Tarifa zero é uma solução oportunista e inadequada
O Globo
Liberação das catracas em São Paulo é medida
eleitoreira que beneficia mais as empresas que os usuários
Faltando menos de um ano para as eleições
municipais de 2024, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB),
candidato à reeleição, anunciou que os ônibus municipais não cobrarão
passagem aos domingos. A gratuidade, que começa amanhã, abrangerá
1.175 linhas da capital mais populosa do país. As catracas serão liberadas
também no Natal, no Réveillon e no aniversário da cidade. O governo não
descarta estender o programa às madrugadas.
O custo, obviamente, não será zero. O
município deixará de arrecadar R$ 283 milhões por ano. A Câmara reservou R$ 500
milhões no orçamento do ano que vem para financiar as gratuidades (entre elas,
a já existente para idosos). Mais dinheiro para as empresas de ônibus
paulistanas, cujo subsídio não para de crescer. A Prefeitura já despeja R$ 5,3
bilhões anuais, ante R$ 520 milhões em 2011.
Em véspera de ano eleitoral, projetos de tarifa zero têm se multiplicado, esquentando os debates entre pré-candidatos não só em São Paulo, mas em cidades como Belo Horizonte, Florianópolis, Salvador e Fortaleza. Tudo indica que será tema central nas eleições do ano que vem. Sua adoção na maior cidade brasileira daria impulso a uma política pública de eficácia duvidosa.
A despeito do frisson, não mais que 89
cidades brasileiras a adotam — 1,6% dos 5.570 municípios. Em geral, são cidades
pequenas com orçamentos generosos. Caso de Maricá, no Estado do Rio, campeã de
arrecadação de royalties de petróleo no Brasil. Faz quase uma década que os
quase 200 mil moradores não pagam passagem nos “vermelhinhos”, que servem de
propaganda das administrações petistas.
Não é difícil entender por que tão poucos
adotam a tarifa zero. Ela custa caro. Alguém precisa ressarcir o custo de
ônibus, peças, combustíveis, garagens etc. Não serão as empresas. O passageiro
pode até não pagar no validador, mas pagará por meio dos recursos de seus
impostos destinados a financiar o serviço.
Com o passe livre, é inevitável o aumento na
demanda e, sem correspondente ampliação da oferta, a qualidade do serviço cai.
Em São Caetano (SP), que banca a gratuidade com dinheiro das multas de
trânsito, os passageiros mais que duplicaram em um mês. Ao mesmo tempo, o
subsídio traz às empresas de ônibus um regime de faturamento confortável,
dependente apenas do Estado. Operando bem ou operando mal, receberão do mesmo
jeito. De onde virá o incentivo para investirem em renovação da frota,
ar-condicionado, câmbio automático, wi-fi etc.?
Embora o estímulo ao transporte coletivo, em
detrimento do individual, seja louvável, a tarifa zero é uma política pública
sem foco. Assim como os subsídios à cesta básica — defendidos ferrenhamente
pelos varejistas —, beneficia indistintamente ricos, pobres e remediados. Em
São Paulo, por sinal, as gratuidades já alcançam um quinto dos passageiros, e
há diversos programas que garantem subsídio a grupos específicos, como
vale-transporte ou passe escolar. Políticas públicas como o bilhete único, que
favorecem a integração entre os diversos meios de transporte, beneficiando quem
mora mais longe, também são mais eficazes.
A tarifa zero é solução oportunista e
inadequada para resolver um problema crônico de cidades brasileiras. O correto
seria oferecer subsídio a quem realmente precisa e exigir das concessionárias a
prestação de um serviço de qualidade. Mas talvez não renda votos.
Condenação nos Estados Unidos expõe práticas
anticompetitivas do Google
O Globo
Empresa foi julgada culpada por impor regras
que expulsaram jogo Fortnite de sua loja de aplicativos
Enquanto as grandes plataformas digitais têm
sido forçadas na União Europeia (UE) a se enquadrar em novas leis que garantem
os direitos dos cidadãos e a livre concorrência, nos Estados
Unidos tem cabido à Justiça o papel de discipliná-las. Nesta
semana, um júri de San Francisco considerou por unanimidade o Google culpado
de adotar práticas anticompetitivas em sua loja de aplicativos para
dispositivos móveis. O caso envolve a Epic Games, criadora do jogo Fortnite.
Embora o juiz só vá proferir o veredito no ano que vem e ainda possa haver
recurso a instância superior, a condenação do Google poderá ter implicações
sobre o modelo de negócios de todas as lojas de aplicativos, levando as
plataformas a repensar suas regras de relacionamento com os desenvolvedores.
