Para professor da UFRJ, especialista em militarismo, Forças Armadas não representam mais parte moderna da sociedade para arrogarem papel moderador
Por Cristian Klein | Valor Econômico
RIO - Especialista na relação entre a caserna e a política brasileira, o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eduardo Costa Pinto, anota na ponta do lápis os principais pontos da escalada do militarismo nos últimos anos e afirma ver com cada vez mais preocupação a possibilidade de tentativa de autogolpe pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Lembra que o guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, já proferia palestras em quartéis desde os anos 1990, reforçando um caldo ideológico que hoje mobiliza o discurso radical de generais e oficiais de diferentes patentes espalhados por toda a administração federal.
Em sua opinião, o avanço começou já na campanha presidencial, quando os militares encamparam a candidatura Bolsonaro de modo não pessoal, mas “bem institucionalizado”. Para o professor, a intervenção militar já existe na medida em que o governo é ocupado por quase 3 mil militares da ativa e da reserva, um contingente maior, aponta, do que na época do regime militar. “Bolsonaro, esse é o ponto, é instrumento dos militares. Os militares voltaram ao poder pela eleição”, diz. Para o especialista, hoje não haveria muito sentido em se falar em golpe pois os militares já estão no poder. “Mas o que tem acontecido, de forma muito perigosa, é que eles estão balançando as armas a todo momento para evitar que um pedido de impeachment prospere. Já vivemos uma democracia restrita”, afirma.
Para Costa Pinto, as instituições brasileiras continuam de pé, mas “estão em frangalhos” e não conseguem mais realizar seu papel de reduzir as incertezas. Por isso, o país vive no curto prazo “há quatro ou cinco anos”.
O professor concorda com a tese de que, no passado, durante a República Velha e o movimento tenentista, o militarismo no Brasil, como em outros países, até poderia ser explicado por terem sido as Forças Armadas uma “parte moderna” da sociedade que tomou para si o papel de vanguarda no processo de urbanização e de desenvolvimento. Mas que isso não se aplica ou se justifica mais:
“Não dá para dizer que é o moderno. É o contrário. Nunca foi tão atrasada a cabeça do militar hoje. É como se ainda vivessem na Guerra Fria”.
Segundo o especialista, a adesão a ideias do conservadorismo norte-americano dos anos 1980 tornou as Forças Armadas uma instituição aderente a teorias conspiratórias, como a do marxismo cultural, ou de vertente preconceituosa, como o racismo. “Isso está em todas as falas do [ex-comandante do Exército, general] Villas Bôas sobre o politicamente correto, por exemplo num vídeo dele de 2018”, afirma.
Costa Pinto afirma que, desde a saída do ex-ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), em junho, não se pode mais falar da disputa entre duas alas para influenciar o presidente: uma militar e racional e outra ideológica, liderada pelos filhos Carlos e Eduardo Bolsonaro, sob inspiração do guru da família, que mora na Virgínia, nos Estados Unidos.
A demissão do general, argumenta, representou a vitória da ala olavista e do núcleo mais radical do governo. Isso, porém, não representou a derrota dos militares em si. Reforçou o que chama de herdeiros do general Sylvio Frota, líder da corrente linha-dura durante a ditadura militar.
É uma turma, diz o professor, que foi influenciada, depois da redemocratização, pelo general Sergio Augusto Avellar Coutinho, morto em 2011. Embora sem muito destaque à época, o pensador militar difundiu nas Forças Armadas, com ligeiras alterações, o corpo de ideias de extrema-direita associado hoje a Olavo de Carvalho, como a condenação ao politicamente correto.
“É o Avellar Coutinho quem traz a linguagem do Olavo para a linguagem militar”, afirma Costa Pinto, lembrando que o hoje guru do bolsonarismo já disseminava na caserna, há quase 30 anos, as ideias, não originais, mas tiradas do ultraconservadorismo americano, como o conceito de guerra de quarta geração, de William Lind.
Após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, Avellar Coutinho afirmava em palestras e livros que o comunismo não havia acabado. Teria apenas mudado de estratégia, buscando uma hegemonia cultural gramsciana no campo dos valores. Por meio de uma suposta guerra cultural, os comunistas estariam atacando não mais a propriedade privada mas subvertendo os valores da sociedade e da família tradicional, os tornando senso comum.
