Feminicídios em alta desafiam o poder público
O Globo
Primeiro semestre deste ano registrou maior
incidência do crime desde o início da série histórica
São perturbadoras as estatísticas de
feminicídio compiladas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O
levantamento, com base nos dados das secretarias estaduais, registra 722
feminicídios no Brasil no primeiro semestre de 2023, maior número desde o
início da série histórica, em 2019. Apesar das boas intenções de governos, ONGs
e movimentos sociais, o país ainda não sabe como lidar com o flagelo.
O número representa um aumento de 2,6% na comparação com os 704 feminicídios no primeiro semestre do ano passado. Pode não parecer muito, mas o percentual esconde disparidades que demandam ação. No Sudeste, única região a apresentar crescimento nos casos, a alta foi de 16,2%, de 235 para 273. Das 27 unidades da Federação, 14 registraram mais feminicídios, 12 menos e uma manteve estabilidade. Na comparação, a maior alta percentual ocorreu no Distrito Federal (250%).
O cenário esboçado no primeiro semestre
acentua a tragédia de 2022, quando o país registrou 1.437 feminicídios, aumento
de 6,1% em relação a 2021. A cada dia, em torno de quatro mulheres são
assassinadas no Brasil em circunstâncias que envolvem violência doméstica,
familiar ou discriminação. Tais números traduzem dramas relatados
cotidianamente no noticiário. As histórias são parecidas: companheiros ou ex,
inconformados com o fim do relacionamento ou com qualquer vestígio de
independência, resolvem silenciar mulheres à bala.
Não há dúvida de que governo e sociedade têm
agido para estancar a barbárie. As leis Maria da Penha, de 2006, e do
Feminicídio, de 2015, são exemplos de aperfeiçoamento do arcabouço legal para
coibir a violência contra as mulheres. A legislação se tornou mais rígida.
Canais oficiais para denúncias de agressões foram criados, campanhas educativas
se multiplicaram, movimentos sociais aumentaram a pressão sobre as autoridades.
Mais mulheres têm procurado o Judiciário para
se blindar contra seus agressores. Segundo dados do FBSP, no ano passado foram
concedidas mais de 1.200 Medidas Protetivas de Urgência por dia, aumento de
13,7% em relação ao ano anterior. Em tese, elas impedem que companheiros e
ex-companheiros se aproximem das vítimas.
Infelizmente, os números em ascensão mostram
que as ações, embora louváveis, não têm sido suficientes para conter os crimes.
Mesmo com Medidas Protetivas, mulheres são assassinadas. É preciso fazer mais.
Primeiro, é essencial se debruçar sobre as estatísticas e agir onde o problema
é mais agudo, uma vez que o aumento dos feminicídios não é homogêneo. Há
estados que contribuem para elevar as estatísticas, caso de São Paulo, onde
eles aumentaram 33,7%.
Além disso, é preciso incentivar as denúncias
— em muitos casos, as vítimas não registram ocorrência ou não pedem Medida
Protetiva — e melhorar a rede de acolhimento. É fundamental ainda adotar os
programas bem-sucedidos, e não são poucos. As patrulhas Maria da Penha, que
fazem rondas nas residências de mulheres ameaçadas, estão em curso em vários
estados com bons resultados. No Rio Grande do Sul, a Justiça tem autorizado o
uso de tornozeleiras eletrônicas para monitorar agressores. As mulheres
ameaçadas recebem alertas pelo celular quando eles se aproximam. Soluções
existem. O que não se pode é achar a epidemia de feminicídios algo normal.
Incêndios florestais reforçam a necessidade
de política ambiental
O Globo
Secas extremas serão mais frequentes,
facilitando a propagação do fogo. Precisaremos estar preparados
Os incêndios florestais, em meio às ondas de
calor, precisam entrar na agenda das autoridades. Do dia 8,
quando a temperatura começou a subir, até o último dia 14, houve 6.395
incêndios, 74% a mais que nos mesmos dias do ano passado e 307%
acima de 2021. Ainda que continue a haver queimadas em que agricultores perdem
o controle das chamas, não há evidências de que estejam em alta (a temporada de
queimadas costuma terminar em setembro). E também existe a combustão natural,
sobretudo em razão da queda de raios na vegetação. No solo seco, fica difícil
conter qualquer foco de incêndio. Independentemente da origem do fogo, seja
natural, seja queimada, a principal causa do descontrole hoje é a seca.