A Epic acusou o Google de obrigar as empresas
de aplicativos a pagar comissão de 30% para ter acesso a sua loja. Além disso,
argumentou que os fornecedores de aplicativos são forçados a usar o sistema de
cobrança do Google. Calcula-se que Google e Apple faturem perto de US$ 200
bilhões por ano apenas com as comissões recebidas das compras de aplicativos em
celulares.
Os desentendimentos começaram em 2020, quando
o Fortnite foi retirado das lojas da Apple e do Google porque a Epic passou a
usar um sistema próprio de faturamento. No processo, a empresa convenceu os
nove jurados da Califórnia de que a plataforma abusou de seu monopólio. Os
advogados do Google argumentaram que, como a empresa compete com a Apple Store,
não há monopólio. Não convenceram. A acusação venceu argumentando que o usuário
teria de trocar de celular para ter acesso à loja concorrente.
O processo pode atingir também acordos de
Google e Apple com fabricantes de telefones. É citado nos autos pelo menos um
entendimento entre a Alphabet, dona do Google, e um dos fabricantes de
celulares que usam seu sistema Android, a coreana Samsung. O acerto faz com que
os telefones celulares já saiam de fábrica com aplicativos do Google, sem dar
ao usuário direito de escolha. Nessa negociação, a Samsung é o lado mais fraco.
A Justiça americana já abriu outras frentes
contra o Google. Numa delas, o Departamento de Justiça e vários estados
processam a Alphabet por práticas anticompetitivas na pesquisa por anúncios e
por dar vantagens ao próprio mecanismo de busca em detrimento de concorrentes.
Se perder, o Google poderá ter de repassar seu navegador Chrome e o Android a
duas empresas independentes. Os precedentes históricos citados são a divisão da
petrolífera Standard Oil em 1911 e a da telefônica AT&T em 1982.
A Alphabet também enfrenta dificuldades no
outro lado do Atlântico, onde a Comissão Europeia a enquadrou na legislação
antitruste por alijar de forma ilegal concorrentes no mercado de anúncios
digitais. Ela já foi multada em US$ 8,6 bilhões na UE. Seja na regulação das
plataformas digitais, seja em processos abertos na Justiça, é preciso
acompanhar de perto as experiências americana e europeia que decerto também
terão desdobramentos no Brasil.
Populismo tarifário
Folha de S. Paulo
Ricardo Nunes aprofunda prática eleitoreira
de maquiar custo dos transportes
O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB),
lançou-se de vez na aventura do populismo tarifário na tentativa de reeleger-se
em outubro próximo. A manobra consiste em maquiar o preço real do transporte
público, sacando do contribuinte parcela crescente de seu custeio.
A tarifa do
ônibus continuará congelada em 2024, anunciou o governante,
perfazendo meia década fixada em R$ 4,40, contra inflação que terá se acercado
de 30% no período. Além disso, aos domingos, a começar deste dia 17, a
catraca será franqueada a todos os usuários.
A falsa gratuidade dominical exigirá do
Tesouro paulistano direcionar R$ 238 milhões anuais, tomados do pagador de
impostos, às concessionárias do transporte coletivo. Somada ao congelamento da
tarifa, a iniciativa acrescentará outra larga parcela ao subsídio astronômico
já desembolsado.
Em 2022 as
compensações da prefeitura às empresas de ônibus chegaram a R$ 5,2 bilhões,
alta superior a 40%, considerada a inflação, ante o ano anterior. Um novo
recorde será batido neste ano —o repasse ficará próximo de R$ 6 bilhões— e um
terceiro em 2024.
Com esses recursos, o município poderia
aumentar em 30% o dispêndio com educação ou em 35% o com saúde. A dotação para
habitação seria multiplicada por 2,5.
Se a opção fosse cortar impostos, o montante
que permaneceria nos bolsos dos contribuintes equivaleria a pouco menos de toda
a receita recebida por meio do IPVA (sobre veículos ) e do ITBI (sobre
transferências de imóveis).
O debate sobre como dispor de tamanha soma de
esforços deveria valer-se de dados e estudos aprofundados e ser travado à luz
do dia, numa discussão política madura sobre prioridades municipais.
Nada pior do que o atropelo eleitoreiro e as
reuniões fechadas para decidir o destino desse dinheiro.
A distribuição indiscriminada de subsídios por meio de controle de tarifas
tende a ser má política social e péssima intervenção econômica. Ela premia
ricos e pobres na mesma medida, distorce preços, prejudica a alocação eficiente
de recursos e embota investimentos.
