- O Estado de S.Paulo
Sartre se torna o filósofo do momento. Agora, mais do que nunca, o inferno são os outros
A gente senta para escrever uma coluna. Tema livre. Livre ma non troppo. Dois temas forçam a porta: nossa catástrofe econômica e a pandemia coronavirótica. Como evitá-los, se as pessoas só falam e querem falar deles? Como sair, sem culpa, pela tangente, desviar-se por amenidades, perder-se na estratosfera cultural, divagar sobre coisas mais leves, menores, miúdas? Miúdas como o pibinho da dupla caipora Jair & Guedes, por exemplo.
Versava sobre o pibinho a última crônica de Gregório Duvivier, na Folha de S. Paulo. Divertida, como sempre, com os inuendos fálicos de que o nosso diminuto produto interno bruto nunca escapa quando encolhe além do esperado. Esperado pelos entendidos, não por mim, que nada entendo de economia, só ajudo a pagar a conta. E é justamente porque, como todos vocês, ajudo a pagar a conta, que me preocupo com os rumos da economia.
No final do século passado, ainda no governo FHC, com o dólar a R$ 1,20, reivindiquei, na revista Bravo!, o direito de falar de economia mesmo sendo leigo no assunto, porquanto numa enquete com palpites de diversas categorias profissionais sobre o futuro da economia mundial, nos dez anos seguintes, os economistas não tiraram o primeiro lugar. Nem o segundo. Nem o terceiro.
Mais surpreendentes foram os campeões de acertos: os lixeiros europeus.
De onde viria a presciência do pessoal da limpeza urbana?, perguntei-me na época. A única pista encontrada foi que os lixeiros talvez tenham uma visão mais clara, além de empírica, de como funciona a economia por trabalharem em contato direto e permanente com o que a sociedade consome, desperdiça e joga fora. O lixo é um dos índices mais confiáveis de nosso poder de compra e de nossa capacidade para controlar gastos.
Ao cabo dessa especulação, sugeri que FHC acrescentasse um gari à equipe de Pedro Malan, proposta que, por inútil, não estendo ao capitão que ora nos desgoverna.
Mas chega de economia. Fiquemos no huis clos paradoxalmente imposto e condenado pela pandemia do coronavírus. Não sei se vocês já se deram conta, mas nem no auge do existencialismo Sartre mostrou-se tão certeiro como agora. O distanciamento entre as pessoas recomendado pelos sanitaristas fez dele o filósofo do momento. Agora, mais do que nunca, o inferno são os outros.
No claustro a que o coronavírus, essa aids assexuada, nos condenou, só nos restarão tarefas e lazeres solitários ou quase isso. Com eles espantaremos o tédio, mas não, infelizmente, a paranoia. Graças ao convívio nas redes sociais, ainda encontramos ânimo para achar graça na desgraça. Há dias, no Twitter, alguém comentou que, de tanto esfregar o braço e as mãos com água, sabão e álcool gel, apareceu uma cola que fizera na faculdade em 1993. Uau! Um pentimento braçal.
Em nossa compulsória vida monástica ficaremos mais, como dizem os franceses, “cultivés”. Leremos mais, veremos mais filmes e ouviremos mais música. Leituras escapistas ou atinentes à pestilência em curso? Se atinente, ficção ou não ficção? Filmes sobre epidemias e pandemias é o que não falta, mamma mia!
Ainda não parei para pensar numa playlist que vá além da 5.ª Sinfonia de Mahler, que, no filme de Visconti, Morte em Veneza, baseado no romance de Thomas Mann, embala os últimos dias de Aschenbach, vítima de um amor platônico em tempos de cólera. As canções e danças macabras de Mussorgsky também cabem, mas para que insistir na depressão?
Graças à covid-19, aprendi uma palavra nova: fômite ou fómite. Não tem ainda no Houaiss. É o nome técnico que se dá a qualquer objeto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e transportar organismos contagiantes ou infecciosos (de germes a parasitas), de um indivíduo a outro. Tudo que possa contaminar ao menor contato – torneira, maçaneta, corrimão, copo, botões de elevador, teclas, sapatos, etc. – é um fômite.
Para nos livrar de possíveis germes (e vírus!) transmitidos por fômites que lavamos bem as mãos e os pulsos ao chegarmos da rua; tanto melhor se com o mesmo apuro de Larry David na comédia de Woody Allen, Tudo Pode Dar Certo, cantando “Parabéns pra você” duas vezes seguidas: 20 segundos, no relógio. Taí um filme a ser visto durante nossa reclusão virótica. Escapista, mas didático. E infinitamente mais leve que O Sétimo Selo, de Bergman.
Aprendi o novo vocábulo com a personagem de Kate Winslet no filme Contágio. Lançado aqui em 2011, só o vi na noite de terça-feira; em casa, que não sou besta de ir a uma sala de cinema. A distância no tempo lhe fez bem, aumentou-lhe a ressonância. Dirigido com pulso firme por Steven Soderbergh, não inova em nada, mas antecipa fielmente a escalada pânica que o noticiário ora nos despeja diariamente, presentificando uma calamidade que se tornou menos ficcional quando a covid-19 reapareceu na China, meses atrás.
O vírus de Contágio surge em Hong Kong, propaga-se com espantosa e incontrolável velocidade, dizima populações e alguns dos protagonistas do filme. Não é um vilão visível, antropomorfizado, sob a forma de zumbi ou de um serial killer com fetiches e traumas mal resolvidos. Por isso, mete mais – muito mais – medo.
É menos um espetáculo de horror do que um thriller sobre o desamparo do ser humano e suas reações a um ataque súbito e frontal à sua vulnerabilidade, agravado pela intromissão de fake news no circuito, como o que agora enfrentamos. Com um final feliz: uma vacina é descoberta a tempo de salvar o resto da humanidade.
Em dezembro, antes do surto da covid-19, Contágio era o 270.º filme mais visto e baixado da Warner Bros. Já pulou para o segundo lugar. Prefira o streaming à cópia física alugada. Caixinha de DVD é um fômite de alta periculosidade.
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