O Estado de S. Paulo
O atual radicalismo dos EUA é muito mais perigoso que o de 1964. Ao contrário de Trump, Goldwater era, bem ou mal, um homem de princípios
Em menos de uma década, dois países tidos
como afáveis, ou pelo menos como ordeiros, o Brasil e os Estados Unidos,
escancararam seu lado rancoroso, personificado pelos srs. Jair Bolsonaro e
Donald Trump.
Em ambos os casos, o dr. Jekyll transformou-se em mr. Hyde. Mas, claro, não faz sentido entrar no assunto sem antes remover a espessa camada de mito quanto à “afabilidade” e à “ordem” que permeia a interpretação da história nos dois países. No Brasil, Sérgio Buarque de Holanda tratou com seriedade a ideia de “cordialidade”, mas pouca gente entendeu direito o que ele escreveu. Fato é que empregou o termo “cordialidade” no sentido etimológico, como aquilo que provém do coração, órgão do qual pode sair tanto o amor como o ódio. Quem distorceu o argumento, emprestando-lhe a conotação de bondade ou de um suposto caráter pacífico de nosso povo, com a evidente intenção de bajular o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), foi o poeta Cassiano Ricardo, íntimo colaborador da ditadura.
A verdade é que a história brasileira, desde
os primórdios da República, foi muito mais conflituosa do que em geral se
supõe. Enunciar isso nos dias que correm é chover no molhado, uma vez que a
maioria dos cidadãos tem medo de sair à rua à noite e a arruaça golpista
inspirada no bolsonarismo no dia 8 de janeiro ainda está na memória de todos.
O caso norte-americano requer uma análise
mais cuidadosa, começando pela exclusão das relações raciais, área na qual a
afabilidade e a ordem sempre foram muito mais a exceção do que a regra. Sim,
direitos são mais bem observados lá do que aqui, graças à imparcialidade e à
eficiência do sistema judiciário, sem dúvida melhor que o nosso. Nem os
próprios americanos falam em “afabilidade”, pois têm plena consciência de que
sua sociedade tem como base direitos individuais, a serem defendidos, se
necessário, a um alto custo, com distanciamento, impessoalidade e, não raro,
com rispidez.
Eles, os americanos, não falam em afabilidade
ou cordialidade, mas exaltam o “American Creed”, o Credo Americano,
um conjunto altamente compartilhado de
crenças e valores que inclui, além dos já mencionados direitos individuais e
sistema de justiça, a democracia, a igualdade de oportunidades, a dedicação ao
trabalho e, na esfera política, o respeito ao eventual adversário.
Curiosamente, quem mais se estendeu sobre esse tema foi o economista sueco
Gunnar Myrdal, em seu clássico Um Dilema Americano, obra de 1944, cujo
argumento principal é o de que a discrepância entre o “credo” e o “racismo”
deveria ser sempre esgrimida contra os racistas, a fim de pressioná-los a
assimilar os valores do credo e, assim, tornálo prático e universal. O estudo
de Myrdal influenciou profundamente o movimento negro, inclusive através do
Civil Rights Movement, liderado por Martin Luther King.
O ano de 1964 registra uma curiosa
coincidência. De um lado, o economista Anthony Downs, suponho que com o intento
de elaborar uma interpretação mais robusta que a do Credo Americano, publicou o
livro Uma teoria econômica da democracia. Seu argumento era o de que, num país
dotado de valores comuns, imune a ações políticas fundadas em ideologias e com
uma espinha dorsal baseada em dois grandes partidos, os embates eleitorais
seriam sempre pautados por plataformas centristas, visto que o partido que se
voltasse para algum radicalismo seria fatalmente derrotado nas urnas. Do outro
lado, naquele mesmo ano o sulista Barry Goldwater, senador pelo Arizona,
conseguiu se firmar como candidato à Presidência pelo Partido Republicano, não
obstante encarnasse à perfeição a perspectiva de derrota delineada por Anthony
Downs.
Se alguém lhe apresentasse um livro de teoria
econômica liberal, ele ticaria sua ferrenha oposição a todos os capítulos.
Combatia o New Deal, os sindicatos, programas públicos de saúde e qualquer
fórmula de combate à pobreza mediante transferências de renda. Era, pois, no
contexto americano, um rematado reacionário. Mas, atenção, Goldwater não era um
joão-ninguém. Oficial da Aeronáutica, participou de numerosas missões durante a
Segunda Guerra, pilotando 165 tipos de aeronaves e até sobrevoando o Himalaia, levando
armas e equipamentos para a China. Não era, portanto, um boçal como seu
predecessor Joseph McCarthy, senador por Wisconsin, que desembarcou em
Washington portando na mochila o horror mais letal que se podia imaginar
naquela época – o anticomunismo –, chegando mesmo a elaborar extensas listas de
supostos comunistas infiltrados na administração pública e até nas Forças
Armadas.
Fato é que Downs tinha razão. Enfrentando
ninguém menos que Lyndon Johnson, um dos mais poderosos políticos do país,
Goldwater foi esmagado no Colégio Eleitoral por uma das maiores margens da
história dos Estados Unidos: 486 contra 52.
Cabe, pois, inferir que o atual radicalismo
norte-americano é muito mais perigoso. Goldwater, um ultrarreacionário, era,
bem ou mal, um homem de princípios. Donald Trump é um ultrabilionário, ao que
tudo indica, desprovido de princípios.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é
membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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