As chamas começaram a arder há dez dias no
Parque Estadual Rio Negro, em Corumbá (MS),
e deixaram extenso rastro de fogo que queimou 60 mil hectares até atingir a
BR-262, que liga Vitória (ES) a Corumbá. Normalmente, não ocorrem queimadas em
novembro na região, por ser o início da temporada de chuvas. Segundo Marcio
Yule, coordenador do Prevfogo, centro técnico de incêndios florestais do Ibama
em Mato Grosso do Sul, não havia preocupação até agosto. A ocorrência de
incêndios estava 25% abaixo da média histórica, seguindo a tendência nacional
de queda no desmatamentos (quem desmata também costuma usar fogo para limpar o
terreno). Mas a seca acabou com a tranquilidade.
No início da semana passada, um incêndio em
torno do Parque Nacional do Pantanal —maior preocupação,segundo Yule — superava
o de Corumbá. Desde o final de outubro, já destruiu 200 mil hectares. Voltam a
aparecer fotos de jacarés calcinados, aviso de que faltará alimento para as
onças-pintadas, que tornarão a rondar o que resta dos rios e lagoas atrás do
que comer. Devido ao aquecimento global, a situação tende a se repetir com mais
frequência, mesmo nos períodos em que o fenômeno El Niño não for intenso.
O fogo também preocupa em Santarém e
Altamira, no Pará. Em outubro, incêndios na Amazônia jogaram
cinzas sobre Manaus. Também há combustão em Minas, Bahia, Tocantins, Mato
Grosso, Rondônia, Maranhão e Piauí. Mesmo com a queda do desmatamento na
Amazônia, ainda há incêndios, diz Mariana Napolitano, diretora de Estratégia da
WWF-Brasil. A região enfrenta a seca mais severa em 120 anos. A floresta,
ressecada, mais degradada, queima mais fácil.
Um plano existente desde 2021 envolve a
abertura de aceiros e construção de açudes artificiais (corixos) para facilitar
a luta contra as chamas. Infelizmente, apenas um corixo foi feito. As três
instâncias de governo deveriam elaborar, em articulação com o setor privado,
políticas contra os incêndios florestais. Ao mesmo tempo que se combate o
desmatamento, deve-se alertar os agricultores sobre os riscos das queimadas,
além de investir nas tecnologias de prevenção e combate ao fogo. As alterações
no clima devem tornar mais frequentes as secas extremas, bem como as chuvas
torrenciais. Precisaremos estar preparados.
Governo ganha tempo para definir a meta
fiscal
Valor Econômico
Os argumentos para convencer parlamentares a
fechar buracos fiscais se enfraqueceram diante da perspectiva de que o governo
tolerararia déficits fiscais
Não foi tomada decisão final sobre qual será
a meta fiscal a ser perseguida pelo governo em 2024. Há uma operação de endosso
do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atropelado súbita e inesperadamente
pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que veio a público dizer que o
objetivo fiscal não precisaria ser zero e que um déficit de 0,25% ou 0,5% do
PIB nada significaria. “Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a
começar o ano fazendo corte de bilhões em obras que são prioritárias para o país”
(27 de outubro). Em poucas palavras, o presidente tirou o chão do principal
ministro do governo, em pleno esforço para conseguir apoio a medidas que
ampliem as receitas, além de desmoralizar um novo regime fiscal que sequer
estreou ainda. Lula quase conseguiu desfazer aquilo que o novo regime tentou
construir: credibilidade e previsibilidade.
O governo tenta corrigir o estrago e empurrar
para frente a decisão sobre a mudança da meta, se for o caso. A disposição do
presidente de não por o pé no freio via contingenciamentos não parece ter sido
refreada.
