- O Globo
Anunciado pelo pai 48 horas após completar 35 anos, o escrivão da Polícia Federal, deputado federal mais votado em São Paulo, aceita seu destino
A semana é oportuna para se relembrar a utilidade primária de um embaixador: enviar avaliações francas, sem enfeites, sobre o país ao qual foi alocado, através de canais de comunicação confidenciais e presumivelmente seguros. A partir do momento em que o receio de vazamentos e/ou a autocensura começam a interferir, o trabalho do diplomata deixa de ter peso político e valor histórico.
Por pouco mais de dois anos, Sir Kim Darroch serviu como embaixador do Reino Unido em Washington, posto mais relevante na carreira de todo diplomata da era moderna. Até ser forçado a pedir demissão do cargo dias atrás, vinha sendo um olheiro astuto da tempestuosa governança Donald Trump e um valioso servidor público de seu país.
O vazamento seletivo de seus telegramas diplomáticos para o tabloide londrino “Mail on Sunday”, que aponta para a briga intestina entre brexistas e menos brexistas no esfacelado governo britânico, também atesta o valor das avaliações francas de Darroch.
Não que ele tenha desvendado um cenário intocado até então. A pilha de livros e relatos na mídia sobre o estado de fervura permanente na Casa Branca indicam, dia a dia, a “insegurança”, “intempestividade”, “caos” de seu principal ocupante.
Desta vez, porém, o que mais doeu em Trump, a ponto de chamar o embaixador de “maluco... sujeito burro... bobalhão pomposo” e cortá-lo de cerimônias oficiais, foi a humilhação pública de se ver assim retratado por um embaixador da Velha Albion. E Kim Darroch não é um embaixador qualquer —já foi representante permanente da Grã-Bretanha na União Europeia, assessor de Segurança Nacional do governo anterior, e tido como nome estelar do Foreign Office.
Seu pedido de demissão, apesar de inevitável, não foi banal — o último atrito diplomático sério entre os dois países, aliados históricos e fraternos, remonta a mais de 150 anos, quando o presidente Franklin Pierce acusou o embaixador britânico de recrutar americanos para lutar do lado britânico na Guerra da Crimeia!
Nos telegramas vazados agora é possível acompanhar a percepção cambiante e franca da era Trump feita por Sir Kim. Em memorando de 2017, ele escrevera : “Não é de se esperar que algum dia essa Administração se torne substancialmente mais normal; nem menos disfuncional, menos imprevisível, menos divisionista; menos diplomaticamente tosca e inepta”. Semanas atrás, depois de assistir ao lançamento em Orlando da campanha de reeleição do presidente, ele observou haver no comício grande equilíbrio entre homens e mulheres, jovens e velhos, e definiu Trump como candidato “credível”em 2020.
“Ele pode emergir das chamas todo chamuscado mas intacto, como Schwarzenegger na cena final de O Exterminador do Futuro”. Também aconselhava a primeira-ministra Theresa May a iniciar toda conversa com Trump elogiando como “vitória” qualquer coisa que o presidente tenha feito recentemente.
Se Eduardo Bolsonaro for efetivamente içado a representante do pai/presidente como embaixador do Brasil em Washington, e se algum dia forem abertos os arquivos do Itamaraty deste período, historiadores poderão avaliar melhor a sua atuação. Até lá terão sido digeridas (bem ou mal) a questão da constitucionalidade da indicação, a interpretação da súmula do Supremo Tribunal Federal que trata de nepotismo, e as suas qualificações listadas en famille. “Ele é amigo dos filhos de Trump, fala inglês, fala espanhol e tem vivência muito grande de mundo”, informa o presidente. “Já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos, no frio do Maine, estado que faz divisa com o Canadá...”, acrescenta o indicado.
Anunciado pelo pai 48 horas após completar 35 anos, idade mínima para assumir uma representação diplomática do Brasil no exterior, o escrivão da Polícia Federal, deputado federal mais votado em São Paulo, e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, cujo primeiro vice-presidente é Luiz Philippe de Orleans e Bragança, Eduardo aceita seu destino. “Se for a vontade do presidente... eu aceitaria”, informou, numa reconstrução certamente involuntária do “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação...”, pronunciado em 1822 por outro Príncipe Regente.
Não há por que duvidar de que o eventual futuro embaixador fará relatos francos e assinará memorandos sem enfeites, talvez tão sinceros quanto a correspondência diplomática confidencial de Kim Darroch. Só que com sinal invertido. O conjunto dessa construção sob o guarda-chuva de Donald Trump é de dar arrepios.
Em tempo: recomenda-se a leitura de “Diplomacia suja” (Cia. Das Letras), do exótico ex-embaixador britânico Craig Murray, para lembrar que o Foreign Office nem sempre se pauta por honra e retidão. Também dá arrepios.
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