carpeaux, Antônio Houaiss, José Lino Grünewald, Walmir Ayala e Gianni Ratto. O texto que traz a assinatura de Clarice intitula-se Atualidades de Gorki.
Na sequência, entrei em contato por e-mail com os gestores dos direitos autorais da escritora pedindo a liberação para publicar o ensaio, cuja resposta foi: “A família não reconhece a autoria, de modo que não poderá indicar a publicação.” Não localizei menção a este texto nos materiais sobre a autora e este volume não consta em seu acervo na Casa Rui Barbosa, localizada no Rio de Janeiro.
Porém, o diretor de teatro Gianni Rato (1916-2005) registra em suas memórias A Mochila do Mascate (Editora Hucitec, 1996) a montagem, com sua direção, da peça Ralé, de Gorki, na Companhia Teatro Novo, no Rio de Janeiro, em 1968.
Ratto informa, em paralelo à peça, sobre a publicação encontrada na Biblioteca Mário de Andrade, rodada na gráfica do jornal Correio da Manhã, provavelmente vinda no Acervo de Otto Maria Carpeaux. O ensaio de Clarice Lispector tem várias características relevantes. Em toda a sua extensão lembra a carpintaria de texto da autora – e o tom memorialístico impresso nas crônicas.
É uma homenagem emocionada de uma autora nascida russa a outro autor russo, um dos que mais a comoveu na adolescência, etapa revivificada com a leitura da peça Ralé na maturidade.
A autora aponta a importância da Revolução Russa ao ser a “salvação, pois a morte de um povo estava a acontecer”. Para continuar: “Não estou dizendo que o comunismo resolva a miséria da vida de qualquer país, tirando-lhe a dignidade: mas a Rússia resolveu”.
O texto emana o calor do momento em que foi escrito, logo após o estrangulamento da democratização da Checoslováquia com a invasão dos tanques soviéticos, em 20 de agosto de 1968.
Apesar de salvar a Rússia da fome, o que veio logo depois com a então URSS foi um império ditatorial. A atualidade de Gorki é, conforme o ensaio, a de clamar por uma terra de justiça entrevista em 1917, mas perdida no correr do século. Retomar Gorki com Ralé é retomar o necessário sonho da Utopia.
Atualidades de Gorki, por Clarice Lispector
Gorki foi um dos escritores que mais me comoveram na adolescência, mas ainda não havia lido ainda nenhuma peça dele. Agora, me cai nas mãos, não só a peça Ralé, como a minha própria adolescência.
Em Ralé, o modo de aceitarem tragicamente a trajetória humana é um desafio, como se abrissem a camisa e mostrassem despudoradamente o corpo nu pronto para a flechada.
“Ninguém vai chorar a morte de Ana. Que há de triste nisso? A gente nasce, vive algum tempo e depois morre. Eu morrerei e você também. O que há de triste nisso?”
Isso é o cinismo de quem já chegou em vida ao fim da vida áspera. Gorki tem um modo de dizer as verdades as mais sábias provocando em nós, apesar de fartos de saber, um arrepio frio quando ele diz que se vive algum tempo e se morre. Um calor de choro contido vem do coração e dos olhos diante dessa simplificação – nasce-se, vive-se, vive-se um pouco, morre-se. Nada mais se pode acrescentar. E depois a situação de miséria humana máxima: “Não fique magoada, minha filha. Eles... não... choram os mortos? Minha querida... os vivos, ninguém os chora... nós mesmos somos incapazes de chorar por nós, então, que fazer?”
O comunismo na Rússia não foi apenas uma forma política e sim de salvação pois a morte de um povo estava prestes a acontecer. Não estou dizendo que o comunismo resolva a miséria da vida de qualquer país, tirando-lhe a dignidade: mas a Rússia resolveu. Até que se tornou imperialista chegando mesmo a invadir a Checoslováquia, isto é, um país que não estava precisando de ajuda russa. Pois inclusive já era socializada. O povo russo, com sua alma, profunda e indisciplina, com sua música das mais ardentes do mundo, precisava de quem o guiasse, de quem o mantivesse dentro de uma disciplina, mesmo que a disciplina doesse – até que os sentimentos desiguais, social e psicologicamente fossem entrando pela “porta estreita” e viesse a luz: a liberdade de viver, sem que haja a ralé imunda e desgraçada da Rússia do século 19. No meio daquela degradação da pessoa humana, um homem é chamado de bom; ele responde – “É necessário, filhinha, que alguém seja bom... É preciso ter piedade dos homens. – Cristo se apiedou dos homens. Nossa herança é fazer o mesmo.”