Lula fulminou a primeira futura meta logo depois de o Congresso ter aprovado o novo regime fiscal, o que afetou as chances de sucesso de Haddad obter no Congresso apoio a medidas para aumentar a arrecadação, como a tributação dos fundos offshore e exclusivos (previsão de R$ 21,3 bilhões), fim da dedução dos juros sobre capital próprio (R$ 10,5 bilhões) e a que retira isenção de estímulos fiscais dados pelos Estados, via ICMS, em impostos federais (R$ 35,3 bilhões). Os argumentos para convencer parlamentares a fechar buracos fiscais se enfraqueceram diante da perspectiva de que o governo toleraria déficits fiscais. Diante desse risco, recompôs-se a ordem unida no governo para o déficit zero - até última ordem.
O Orçamento é uma peça política por
princípio, e materializa a intenção fiscal do governo. O novo regime fiscal,
que privilegia aumento de receitas e não corte de despesas, não tinha punições
para o descumprimento de metas, mas nele foi acrescida pelo Congresso uma
condição: a de que o governo se esforce para atingir o resultado, por meio de
contingenciamento de até 25% das despesas discricionárias. O descumprimento
acarreta também a redução das despesas, de 70% das receitas primárias para 50%
no exercício seguinte, fim dos concursos etc.
O que o presidente e o PT provavelmente temem
é que um erro na largada, em 2024, os condene a uma piora orçamentária em 2025
e não garanta qualquer bonança em 2026, ano de eleições - e Lula já se dispôs a
ser candidato. A armadilha da austeridade relativa quem a montou desta vez foi
o próprio governo, que teve liberdade total para decidir quais regras fiscais
pretendia cumprir. Parecem ter se dado conta de que o figurino é bem mais
estreito do que imaginavam.
Se o governo não obtiver as receitas extras
de R$ 168 bilhões, terá de fazer um contingenciamento de até R$ 53 bilhões, ou
25% dos R$ 211 bilhões de receitas discricionárias. Emendas parlamentares
teriam de ser cortadas. Mas ainda que tudo desse certo, o governo teria de
fazer um esforço fiscal (de mais receitas, ou corte de gastos) significativo.
Ele foi calculado entre R$ 66 bilhões e R$ 96 bilhões pelo coordenador do
Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV, Manoel Pires. Nos cálculos de
Pires entraram tudo que está no PLOA e parte do que não está, e também a
possibilidade de usar a banda inferior da meta (R$ 29 bilhões), ganhos com
preços de transferência (R$ 20 bilhões) e recursos empoçados (R$ 22 bilhões).
Se não quiser segurar um centavo, o governo tem que arrumar R$ 96 bilhões, além
dos R$ 168 bilhões. Um represamento factível, entre R$ 10 bilhões e R$ 20
bilhões, exigiria esforço de R$ 76 bilhões a R$ 86 bilhões.
Além disso, o discurso petista criou outros
nós orçamentários. Com o fim do teto de gastos, as despesas com saúde e
educação voltaram à vinculação constitucional. O PT disse que a correção pela
inflação retirou recursos de ambos. A volta à vinculação fez os gastos com
saúde aumentarem R$ 50,3 bilhões e R$ 8,5 bilhões as despesas com educação,
segundo Bráulio Borges, pesquisador do Ibre-FGV. São gastos não
contingenciáveis e que crescem junto com o aumento das receitas. São vinculadas
as emendas parlamentares individuais e de bancada, que perfazem 2% e 1% da
receita corrente líquida.
Para que a relação dívida/PIB se estabilize e
comece a cair é necessário um superávit fiscal de 1% a 1,5% do PIB (há
analistas que apontam 2% a 2,5% do PIB). Não se sabe qual limite fiscal Lula
quer tolerar. O presidente está criando gastos, depois de uma PEC da Transição
que os elevou em R$ 165 bilhões e, ao contrário de seus dois outros mandatos,
não parece agora ter muita tolerância em relação à austeridade. Mesmo que o
governo rejeite a meta de déficit zero, o espírito da decisão teria de ser
ainda o da sobriedade e da contenção de despesas, com revisão de gastos,
avaliação de resultados etc. Não parece haver essa convicção, mas a decisão
final foi postergada.