Com isso, os militares passaram a enxergar e a se preocupar mais com um alegado inimigo interno do que uma com uma hostilidade da geopolítica externa. Apesar disso, afirma o especialista, as Forças Armadas nunca quiseram, a partir do fim dos anos 1980, voltar ao poder, como na ditadura, em torno de um projeto claro. “Tanto que não estão preparados”, aponta. Mas a eleição de um ex-capitão à Presidência os trouxe novamente à cena. “Os quartéis se politizaram”, lamenta.
Para Costa Pinto, a interferência dos militares no ambiente político não tem nada a ver com a ocupação do espaço como uma instituição mediadora de conflitos entre Poderes, partidos ou mesmo de defesa de bandeiras. Na questão da corrupção, por exemplo, “na hora H”, diz, ficaram ao lado do presidente e não do lavajatismo e do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. “Não tem nada de poder moderador”, afirma.
O professor vê no retorno dos militares a busca pelo atendimento de interesses corporativos. Haveria um ressentimento por terem sido responsabilizados sozinhos pela ditadura, que também contou com apoio do setor civil, e pelo fim do tratamento especial à categoria após a redemocratização.
Com Bolsonaro, aponta, os militares tiveram ganhos mesmo em tempo de acentuada crise fiscal, e puderam voltar a dirigir seus interesses como reajustes salariais, aumento do orçamento para projetos das Forças Armadas e proteção contra a reforma da Previdência. As demandas corporativas, acrescenta, foram travestidas de interesse geral da nação, como a suposta defesa da moralidade pública e da bandeira anticorrupção, embora o próprio presidente tente se blindar de investigações que atingem o governo e sua família.
Para Costa Pinto, os militares prestaram seu apoio a Bolsonaro desde a campanha e a cúpula das Forças Armadas achou que poderia controlá-lo, entre eles Santos Cruz, general cuja carreira desfruta de “respeito enorme” mas que “foi enxotado” do governo.
O especialista afirma que o Alto Comando não compartilha do bolsonarismo raiz e se preocupa com a quebra de hierarquia. Observa que o comandante do Exército, Edson Pujol, está “completamente quieto” pois não confia no presidente, embora ideologicamente pense de forma semelhante aos demais oficiais da cúpula. “Bolsonaro e os militares são peças da mesma engrenagem”, afirma.
A atitude discreta de Pujol contrasta com a do antecessor no cargo, Villas Bôas, a quem Bolsonaro já atribuiu responsabilidade por ter chegado ao Planalto. O ativismo de Villas Bôas na cena política tornou-se desabrido já durante a pré-campanha presidencial. Em abril de 2018, o general postou uma mensagem pelo Twitter em que buscou intimidar, como ele mesmo reconheceu depois, ministros do Supremo que julgariam o habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Mesmo preso, Lula liderava a corrida ao Planalto com 31% das preferências, contra 15% de Bolsonaro. “Muitos acharam bonito aquele tuíte de véspera porque era contra um inimigo político, mas agora estão vendo o risco. Estamos caminhando para uma hecatombe gigantesca. Essas ameaças geram um profundo desequilíbrio no ‘checks and balances’ de uma democracia”, afirma o professor, para quem “se abriram muitas caixas de Pandora” nos últimos anos no Brasil, inclusive no Judiciário, com a operação Lava-Jato. “Foram vários ativismos, mas o dos militares tem as armas”, diz.
Segundo Costa Pinto, “eles, no momento, estariam blefando” mas a reação natural da sociedade civil é: “vamos pagar para ver?”. Por outro lado, o professor questiona se os militares também estariam dispostos a arcar com os pesados custos de uma intervenção, depois de terem trabalhado tanto nas últimas décadas na recuperação da imagem das Forças Armadas, desde o fim da ditadura. “Pode ter o impacto da Guerra das Malvinas para os militares na Argentina.
Podem sair muito piores do que foi em 1985, pois no regime de 1964 ainda se alega ter havido um projeto de país, desenvolvimentista, o que não acontece agora”, diz.
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