Um dos personagens diz a respeito de outro, em pobre tentativa de provar que não haviam decaído tanto, que a nobreza é como a catapora: o homem se cura mas as marcas ficam. O ouvinte da plateia ou o leitor lendo o texto original, sente naquela centelha também a marca da catapora: gente. São trastes, cuja alma foi tramada pelo sofrimento. Não o sofrimento que de algum modo trágico nos enobrece – e o russo é um trágico por excelência – não o sofrimento que enobrece, mas aquele que faz com que um homem não possa se olhar no espelho. Neste descobre de novo, e já sem horror, as três únicas máscaras que a vida lhe colou na pele – uma a do sofrimento individual que num russo vai até as raízes, outra, a do abandono e solidão em que a sociedade o deixou, e outra a da impotência de reagir contra a força social, pois um homem só é apenas um homem sozinho. Somente a união com outros dará a ele a sua própria individualidade. Porque, paradoxalmente, um homem só é um homem, um indivíduo, com outros homens.
Outro personagem toma consciência do que lhe acontece dizendo: “Eu sou um homem de caráter, mas o patrão me cospe na cara. E quem é o patrão? Bah! um equívoco, eis o que é... um bêbado, nada mais...”
Que dizer deste diálogo: “A mulher: – fale comigo, pai querido (na Rússia chamam os mais velhos de Paizinho), estou passando tão mal!...” – “Não pense, não é grave não, é a morte que se aproxima, meu passarinho”. Esse “paizinho” típico na Rússia, como carinho a alguém mais velho, é a resposta tão sábia e suave, são bem dele, Maksim Gorki. É um dos modos mais tocantes de abordar a morte, que já li.
A Rússia daquele tempo era uma sociedade de mentira. Talvez Gorki por isso faça um personagem dizer: – “a verdade, para você, talvez seja o próprio castigo”. A verdade de um clima social exposto na terra russa era talvez o seu próprio castigo. Até que, se puxando pelos próprios cabelos, já enterrados no solo, eles se salvaram da indignidade e passaram a crer.
E a terra dos Justos? O homem trabalha sem recompensa, mal vivia: “mas nunca perdia a coragem e quando chegava ao limite de suas forças, dava um riso e diria: não é nada. Vou ter paciência, esperarei mais um pouco, depois largarei tudo e irei para a Terra dos Justos”. Sua esperança era a Terra dos Justos. Então, na Sibéria, aparece um deportado cheio de livros e mapas. Ele pede ao sábio que mostre nos mapas a Terra dos Justos, sua única felicidade futura. E o sábio não consegue encontrar nos mapas, por mais que procure a Terra dos Justos. O rapaz, então voltou para a sua casa e enforcou-se. Essa é uma das lendas mais bonitas criadas por Gorki.
A peça, aliás, é tão cheia de sonhos e estes são os que mantêm vivos seres que desceram até o fim. Não, não desceram até o fim porque ainda tinham a força de sonhar. A prostituta Nastia contava sempre a história de seu verdadeiro amor na vida, só que se esquecia do nome do homem e variava sempre, o que não variavam eram as palavras de quente amor que ela teria ouvido deste homem que sem poder casar com ela porque a família não o deixaria unir-se a uma prostituta, mata-se. Matar-se de amor por ela era o máximo de prova de que ela valia ainda como ser humano, apesar de suado, pisado e mal pago. E o velho que vai para a Terra dos Ucranianos? porque ouviu dizer que lá encontraram uma nova fé... E este trecho que tanto nos comove:
– “Ele sabe o que é a piedade, enquanto vocês são uns desalmados.
– De que te adiantaria se eu começasse a ter pena de você?
– Você é tanto capaz de ter pena, como de não ofender.
– O velho era bom... Ele tinha a lei na alma! Quem tem a lei na alma é bom, quem não tem a lei na alma está perdido.
– Que lei Pacha?
– A lei toda a lei. Você sabe.
– Mas qual?
– Não ofender um homem. Eis a lei.
E mais adiante:
– Mahomet nos deu o Alcorão e disse: “Eis a lei. Façam como aqui está escrito”. Depois virá um tempo em que o Alcorão não será mais suficiente. O tempo dará sua lei, uma nova, cada tempo dará sua lei.”
Termino este comentário com a frase de Gorki em Gorki par luis-même de Nina Gourfinkel: “E é absolutamente necessário falar de “sagrado”, digamos que não há nada mais sagrado que o descontentamento que o homem experimenta em relação a si mesmo, e sua aspiração a se tornar melhor. Sagrado é seu ódio contra as iniquidades de uma existência da qual ele mesmo é responsável. Sagrado é o seu desejo de anular na terra a inveja, a avidez, os crimes, as doenças, as guerras e qualquer inimizade entre os homens. Sagrado é seu trabalho.”
*Gutemberg Medeiros é jornalista, pesquisador, professor, mestre e doutor pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e pós-doutorando em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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