Atividade em queda
Folha de S. Paulo
Recuo da economia não surpreende; deve-se
persistir no ajuste para reduzir juros
Depois de bons
resultados no primeiro semestre deste ano, quando houve crescimento
acima das expectativas, a atividade econômica mostra uma nítida perda de ritmo
nos dados mais recentes.
O indicador do Banco Central que combina
resultados da indústria, dos serviços e da agropecuária apontou queda de 0,64%
no terceiro trimestre, o que sugere retração do PIB no período.
Os dados devem impactar as projeções de
analistas para o desempenho deste ano —que rondavam alta de 2,9% na pesquisa
anterior do BC. O governo ainda prevê 3,2%, prognóstico a esta altura otimista.
A queda
trimestral não chega a surpreender, dado que sempre se considerou
provável menor vigor econômico na segunda metade do ano, conforme se esgotassem
os efeitos da safra agrícola recorde e da expansão de gastos públicos. Os juros
altos para debelar a inflação também já se fizeram sentir.
Mesmo com algum arrefecimento, vale lembrar,
o avanço de 2023 dificilmente ficará abaixo de 2,5%, muito mais do
que se esperava no início do ano —cerca de 1%.
Em contrapartida, há a boa notícia da redução
consistente da inflação, que mantém espaço para que o BC continue cortando a
taxa básica de juros, de 11,75% anuais hoje para 9,25% em 2024, segundo a
pesquisa entre analistas.
O alívio inflacionário atinge itens
fundamentais para a população de baixa renda, como alimentos. Ainda que em
menor velocidade, crescem o emprego e os salários, de modo que na soma geral a
situação não chega a ser ruim.
É preciso cautela, porém, quanto a riscos que
parecem emergir. Juros altos no exterior afetam as perspectivas de EUA e
Europa, enquanto a China passa por problemas financeiros que dificultam uma
retomada forte. Não se pode descartar um cenário recessivo.
A maior fragilidade hoje é a persistente
incerteza sobre os rumos da gestão orçamentária doméstica, como demonstrado
pelas oscilações do governo em relação à manutenção da meta de zerar o déficit
do Tesouro e o flerte com soluções criativas para evitar contingenciamento de
gastos, ainda mais num ano eleitoral.
Por ora, o ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, conseguiu adiar a decisão de revisão da meta para o início do ano que
vem, a depender do avanço da agenda legislativa por mais arrecadação.
Mas a dimensão e a duração da desaceleração
nos próximos meses pode trazer ansiedade e afetar os cálculos políticos do
governo.
A pior decisão seria a de embarcar em mais
intervencionismo e ampliar as despesas. Cumpre reforçar a credibilidade ainda
baixa da nova regra fiscal e favorecer a redução duradoura dos juros.
Imprensa na balança
Folha de S. Paulo
Pena excessiva a jornalista abre precedente
contra a liberdade de informação
A jornalista
Schirlei Alves foi condenada pelo crime de difamação contra o
juiz Rudson Marcos e o promotor Thiago Carriço. Para cada vítima, a magistrada
Andrea Cristina Studer estipulou pena de seis meses de detenção em regime
aberto e R$ 200 mil de multa.
A punição é exagerada e contraria a
jurisprudência sobre o tema. Ao estimular a autocensura, afeta a liberdade de
imprensa.
Em novembro de 2020, Alves publicou uma reportagem no
Intercept Brasil sobre o caso do empresário André de Camargo Aranha,
acusado pelo crime de estupro de vulnerável contra a influencer Mariana Ferrer.
Aranha foi absolvido.
A manchete dizia que o julgamento
"termina com tese inédita de ‘estupro culposo’" e, no texto, após
descrever a argumentação da promotoria, conclui-se com "ou seja, uma
espécie de ‘estupro culposo’".
A juíza entendeu que a repórter difamou o
promotor ao atribuir a ele a tese de "estupro culposo".
