terça-feira, 3 de março de 2020

Joel Pinheiro da Fonseca* - Quem representa o Brasil?

- Folha de S. Paulo

Frente a um Congresso protagonista, governo deveria mostrar mais serviço

O ano de 2019 foi um bom teste da estratégia presidencial de governar sendo hostil aos demais Poderes e instituições, sustentada apenas pelo “povo nas ruas”. Em diversos domingos, tivemos protestos pró-governo. Não consta que um voto de parlamentar sequer tenha sido alterado por esses protestos. Bolsonaro iniciou 2020 muito mais fraco do que iniciara seu governo, e o Congresso, muito mais forte. Não há motivo para crer que os protestos de 15 de março terão resultado diferente.

Dito isso, o sentimento que anima esses protestos é perigoso: ódio ao Congresso. O pretexto da vez é a disputa do Orçamento impositivo, que provavelmente será resolvida com um acordo muito antes de qualquer manifestante pisar na rua. Mas isso não os aplacará. O problema dos defensores radicais do governo não é com o Orçamento, é com a própria existência de um Congresso que não se curve ao presidente. Afinal, na cabeça deles, apenas Bolsonaro representa o Brasil e o povo brasileiro. O Congresso representa interesses privados. Será verdade?

Em termos formais, não. O Brasil é um país enorme, muito diverso e desigual. Não existe uma “vontade popular”. Existem diversas vontades, interesses conflitantes e ideias diferentes sobre como gerir a coisa pública. O Congresso, em sua multiplicidade, sempre será um retrato melhor do Brasil do que o governo federal. “A vontade do povo” é um artifício retórico de quem quer impor, pela intimidação, uma única vontade.

Um dos efeitos colaterais dos repetidos ataques do governo ao Congresso foi não apenas fortalecê-lo como incitá-lo a melhorar. Contra a velha imagem de um Congresso indolente e totalmente entregue a negociatas, vemos hoje os deputados e senadores tomando a dianteira nos grandes debates nacionais.

Assim, não dá para dizer que o governo mostre mais comprometimento com os temas do Brasil. A pauta das reformas econômicas, por exemplo, está sendo protagonizada pelos deputados: a reforma tributária é uma construção do Legislativo. Na área social, a Agenda de Desenvolvimento Social —um pacote de combate à pobreza e à desigualdade— também é iniciativa de deputados. Na educação, é de novo o Congresso que discute a renovação do Fundeb —em diálogo com institutos e especialistas no tema.

Do outro lado, o governo muitas vezes serve a interesses poderosos. Ao propor a anistia à grilagem de terras da Amazônia ou a liberação do garimpo em terras indígenas, ao apoiar tacitamente motins policiais ou dar uma verdadeira colher de chá aos militares na reforma da Previdência; isso é o governo servindo a interesses e pressões corporativistas, assim como faz o deputado de uma bancada.

Não há mocinho e bandido nessa história. Coisas boas podem vir de ambos os lados. Defendo, por exemplo, a prisão após condenação em segunda instância, pauta do governo, e sou contra tornar impositiva as emendas do relator do Orçamento, que neste ano somam R$30,1 bilhões. Em vários outros casos, dou graças a Deus que temos o Congresso para derrubar as loucuras que vêm do governo. A divisão de Poderes existe justamente porque ninguém é santo.

O cabo de guerra entre Poderes é normal e irá muito além deste governo. A dinâmica de competição, se mantida dentro do respeito institucional básico, força ambos a melhorar. Isso é bom. Frente a um Congresso cada vez mais protagonista, em vez de incentivar o ódio popular, o governo deveria mostrar mais serviço. Sem isso, os protestos aos domingos de nada servirão.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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