terça-feira, 3 de março de 2020

Luiz Gonzaga Belluzzo* - A indústria em debate*

- Valor Econômico

Na visão da turma anti-industrialista, os defensores das políticas industriais insistem em ilusões

A regressão industrial brasileira foi escoltada por um retrocesso de igual intensidade no debate econômico. Contingente expressivo de economistas conservadores empreende uma campanha de desqualificação das ideias que proclamavam a importância da indústria nas economias contemporâneas.

No livro prestes a ser lançado, “O Brasil, uma economia que não aprende”, Paulo Gala e André Roncaglia registram o fenômeno: “No Brasil e no mundo muitos economistas ainda não acreditam na potência da indústria para gerar o desenvolvimento econômico. Isso se deve a um longo engessamento intelectual na fé ingênua do espontaneísmo de mercado e do livre comércio em promover o progresso material das nações, bastando apenas produzir aquilo que se faz de melhor”.

Ainda nos anos 20, o brasileiro Roberto Simonsen perseguiu o projeto de industrialização com a pertinácia dos obstinados. Em seu discurso inaugural na fundação do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, em 1928, Simonsen proclamou que “no atual estágio da civilização a independência econômica de uma grande nação, seu prestígio e sua atuação política como povo independente no concerto entre as nações só podem ser tomados na consideração devida possuindo esse país um parque industrial eficiente, na altura de seu desenvolvimento agrícola”.

O discurso recebeu a reprovação agressiva das classes conservadoras e de seus ideólogos. Em seu livro “Três Industriais Brasileiros”, o grande Heitor Ferreira Lima reproduz o artigo de um comentarista da imprensa paulistana. Dizia o sábio: “Não temos condições para o desenvolvimento industrial, porque somos um país de analfabetos, com imigração de analfabetos e ainda em anarquia política, econômica e financeira... o problema do Brasil consiste em aproveitar suas terras, as mais vastas, inexploradas do globo”.

Não foram outros os argumentos de Eugênio Gudin, também engenheiro-economista como Roberto Simonsen, na célebre Controvérsia do Planejamento Econômico de 1944.

Na visão da turma anti-industrialista, os defensores das políticas industriais insistem em ilusões, tais como a ocorrência da Revolução Industrial no final do século XVIII. A humanidade, até então sossegada nos misteres do arado e do pastoreio, foi abalroada por esse acontecimento infausto que despertou os devaneios de Alexander Hamilton, nos Estados Unidos, com seu Relatório sobre as Manufaturas e as truculências de Otto von Bismark, encantado com os maquinismos e a ferrovia.

O grande historiador Carlo Cipolla afirmou que a vida dos Homens atravessou dois momentos cruciais: o neolítico e a Revolução Industrial. No neolítico, os povos abandonaram a condição de “bandos selvagens de caçadores” e estabeleceram as práticas da vida sedentária e da agricultura. Entre as incertezas e brutalidades da “vida natural”, tais práticas difundiram condições mais regulares de subsistência dos povos e assentaram as bases da convivência civilizada. Podemos afirmar que ao longo de milênios as sociedades avançaram lentamente nas técnicas de gestão da terra, desenvolvidas à sombra de distintos regimes sociais e políticos e, portanto, sob formas diversas de geração, apropriação e utilização dos excedentes.

“A Revolução industrial’, escreveu Cipolla, “transformou o Homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”. A ruptura radical no modo de produzir introduziu profundas alterações no sistema econômico e social. Aí nascem, de fato, o capitalismo, a sociabilidade, a urbe moderna e seus padrões culturais. A diferença entre a vida moderna e as anteriores decorre do surgimento do sistema industrial que não só cria novos bens de consumo e os bens instrumentais para produzi-los, como suscita novos modos de convivência, novas formas de “estar no mundo”.

A indústria não pode ser concebida como mais um setor ao lado da agricultura e dos serviços. A ideia da revolução industrial trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordinam o desempenho da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como sistema produção apoiado na maquinaria endogeniza o progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e inter-setoriais.

Além de sua permanente auto-diferenciação, o sistema industrial deflagra efeitos transformadores na agricultura e nos serviços. A agricultura contemporânea não é mais uma atividade “natural” e os serviços já não correspondem ao papel que cumpriam nas sociedades pré-industriais. O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento dos demais setores.

Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços gestados nas entranhas da expansão da indústria. Não há como ignorar, por exemplo, as relações umbilicais entre a Revolução Industrial, a revolução nos Transportes e as transformações dos sistemas financeiros no século XIX. São reconhecidas as interações entre a expansão da ferrovia, do navio a vapor e o desenvolvimento do setor de bens de capital apoiado no avanço da indústria metalúrgica e da metalomecânica e na concentração da capacidade de mobilização de recursos líquidos no bancos de negócios.

A história dos séculos XIX e XX pode ser contada sob a ótica dos processos de integração dos países aos ditames do sistema mercantil-industrial originário da Inglaterra. Essa reordenação radical da economia exigiu uma resposta também radical dos países incorporados à nova divisão internacional do trabalho.

Para os europeus retardatários, para os norte-americanos e japoneses e mais tarde para os brasileiros, coreanos, chineses, russos e outros, a luta pela industrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades. Paradoxalmente, a especialização de alguns países na produção de bens não industriais é fruto da própria diferenciação da estrutura produtiva capitalista à escala global comandada pela dominância do sistema industrial. Este é o caso de países dotados de uma relação população/ recursos naturais favorável, como Austrália, Nova Zelândia, Uruguai, Chile. Essa especialização decorre da própria divisão do trabalho suscitada pela expansão do sistema industrial.

* (Homenagem a David Kupfer)

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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