De fato, a expressão não consta da decisão
judicial. Segundo a promotoria, não foi possível comprovar a vulnerabilidade de
Ferrer (por consumo de álcool ou drogas) e, consequentemente, o dolo de Aranha.
Como o crime de
estupro não admite a modalidade culposa (sem intenção), Carriço
pediu a absolvição do réu.
Um dia após a publicação, o veículo inseriu
uma nota de esclarecimento: "A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo
Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artifício é
usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi
usada no processo".
Ademais, em dezembro daquele ano, a
reportagem foi editada por ordem da Justiça, com notas que explicam o
julgamento.
Considerando que estão em questão sobretudo
procedimentos técnicos e que o direito de resposta dos ofendidos havia sido
assegurado com a edição do texto, a condenação de Alves é desproporcional e
abre precedente temerário contra a liberdade de imprensa.
Em outros casos sobre danos morais e
materiais, o Supremo Tribunal Federal tem se valido da "cláusula de
modicidade", que prevê montantes proporcionais ao dano sofrido por alguém.
Profissionais da imprensa precisam estar seguros de que seu trabalho não será punido com penas descabidas. Caso contrário, inibe-se a função de observador crítico de governos e autoridades, fundamental em qualquer democracia.
Para proteger o campo e o direito
O Estado de S. Paulo
Para a segurança jurídica e o respeito à
propriedade privada, mais do que a disputa sobre o marco temporal, o
fundamental é a correção no processo de demarcação das terras indígenas
Em evento sobre os aspectos jurídicos do
agronegócio, realizado no dia 6 de novembro na Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp), a ministra aposentada do Supremo Tribunal Federal
(STF) Ellen Gracie analisou o atual entendimento sobre o art. 231 da
Constituição, que trata dos povos indígenas e da demarcação de suas terras. Diz
esse texto constitucional que “são reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens”.
Como se sabe, no final de setembro, o STF
alterou a jurisprudência sobre o tema, rejeitando a tese do marco temporal,
definida em 2009 no caso Raposa Serra do Sol. Por maioria, o plenário da Corte
decidiu agora que não cabe utilizar a data da promulgação da Constituição
Federal – 5/10/1988 – como prazo-limite para a definição de ocupação
tradicional da terra por povos indígenas.
Dias depois da decisão do Supremo, o
Congresso aprovou a Lei 14.701/2023, permitindo a demarcação de novos
territórios indígenas apenas nos casos em que essa ocupação seja anterior a
outubro de 1988. Essa restrição foi vetada, juntamente com outros pontos, pelo
presidente Lula da Silva. O Legislativo ainda não analisou os vetos do
Executivo.
Diante desse cenário de acirrada
controvérsia, no qual muitos veem a decisão do STF como o fim da segurança
jurídica no campo, Ellen Gracie alertou para um aspecto importante do tema, que
muitas vezes tem sido ignorado. Mais do que a questão de uma datalimite para a
definição de ocupação tradicional da terra por povos indígenas, o decisivo para
um efetivo respeito à propriedade privada é assegurar que o processo de
demarcação dessas terras seja corretamente realizado.
O processo é regulado pela Lei 6.001/1973
(Estatuto do Índio) e pelo Decreto 1.775/1996. A lei diz que “as terras
indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao
índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo
estabelecido em decreto do Poder Executivo”. O órgão responsável é a Fundação
Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Segundo o Decreto 1.775/1996, a demarcação
“será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação
reconhecida, que elaborará (...) estudo antropológico de identificação”. No
entanto, como as quase três décadas de vigência do decreto mostram, esses
estudos antropológicos são muitas vezes falhos, sem o necessário rigor técnico.
A agravar a imprevisibilidade e a
insegurança, o procedimento de aprovação do relatório pela Funai não prevê a
convocação das pessoas que poderão ser afetadas pela demarcação. O Decreto
1.775/1996 diz apenas que o estudo antropológico, depois de aprovado, deve ser
publicado na sede da prefeitura na qual está localizado o imóvel e que
eventuais interessados poderão se manifestar no prazo de 90 dias “para o fim de
pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do
relatório”.