Correta foi a decisão do governador Tarcísio
de Freitas (Republicanos) de reajustar a tarifa de metrô e trens metropolitanos
de R$ 4,40 para R$ 5 —alta de 13,6%, que mal chega a metade da inflação
acumulada desde 2020, perto dos 27%. Entre outros efeitos, a iniciativa ajudará
a estatal deficitária do transporte subterrâneo.
É lamentável que o princípio do realismo
tarifário não tenha se impregnado em todos os mandatários brasileiros a esta
altura do século 21. As esfregas do passado recente pela prática infantilizada
de disfarçar o preço dos serviços não valeram, pelo visto, de aprendizado.
Cinco dias é pouco
Folha de S. Paulo
Congresso deve estender licença-paternidade
para diminuir disparidade de gênero
De acordo com a legislação brasileira,
mulheres têm 120 dias de licença-maternidade, enquanto homens podem se afastar
do emprego por ínfimos 5 dias quando se tornam pais. Tal disparidade é fruto da
displicência de parlamentares.
A Constituição de 1988 instituiu a
licença-paternidade, mas ressaltou que seu período de duração precisa ser
designado por lei; enquanto o Congresso não decidir, valem os 5 dias. E lá se
vão 35 anos.
Por isso o Supremo Tribunal Federal, a partir
da constatação de omissão na regulação, determinou na quinta (14) o prazo
de 18 meses para que os congressistas cumpram seu papel. Abre-se,
assim, oportunidade para que se implemente norma importante para a diminuição
da desigualdade de gênero no mercado de trabalho.
Isso porque a maternidade
é um dos fatores que implica menores salários, afastamento do
trabalho e desistência de carreiras entre as mulheres. Dados do IBGE de 2022
mostram que 21,89% das mães com um filho não conseguem trabalhar, ante apenas
0,55% dos pais.
Segundo levantamento da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), a duração
média da licença-paternidade no mundo é de 9 dias, e a das mães é de
18 semanas.
A média da OCDE é de 2,3 semanas para os
pais, sendo a Espanha recordista, com 16, seguida por Holanda (6) e Portugal
(5).
No Brasil, uma lei de 2008 permitiu a
prorrogação por mais 60 dias da licença-maternidade, e outra de 2016 aumentou
de 5 para 20 dias o benefício dos pais. Mas ambos os casos só se aplicam a
trabalhadores de empresas que aderirem ao programa Empresa Cidadã.
No ano passado, a legislação manteve os
benefícios e ainda autorizou que os 60 dias a mais para as mulheres possam ser
compartilhados pelo casal, desde que os dois sejam contratados por empresas do
programa.
A licença-paternidade não ajuda só mulheres,
mas os filhos. Pesquisas mostram que o contato físico entre pais e bebês forma
vínculos duradouros que elevam a autoestima, o bem-estar emocional, o
desenvolvimento da fala, as relações sociais e a inteligência da prole.
O Congresso precisa aumentar o tempo desse benefício. Não se trata de panaceia, por óbvio, mas é o começo de uma política pública que tem potencial para promover mudanças culturais. Enquanto bebês crescem, pais também devem compartilhar tarefas domésticas e o cuidado dos filhos com as mães.
A COP da transição
O Estado de S. Paulo
Sem declaração veemente ou prazo para
suspender de forma gradual a produção de petróleo, a COP-28 teve o mérito de
reconhecer claramente a necessidade de transição energética
O documento final da Conferência do Clima das
Nações Unidas, COP-28, encerrada nesta semana nos Emirados Árabes, representou
de fato um avanço ao explicitar, pela primeira vez, que é inevitável a
transição do mundo para fontes de energia não poluentes. Desde que a agenda
climática passou a ser discutida de forma global, durante a Cúpula da Terra, no
Rio de Janeiro, foram necessários 31 anos para que os países firmassem esse
compromisso formal.
Ainda que nada tenha sido estabelecido sobre
os procedimentos da transição, o simples consenso em torno do reconhecimento da
transição energética dá à COP-28 importância semelhante à da COP-3, de 1997,
que estabeleceu o Protocolo de Kyoto, o primeiro a prever limitação para as
emissões de gases causadores do efeito estufa, e à da COP-21, que firmou, em
2015, o Acordo de Paris, com metas específicas para tentar limitar a 1,5ºC o
aumento médio da temperatura mundial.
Foi um bom resultado para a conferência de
Dubai, cercada de polêmicas e baixa expectativa por ter como sede um dos
principais países exportadores de petróleo e como presidente o também CEO da
petrolífera Abu Dhabi National Oil Co., Sultan Al Jaber. O encontro, que chegou
a ser chamado de “COP do Petróleo” por ambientalistas, não alcançou o tom
esperado pela ONU, de urgência na transição e de compromisso na eliminação do
consumo, produção e exploração de combustíveis fósseis. A palavra “petróleo”
nem sequer foi citada.
