- Valor Econômico
É inegável que o país carrega acentuado viés oculto dos mais “claros” em relação aos mais “escuros”
Neste Valor, em uma coluna publicada no dia 3 de abril de 2019, “Uma História de Violência”, descrevi uma situação de agressão racial que presenciei na minha juventude. Foi no final da década de 1980, com meu amigo Paulo Chitunda, de origem angolana, durante uma abordagem policial.
Caminhávamos à noitinha nas belas ladeiras da cidade alta de Olinda, onde morávamos, quando um camburão da polícia parou e três policiais com arma na mão desceram do carro e abordaram Paulo Chitunda agressivamente, antes de qualquer questionamento. Os policiais não tocaram em mim e nem em nosso outro amigo, Marcelo, loiro, que nos acompanhava. Paulo, talvez pelo viés racista da nossa sociedade e também pela própria educação familiar rígida, era o que menos dos três transgredia as normas sociais da época. Essa é uma história muito triste, mas que, infelizmente, se repete no Brasil atual, como o próprio Paulo, hoje professor de história do ensino médio, é enfático em afirmar.
Essa triste memória retornou me causando profunda angústia enquanto sofria junto com meu filho Mateus, de 15 anos, os horrores de quase 9 minutos do vídeo no qual o policial americano Derek Chauvim pressiona com o joelho o pescoço de George Floyd, que estava algemado e de bruços, até a morte. “Não consigo respirar”, clamava Floyd repetidamente, enquanto várias pessoas que passavam na rua pediam para o policial interromper tal ação. Outros policiais que acompanhavam o Derek Chauvim não tentaram impedir tal conduta criminosa.
Após o óbito e a divulgação do vídeo, uma onda de protestos, “Black Lives Matter”, começou em diversas cidades americanas e toques de recolher foram ordenados para conter a revolta da população. Cenas de lojas saqueadas e carros queimados foram vistas ao longo dos últimos dias. Os protestos, não com a mesma intensidade, se espalharam para outros cidades do mundo, como Londres e o Rio de Janeiro. Que as cenas lamentáveis dos confrontos nas ruas não tirem o foco do protesto, que é a questão racial, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países.
Não é a primeira vez que a morte de um preto por um policial americano gera protestos intensos nos Estados Unidos. Mas o que os dados sugerem? Há racismo sistemático da polícia americana?
O jornal Washington Post faz um levantamento anual de pessoas mortas por policiais nos Estados Unidos. Em 2019, 1014 pessoas foram mortas a tiros por policiais no país, e uma proporção alta das vítimas foram de cor negra.
Em artigo acadêmico publicado na revista da Academia Americana de Ciências (PNAS), Frank Edwards da Universidade de Rutgers e colaboradores, calcularam que a probabilidade de um homem preto ser morto pela polícia é 2,5 vezes maior do que a de um homem branco nos Estados Unidos. No entanto, neste trabalho, os pesquisadores não controlam o fato dos pretos americanos serem mais pobres e morarem em lugares mais violentos do que os brancos. O que poderia explicar a diferença de probabilidade de mortes pela polícia de brancos e pretos e que não necessariamente implica um viés racial da polícia. Tal viés existiria se, em uma mesma situação, os negros são tratados de forma diferente dos brancos.
Em um trabalho que saiu no periódico científico editado pela Universidade de Chicago, Journal of Political Economy, em 2019, Roland Fryer, economista da Universidade de Harvard, publicou uma pesquisa que atraiu bastante publicidade sobre o assunto. Neste trabalho, Fryer, que em 2007, aos 30 anos de idade, se tornou o mais jovem afro-americano a ser efetivado para o quadro principal de professores de Harvard, mostrou que de fato existe um forte viés da polícia americana contra os pretos em diversas situações.
Mesmo considerando um conjunto de fatores (como idade, vizinhança e natureza da infração) que caracterizam uma abordagem policial, os pretos tem uma maior probabilidade de serem interrogados, algemados, jogados ao chão e receberem um spray de pimenta, do que os brancos em situações semelhantes - por exemplo, após uma infração no trânsito no qual o motorista está desarmado. Assim, a abordagem do Derek Chauvim, que causou a morte de George Floyd pode, de acordo com os resultados do Fryer, ser explicada a partir de um viés racial.
Por outro lado, um resultado da pesquisa do Fryer que levou a um caloroso debate foi que, dada uma situação de interpelação policial, não há viés racial da polícia americana no uso da arma de fogo. Ou seja, em uma determinada infração, por exemplo, envolvendo um furto, a polícia americana não atira mais em média nos pretos do que nos brancos.
Há críticas em relação ao trabalho do Fryer, já que sua amostra não é representativa e os boletins policiais usados para construir a base de dados do pesquisador foram preenchidos pela própria polícia. Mas a conclusão central do trabalho é que há viés racial significativo da polícia em várias situações, mas não no uso da arma de fogo.
No Brasil, apesar da discriminação “racial” ser crime de altíssima gravidade, é inegável que o país carrega acentuado viés oculto dos mais “claros” em relação aos mais “escuros”.
Ver, por exemplo, os experimentos controlados por Marcos Lima e Jorge Vala, publicados no periódico científico Psicologia: Teoria e Pesquisa. Nos experimentos, indivíduos brancos deveriam avaliar um grupo de pessoas negras e um grupo de pessoas brancas (representados por fotografias) que obtinham sucesso social ou que eram mal-sucedidos socialmente. Os autores mostram que os negros que obtêm sucesso social são percebidos como mais brancos do que os pretos que fracassam. Além disso, quanto mais os pretos com sucesso são percebidos como brancos mais características tipicamente humanas lhes são atribuídas. O inverso se passa para os pretos mais percebidos como pretos.
A tendência de atenuar a cor dos indivíduos bem-sucedidos é prática antiga e descrita com detalhes pelo antropólogo Oracy Nogueira ainda nos anos 50. Esse é um problema grave que é intrínseco na nossa sociedade.
Em relação à nossa polícia, faltam estudos semelhantes ao do Fryer com dados brasileiros para realmente identificar e quantificar o viés racial. No entanto, narrativas diversas parecem descrever a existência de forte viés racial da nossa sociedade e da polícia, como, por exemplo, as relatadas no início desse artigo.
*Tiago Cavalcanti é professor de Economia na Universidade de Cambridge e na FGV-SP
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