Na prática, é um procedimento administrativo
sem contraditório, o que estimula a judicialização dos casos, com as disputas
pela terra prolongando-se indefinidamente no tempo. É justamente o cenário que
o legislador constituinte quis evitar, estabelecendo que “a União concluirá a
demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação
da Constituição” (art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
A controvérsia em torno do marco temporal
deve ser estímulo para aprimorar o processo administrativo de demarcação das
terras indígenas, processo esse que frequentemente afeta direitos
constitucionalmente protegidos de terceiros. Não é questão de dificultar o
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, mas precisamente assegurar sua
efetividade. A situação atual, com disputas judiciais perpassando décadas e
gerando diversas instabilidades, também viola a Constituição. Afinal, ela não
veio promover a contenda, mas a paz.
Um governo que desmoraliza o País
O Estado de S. Paulo
Reação de Lula ao caso das reuniões no
Ministério da Justiça com a mulher de um chefão do tráfico mostra que a
prioridade não é a segurança pública, e sim defender o companheiro Dino
É estarrecedor. O Estadão revelou que pessoas
muito próximas a uma facção criminosa fizeram reuniões no Ministério da Justiça
e Segurança Pública e, em vez de tomar as atitudes necessárias para traçar uma
linha clara entre governo e crime organizado, o presidente Lula da Silva veio a
público prestar solidariedade ao ministro da Justiça, Flávio Dino, que estaria
sendo “alvo de absurdos ataques artificialmente plantados”.
Ao contrário do que disse Lula da Silva, a
questão não é se o ministro da Justiça encontrou-se pessoalmente com Luciane
Barbosa Farias, mulher de um dos líderes do Comando Vermelho no Amazonas e ela
própria com contas a acertar na Justiça. Até agora, não há nada indicando que
esse encontro ocorreu. O problema é outro, muito mais grave.
O crime organizado atua à luz do dia para se
aproximar da política e interferir nela, e o governo do PT parece considerar
tudo isso normal. Sua preocupação não é investigar o caso, tampouco atuar para
que a administração pública federal fique menos exposta às investidas políticas
das facções criminosas. A prioridade petista é defender o companheiro Dino, que
estaria sendo injustamente atacado.
Com isso, Lula da Silva reitera o padrão de
comportamento adotado até agora na área da segurança pública. Não entendeu a
gravidade do problema. Não se preocupa com a população, que sente diariamente
os efeitos e todas as sombras que a criminalidade gera sobre a vida em
sociedade. Não tem nenhum plano concreto para prevenir os crimes e enfrentar os
criminosos. Sua atenção está voltada exclusivamente para as eventuais
consequências políticas do escândalo da participação da mulher do traficante
“Tio Patinhas” em reuniões do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Trata-se da mesma irresponsabilidade que se
viu na recente operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nos portos e
aeroportos para combater o tráfico de drogas e de armas. Diante de um problema
gravíssimo, que exige estratégia, planejamento e coordenação, o governo federal
optou por mais uma pirotecnia militar populista, de curto prazo e sabidamente
ineficaz (ver editorial Uma GLO que é a cara deste governo, dia 3/11).
Governar é muito mais do que agir guiado por
cálculos político-eleitorais. Exige um mínimo de comprometimento com o
interesse público. No entanto, diante da revelação de que as facções criminosas
de algum modo têm acesso à alta cúpula da administração federal, Lula da Silva
optou por cuidar do interesse do seu ministro que, coitado, não estava sabendo
das tais reuniões.
O governo do PT zela por si e apenas por si.
E o faz de forma coordenada. Horas depois de Lula prestar solidariedade ao
companheiro Dino, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, veio a
público defendê-lo. Para Silvio Almeida, o problema não é a atuação cada vez
mais audaciosa do crime organizado, mas os “ataques difamatórios” que “têm como
alvo central o corajoso trabalho” do ministro da Justiça.
Haja empáfia. Em vez de esclarecer o que
houve, Silvio Almeida acusou “a tentativa generalizada, por parte de
extremistas de direita, de a todo momento fabricar escândalos e minar a
reconstrução da política de direitos humanos”. Eis o modus operandi petista.
