sábado, 14 de março de 2020

Ascânio Seleme - Saúde e política

- O Globo

Não há dúvida de que a pandemia de coronavírus vai ser usada politicamente no Brasil e em todo lugar

Nenhuma dúvida de que a maior crise sanitária global desde a gripe espanhola vai ser usada politicamente aqui e em todo lugar. Nos Estados Unidos já virou matéria central da recém-iniciada campanha para a eleição presidencial de novembro. Os sinais são evidentes. Donald Trump, que menosprezou o coronavírus dizendo que não era nada, que iria passar etc., acabou tomando uma medida tão sem precedentes que guarda uma conotação política evidente. Ao anunciar a suspensão de voos da Europa para os EUA, Trump disse “nosso time é o melhor do mundo (...) tomamos intensas ações e temos muito menos casos do que a Europa (...) a União Europeia falhou”.

Papo furado. Os EUA foram pegos de calça curta e só começaram efetivamente a se mobilizar nesta semana. Ninguém irá se surpreender se em alguns dias houver mais casos lá do que na Europa, Itália inclusive. O que Trump quis dizer na sua fala é que não lhe cabe qualquer responsabilidade, que ele fez o dever de casa. Não é verdade. As ações do seu governo foram tímidas desde o começo e eram endereçadas apenas para a China. Ainda agora, fora o cancelamento dos voos da Europa, todas as iniciativas estão sendo tomadas por prefeitos e governadores ou por instituições privadas como universidades, museus e ligas esportivas.

Na terça-feira passada, Trump chegou a acusar a Organização Mundial de Saúde (OMS) de mentir sobre a taxa de mortalidade do vírus, de 3,4%. Além de minimizar a transmissão do vírus, dizendo que “isso vai passar”, o presidente se mostrou surpreso com o dado quando a ele foi apresentado numa entrevista para a Fox News. “Eu acho que o número 3,4 por cento é um número realmente falso”. Ele disse esta barbaridade um dia antes de a OMS oficializar a pandemia de coronavírus. E só então sua ficha caiu.

A mobilização em curso nos EUA ocorre também em razão do esforço das grandes emissoras de TV, abertas ou por cabo, que dedicam 70% a 80% de seus espaços noticiosos para esclarecer as pessoas, ouvir médicos, infectologistas, especialistas que trazem informações de como proceder. Nenhuma autoridade sanitária se manifestou oficialmente até aqui, apenas em entrevistas. Quem fala aos americanos são os líderes políticos. A discussão sobre o coronavírus ganhou contorno político e será o principal tema do debate entre os pré-candidatos democratas Joe Biden e Bernie Sanders, domingo.

Em Nova York, o protagonismo foi assumido pelo governador Andrew Cuomo e pelo prefeito de NYC, Bill de Blasio, ambos democratas. Foram eles que arregaçaram as mangas, colocaram seus coletes e bonés e ganharam as ruas. Em Washington, a presidente da Câmara, a também democrata Nancy Pelosi, saiu na frente e convocou a imprensa ontem para dizer num solene pronunciamento que os democratas estavam aprovando um pacote contra o coronavírus e a favor das famílias americanas. Poucas horas depois, Trump anunciou um plano de emergência liberando US$ 50 bilhões para atender pacientes e hospitais.

Claro que a culpa pelo coronavírus não é de Trump ou de sua administração. Mas é claro também que a demora em dar uma resposta forte pode resultar em rápida perda de capital político. E o eleitor americano sabe disso. Uma pesquisa da Reuters mostrou que apenas dois republicanos em cada dez diziam acreditar que o coronavírus seria uma ameaça iminente. Entre os democratas, quatro em dez enxergavam o perigo batendo à porta. Estas respostas carregam uma implícita vontade política. Que alívio seria para Trump e sua turma se tudo não passasse de uma marolinha.

No Brasil, o impacto sobre Bolsonaro não será sentido logo. Mas talvez alcance as eleições municipais.

