domingo, 14 de julho de 2019

Luiz Carlos Azedo: A esquerda em seu labirinto

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Pela natureza do animal político, digamos assim, como na fábula do escorpião e o sapo, é ingenuidade não perceber que a gana de poder de Bolsonaro é mais absolutista do que republicana”

A derrota acachapante dos partidos de esquerda na reforma da Previdência, na qual obtiveram apenas 131 votos, é a repetição de duas outras quedas históricas na Câmara: a votação do impeachment de Dilma Rousseff e a aprovação do teto de gastos no governo Temer. Qualquer estrategista político diria: tem algo errado aí! Ainda mais porque houve uma mudança de rumo na opinião pública e o vento passou a soprar a favor da reforma, inviabilizando tentativas de mobilizar trabalhadores e corporações historicamente lideradas pelos partidos de esquerda para barrar o texto. Ao olharmos o resultado das votações das emendas, que resultaram numa lipoaspiração de R$ 150 bilhões em relação ao proposto pelo relator Samuel Moreira (PSDB-SP), veremos que a esquerda somente saiu do isolamento quando se uniu aos ruralistas e à bancada da bala para barganhar a aprovação das emendas a favor do regime especial de professores e do pessoal da segurança. Pode-se dizer que isso é “fazer política”, mas não é a grande política no sentido da construção de alternativa de poder. Muita água ainda vai rolar sob a ponte até as eleições de 2022, mas as três derrotas da esquerda no Congresso sinalizam o que pode vir a acontecer: a reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

Explico: o presidente da República, com suas atitudes, perdeu o amplo apoio que obteve no segundo turno das eleições, mas entusiasma sua base eleitoral com propostas de direita, com viés reacionário em matéria de costumes. Bolsonaro mantém coerência com o discurso de campanha do primeiro turno, como se nela permanecesse, principalmente nas redes sociais. O caso da indicação do filho Eduardo para a embaixada em Washington humilhou o Itamaraty e chocou a opinião pública, mas é um lance claro de que pretende estreitar sua aliança com Donald Trump e transformar o filho num articulador internacional desse campo de forças de direita. Provavelmente, tentará fazê-lo uma espécie de chanceler de fato.

Em circunstâncias normais, as atitudes de Bolsonaro, com essa orientação política assumidamente de direita, permitiriam a articulação de uma ampla frente de forças políticas, unindo o centro democrático às forças de esquerda. A oportunidade é generosa, se levarmos em conta que a votação da reforma da Previdência rearticulou no Congresso as forças que ficaram de fora da disputa do segundo turno com a derrota do ex-governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB). Na Câmara, o reagrupamento desses setores ocorreu sob a liderança do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ); fora do parlamento, porém, ainda é uma incógnita. Está bloqueada pelo “Lula livre!” e a divisão do PSDB. O governador João Doria (SP), apesar de aliado a Maia, também enfrenta dificuldades para liderar esse bloco em razão do histórico isolamento de São Paulo em relação aos demais estados. Além disso, seu discurso modernizador mira uma alternativa de poder cuja viabilidade depende do fracasso de Bolsonaro e não do resgate da centro-esquerda perante a sociedade, deixando o campo livre para a velha política do PT.

Estorvo
É aí que Bolsonaro nada de braçada: divide o ônus da reforma com o Congresso e fatura sozinho a agenda de direita, que lhe garante ao menos um terço do eleitorado e um lugar cativo no segundo turno das eleições de 2022. Alguns dirão, mas o PT faz a mesma coisa, com sua oposição radical às reformas, o que preserva a sua base eleitoral e as alianças históricas com o PDT, PSB e PSol. Essa é a tragédia. É tudo o que Bolsonaro deseja como oposição à sua reeleição, impedindo o surgimento de uma terceira via, digamos assim, mais democrática e moderada. A estratégia petista aposta no fracasso de Bolsonaro, tanto quando a de Doria, com a diferença de que o tucano tem a opção de se retirar da disputa e buscar a reeleição ao Bandeirantes.

Há uma enorme diferença entre um governo de direita num regime democrático, com um projeto reacionário que não empolga a sociedade e acaba mitigado pelas instituições democráticas; e um governo populista autoritário, que atropela as instituições democráticas, porque seu projeto de modernização tem adesão da sociedade e apresenta bons resultados. Pela natureza do animal político, digamos assim, como na fábula do escorpião e o sapo, é ingenuidade não perceber que a gana de poder de Bolsonaro é mais absolutista do que republicana.

É aí que mora o perigo da política do PT, cujo eixo continua sendo o “Lula livre!” e zero autocrítica em relação aos escândalos do mensalão e da Petrobras. O ex-presidente Lula e seu grupo político nunca se preocuparam com a estabilidade do processo democrático, nem mesmo na transição à democracia. Essa postura foi um estorvo para a aprovação da anistia, para a eleição de Tancredo Neves e a consolidação da democracia, mas não era um fator decisivo, porque havia um amplo espectro de forças políticas que sustentavam o Estado de direito democrático, com respaldo da sociedade.

Entretanto, não existia uma direita organizada no país, a velha direita havia sido liquidada pelos próprios militares. Agora há. Tudo bem, o centro político, apesar de derrotado nas eleições e sem poder de mobilização popular, exerce o papel de sempre como garantidor da democracia, entrincheirado no Congresso. Hoje, isso é suficiente para garantir o calendário eleitoral e o funcionamento das instituições sob ataque permanente dos partidários de Bolsonaro nas redes sociais, como acontece com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Mas, e depois, quando Bolsonaro estiver bafejado pela recuperação da economia e embalado por uma proposta de reforma política cujo objetivo será fortalecer o Executivo em relação aos demais poderes, como na Rússia, na Turquia e na Hungria?

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