Acham-se superiores mesmo quando seus erros são expostos. Em vez de prestarem
as informações ao público e admitirem o erro, atacam genericamente, sem nenhuma
prova, politizando infantilmente a questão.
Não há reconstrução possível do País onde
imperam a irresponsabilidade e a desfaçatez. É mais que hora de Lula da Silva
descer do palanque e governar com seriedade, o que envolve admitir os erros e,
principalmente, cuidar dos interesses da população. É fácil – e gera
engajamento nas redes sociais – culpar os “próceres da extrema direita
brasileira”, como fez Silvio Almeida, pelo escândalo das reuniões. Difícil é
enfrentar as causas do problema.
O mínimo que o governo poderia fazer seria
afastar ou ao menos advertir os secretários envolvidos no caso. Mas o sr. Dino
já descartou essa possibilidade, dizendo que, se o fizesse, estaria se
“desmoralizando”. Conclui-se que ele preferiu desmoralizar o País.
Cacoete sindicalista
O Estado de S. Paulo
Canetada do Ministério do Trabalho dificulta
trabalho do comércio e serviços aos feriados
O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz
Marinho, achou por bem alterar, de forma intempestiva, uma portaria que
autorizava o trabalho nos setores de comércio e serviços durante os feriados.
Assim, em uma canetada, o governo restabeleceu a necessidade de convenção
coletiva ou em legislação municipal disciplinando o tema.
Vindo do governo do eterno líder sindical
Lula da Silva, que tenta de toda forma fortalecer os combalidos sindicatos, a
notícia não surpreende no conteúdo, mas na forma. Não houve qualquer
comunicação ou explicação prévia ao setor sobre uma portaria publicada na
véspera do feriado de 15 de novembro no Diário Oficial da União e que entrou em
vigor na mesma data.
A portaria anterior, de 2021, liberava de
forma irrestrita e permanente o trabalho em feriados e aos domingos em mais de
70 categorias, entre as quais supermercados e feiras livres, sem que fosse
necessária a participação dos sindicatos nas negociações. Bastava uma
convocação ou comunicado, mas isso nunca dispensou as empresas de cumprir a
legislação trabalhista e pagar horas extras a seus empregados.
Agora, o setor varejista, com toda a razão,
reclamou. Feiras livres, padarias e restaurantes poderão manter as atividades
nos feriados. Supermercados e farmácias, no entanto, estão sujeitos às novas
normas. Não houve nem tempo hábil para que as empresas pudessem se adaptar às
novas condições. Não se sabe se as empresas que haviam se preparado para abrir
no feriado da Proclamação da República receberão ou não multas administrativas
por violar a regra.
O ministro Luiz Marinho tampouco se preocupou
em explicar sua decisão. Diante da péssima repercussão, limitou-se a declarar,
em entrevista ao Jornal Nacional, que analisa a possibilidade de estabelecer um
período de transição para que a portaria passe a valer apenas em janeiro. É
estarrecedor que o ministro não tenha pensado nas consequências de sua decisão
antes de editar o ato.
As centrais sindicais, por óbvio, já sabiam
da decisão do ministro e comemoraram. Para elas, a portaria vai impedir abusos
patronais. Ao governo, pouco importa se a medida vai criar insegurança
jurídica, burocracia ou demissões de trabalhadores, desde que os sindicatos
fiquem satisfeitos.
A medida agora revertida somente removeu um
entrave incompatível com a atual realidade do mercado de trabalho. Empresas e
trabalhadores têm todas as condições de negociar esses acordos, no espírito da
reforma trabalhista tão demonizada pelos petistas. Ademais, os consumidores já
estão acostumados à comodidade de contar com lojas abertas nos feriados.
O Congresso já foi acionado para derrubar a portaria. Composta por 207 deputados e 46 senadores, a Frente Parlamentar do Empreendedorismo não terá qualquer dificuldade para reverter a medida por meio de projetos de decreto legislativo na Câmara e no Senado. Talvez assim o governo consiga entender que não basta vontade para fazer valer suas convicções. Numa democracia, é preciso dialogar.