Aprendeu e gostou
O Congresso aprendeu a exercer o poder e gostou da experiência. Até a entrada em vigor do método Bolsonaro de governar, deputados e senadores se satisfaziam com suas emendas paroquiais, e um bom número de partidos era “comprado” pelo Executivo. E não foi só Lula com o mensalão, todos os presidentes sempre abusaram do poder de barganhar com o Congresso. Com a recusa do capitão de ceder a demandas parlamentares em troca de apoio político, até mesmo estimulando que o Congresso exercesse o seu poder, a história mudou. E agora Bolsonaro e sua turma reagem como se fosse o fim do mundo. Não há razão para pânico, o Parlamento não fez mais do que cumprir a Constituição, ocupando legitimamente espaço político aberto por Bolsonaro.

O perigo da quarentena
O Brasil respira aliviado, seu presidente não pegou coronavírus. Imaginem se Bolsonaro estivesse de fato infectado e fosse obrigado a se submeter uma quarentena de 15 dias. O país iria à loucura com o capitão em casa, tendo nada para fazer, dedicando tempo integral ao Twitter.

Home office
Trabalhar em casa, aliás, tem algumas vantagens. Em tempos de coronavírus, empresas tendem a aumentar significativamente o trabalho remoto para muitos dos seus postos que não exigem presença física do empregado. Parece muito bom: trabalhar em sossego, sem distração, fazendo refeições saudáveis, sem se estressar no caminho do escritório. Pedro Doria publicou ontem uma boa coluna sobre o assunto. Mas há quem pense de modo distinto. O colunista de tecnologia do jornal “The New York Times”, Kevin Roose, fez uma pesquisa para um livro e concluiu que pessoas que trabalham em casa perdem em criatividade e pensamento inovador. E os que trabalham em conjunto chegam mais rapidamente a soluções de problemas do que os que trabalham remotamente.

Recado de Rothschild
Se deu bem quem seguiu o conselho de um do mais importantes banqueiros da História financeira global, o Barão de Rothschild. “Compre bens quando há sangue nas ruas”, disse o barão, com a experiência de quem atravessou guerras e delas saiu ainda mais rico. O sangue de hoje atende pelo nome de coronavírus e jogou as bolsas de todo mundo no chão. Quem comprou ações na baixa, se deu bem.

Já não se faz mais capitalista…
Falta álcool gel (hand sanitizer) em Nova York. Desde o início da semana não se encontra o produto em farmácias e lojas de conveniência. E o incrível é que até ontem não houve reabastecimento. Fabricantes e comerciantes estão perdendo a oportunidade de produzirem mais e venderem mais. No Rio, durante a crise da geosmina da Cedae, não faltou água mineral para quem quisesse e pudesse comprar. Estavam empilhadas em supermercados, padarias e postos de gasolina. Essa é a regra número 1 do capitalismo, não perder oportunidades e sempre atender as necessidades do mercado.

Enquanto isso
Uma rede de cafés dos EUA lançou uma inusitada maneira de fidelizar clientes. Criou uma espécie de assinatura onde o consumidor paga US$ 8,99 (R$ 42,79) por mês e toma quantos cafés quiser ao longo dos 30 dias. Outra: uma rede de academias de ginástica inovou apresentando um programa em que o cliente paga US$ 22 (R$ 104) por mês e pode sempre levar um convidado para malhar consigo. Vai ver o preço do cafezinho no Rio. E nas academias daqui o cliente tem que pagar mensalidade até para o seu personal trainer.

O México é aqui
Dezenas de milhões de mulheres não saíram às ruas no México na segunda-feira passada, dia 8. Não se tratou de precaução contra o coronavírus, mas sim um protesto no Dia Internacional da Mulher contra a escalada de violência a que mexicanas são submetidas sem serem efetivamente defendidas pelas autoridades judiciárias e policiais do país.

Choko popsicle
Tudo aponta para que Joe Biden seja mesmo o candidato democrata na eleição presidencial deste ano. O problema é que Biden é uma espécie de picolé de chuchu americano, meio sem graça, fala mais ou menos mansa, um pouco tímido. Mas talvez seja isso o que os EUA precisem depois dos ruidosos quatro anos de Trump.

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