- Folha de S. Paulo
Apagão de liderança agravou pandemia
A política internacional, nos últimos anos, parecia guiada pela massa de pessoas anônimas. Da Praça Tahrir ao Occupy Wall Street.
Mais recentemente, das ruas de Hong Kong às do Chile. Dos tuítes, retuítes, likes e bots das redes sociais. E, agora, dos gráficos de curvas ascendentes de casos de coronavirus.
No entanto, a pandemia da Covid-19 mostra como, em um momento de crise sistêmica, as escolhas de algumas poucas pessoas com enorme poder, em certas capitais, determinarão o destino de incontáveis vidas e o futuro da economia global. Líderes, afinal, importam.
Essa virada é particularmente assustadora quando, à frente da maior potência da história da humanidade, está Donald Trump.
O risco geopolítico que Trump representa foi normalizado nos últimos anos.
Mas com o abismo do coronavírus a olhar dentro de nós, começa-se a entender o custo real de se ter, em Washington, um governo disfuncional, anticientífico, em guerra contra as instituições democráticas e a imprensa, e sem credibilidade internacional.
O mecanismo da negação foi simples. Trump herdou uma economia em expansão e pisou no acelerador cortando impostos (as consequências do déficit americano, um dia saberemos).
Em uma situação de pleno emprego e com a bolsa batendo recordes, o setor privado passou a vê-lo como uma distração excêntrica.
Apesar de tensões na Coreia do Norte, Crimeia ou Irã, o risco de guerra permaneceu baixo. E a pujança da economia americana reduziu o impacto das guerras comerciais com a China, e de outros disparates.
Com céu de brigadeiro, ninguém pensa no piloto. Agora, entramos na tempestade.
Trump continua a repetir que há testes suficientes para todos, apesar do consenso entre especialistas de que isso não é verdade. Diz que o vírus —até pouco, fake news para roubá-lo a reeleição— deve ser levado a sério.
A falta de credibilidade do governo e as mensagens truncadas agravaram a situação no mercado.
No primeiro tombo da bolsa, no dia 24, Trump decretou que o coronavírus estava “sob controle nos EUA”.
O país contava 14 casos em 6 estados. Em duas semanas, a cifra, apesar das restrições de exames, saltou a 1.600 em 49 estados.
Além de algumas ideias soltas de eficácia questionável, como descontos em folha de pagamento, ninguém sabe ainda como a Casa Branca reagirá ao choque econômico.
E o histórico de ofensas a líderes mundiais, hostilidade a aliados e o enfraquecimento de organismos multilaterais começa a cobrar seu preço.
Em um pronunciamento na TV na quarta-feira, Trump anunciou bloqueio a viagens e produtos da Europa.
Europeus não haviam sido informados de nada. Depois, descobriram que as duas informações estavam erradas. A crise de 2008 foi respondida no âmbito do G20. Difícil imaginar algo semelhante hoje.
São óbvios os paralelos de Trump com Jair Bolsonaro –que, dias atrás, chamava o vírus de “fantasia” e ajudava a convocar manifestações de rua–, mas eles param nas assimetrias de poder entre EUA e Brasil no mundo.
São óbvios também os contrastes entre Trump e Bolsonaro com outros líderes globais.
Com serenidade, compaixão e franqueza, a chanceler Angela Merkel admitiu aos alemães que “milhões” serão contaminados.
Emmanuel Macron falou à nação a verdade e agradeceu, em nome da França, aos profissionais de saúde na linha de frente.
A pergunta agora é o que virá depois da tempestade, se ficar claro que decisões desastrosas tiveram um custo econômico e em vidas humanas. Será que o mecanismo da negação sobreviverá?
*Roberto Simon, é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
Nenhum comentário:
Postar um comentário