Os desafios da eletrificação
Correio Braziliense
No exterior — principalmente na Europa —, diversas montadoras já determinaram que, nos próximos anos, todos os seus veículos vão sair de fábrica com baterias
O avanço e a adoção de uma nova tecnologia
pelo mundo não costumam ser suaves. Normalmente se dá em saltos intensos, que
deixam para trás os países que não conseguem acompanhar a inovação do momento.
Foi assim com a adoção dos teares mecanizados, na virada do século 18 para o
século 19. Essa mudança levou à Primeira Revolução Industrial e à ascensão do
Reino Unido como potência. Na transição do século 20 para o século 21, também
foi assim com os computadores e a internet. Agora, o mundo está diante de um novo
paradigma tecnológico, talvez o mais importante desde a chegada da informática:
os carros com motores elétricos.
A eletrificação avança rapidamente pelo
mundo. No exterior — principalmente na Europa —, diversas montadoras já
determinaram que, nos próximos anos, todos os seus veículos vão sair de fábrica
com baterias. Elas vão ocupar o lugar dos motores à explosão, movidos por
derivados de petróleo. Os chineses também não perderam tempo e estão não só
apostando pesado na virada de matriz energética, como estão trazendo, a preços
muito competitivos, seus veículos elétricos para o Brasil.
Mas por aqui, porém, diversos desafios se
impõem para que a eletrificação ocorra com a velocidade que está sendo
implantada nos países do Norte global. Um dos principais dilemas é o impacto
potencial na mão de obra. A automação e a substituição de motores a combustão
interna pelos elétricos têm o potencial de causar uma redução drástica dos
postos de trabalho no setor, sejam empregos diretos, nas montadoras, sejam
indiretos, na imensa rede de prestação de serviços, que vão de postos de
gasolina e centros de trocas de óleo a oficinas mecânicas de bairro.
Isso revela outro problema de difícil
resolução no Brasil: a infraestrutura deficiente. Para que uma pessoa viajando
encare mais do que seis ou sete horas em um elétrico, ela vai precisar
invariavelmente abastecer a bateria. Mas o processo não é rápido como encher um
tanque. Ele demanda algumas horas, o que pode causar um problema sério. Basta
imaginar uma pessoa que chega a um eletroposto onde todos os carregadores estão
ocupados. Além da espera que ela já teria pelo próprio carro, ela terá que
aguardar que as pessoas que chegaram na frente concluam suas cargas, sendo que
elas podem ter, também, acabado de iniciar o abastecimento.
Se nas estradas existe este problema, nas
casas brasileiras não é diferente. Quais são as garagens de imóveis que estão
preparadas para uma adoção em massa dos carregadores? A situação, como se não
bastasse, provavelmente, vai gerar discussões e brigas em condomínios, onde a
energia elétrica dos estacionamentos costuma ser compartilhada, de uso comum.
Por isso, as grandes montadoras estão
apostando que o Brasil ainda vai viver um momento de transição até a adoção do
elétrico puro. Os híbridos, que têm o auxílio de um motor elétrico alimentado à
bateria, mas também contam com um propulsor à explosão, estão sendo
apresentados como essa solução intermediária. Faz sentido, pois aproveita a
imensa produção nacional de etanol, que é um combustível renovável e
consideravelmente mais limpo do que a gasolina e o diesel.
No entanto, é crucial reconhecer que essa
abordagem deve ser apenas uma resposta temporária. Ao optar pelos híbridos, o
Brasil ganha um tempo necessário para resolução de todos os problemas citados
acima, mas arrisca perpetuar a dependência dos combustíveis fósseis, enquanto o
resto do mundo avança rapidamente para a eletrificação total.
É como se estivéssemos aceitando um compromisso pela metade, condenando-nos a seguir um caminho que, a longo prazo, pode se tornar obsoleto. Resta saber se o governo, as montadoras e, principalmente, os consumidores, vão entender os híbridos como um momento de transição rumo ao futuro totalmente elétrico da indústria automotiva global, ou se o Brasil vai, mais uma vez, perder o passo da história.
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