De forma cautelosa, o acordo prevê a “redução
e produção de combustíveis fósseis de forma justa, organizada e equitativa”,
seja lá o que isso signifique exatamente, para atingir o “equilíbrio líquido de
zero emissões até 2050”. Não é um compromisso novo, na verdade. O prazo já
havia sido fixado em encontros anteriores. A sutileza é que a redução foi
colocada como uma possibilidade, não uma imposição.
Os otimistas saíram dizendo que foi mais um
passo em direção à mudança das fontes de energia, altamente concentradas (em
torno de 80%) em combustíveis fósseis no mundo. Os pessimistas acreditam que
ainda não esteja formada a consciência mundial – em especial nos países
produtores de petróleo – em torno da situação emergencial do planeta, que
muitos alegam estar próxima ao ponto de não retorno.
De forma realista, a riqueza gerada pela
exploração de petróleo não será posta de lado abruptamente. Muito menos diante
de uma situação que não oferece alternativas renováveis capazes de suprir com a
mesma eficiência a demanda por energia. A transição energética, hoje um
consenso, não tem ainda uma gradualidade conhecida. E, apesar das fortes
apostas em técnicas de descarbonização na produção, não há sinais de declínio
das operações.
Ofertas de novas áreas exploratórias
continuam a pleno vapor, como mostrou, por exemplo, o leilão de 602 áreas pela
Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Realizado
exatamente no dia em que o relatório da COP-28 foi divulgado, o leilão teve
intensa disputa em algumas regiões e 192 áreas exploratórias adquiridas. Para o
diretor-geral da ANP, Rodolfo Saboia, a contradição entre o impulso à
exploração de petróleo e a necessidade de investir na transição energética é
“apenas aparente”. Com razão, ele disse que a paralisação da produção apenas
tornaria o País mais dependente de países produtores “com pegada de carbono
maior”.
O ingresso do Brasil na Opep+, como mais um
país observador a integrar a Organização dos Países Exportadores de Petróleo,
também foi criticado como um contrassenso, especialmente por ocorrer durante a
COP-28. Mas até a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, encontrou argumentos
para defender a decisão inusitada do governo brasileiro, tomada sob o pretexto
de fazer, de dentro do poderoso cartel, uma suposta campanha pela
descarbonização.
Com matriz energética notavelmente limpa em
relação ao resto do mundo, resultado direto da geração hidrelétrica, o Brasil
vive o grande dilema de ser também proprietário de áreas marítimas na Margem
Equatorial com potencial de dobrar as atuais reservas de petróleo. Dados o
ritmo da transição e a demanda por petróleo durante o processo, seria
imprudente desperdiçar essa oportunidade.
Autorização para a vingança
O Estado de S. Paulo
Decisão da Justiça que dispensa câmeras em
operações policiais escancara tolerância com as condições que propiciam a
violência estatal. Controle da polícia é ponto essencial da democracia
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de
São Paulo (TJSP) estabeleceu que policiais militares (PMs) não são obrigados a
utilizar câmeras corporais em operações realizadas em resposta a ataques a
agentes das forças de segurança do Estado. A decisão diz respeito à Operação
Escudo, deflagrada no litoral paulista depois que um policial militar foi morto
no Guarujá, em julho passado. Até que fosse encerrada, a operação deixou um
rastro de 28 mortos em 40 dias, tornando-se a ação policial mais letal em São
Paulo desde o massacre do Carandiru.
A decisão afronta o bom senso. Justamente nos
casos em que a câmera nos uniformes policiais é mais necessária, isto é, quando
o controle da atividade policial é mais difícil, a Justiça simplesmente afirma
que ela é dispensável. Ou seja, todo o investimento público feito nesse sistema
terá sido inútil, a julgar pelo entendimento do TJSP: para os doutos
magistrados paulistas, os policiais poderão continuar contando com a opacidade
em ações que, sem qualquer controle, se assemelham a pura e simples vingança.
Tudo isso é, por si só, lamentável, mas há
duas agravantes. Primeira: esse posicionamento foi dado pelo Órgão Especial do
TJSP. Não foi uma decisão disparatada de um juiz de primeira instância ou mesmo
de uma das turmas do tribunal. Ou seja, é esse o entendimento da mais alta
cúpula do Judiciário paulista.
Mesmo existindo meios de ampliar a
transparência da atuação policial, o Judiciário opta pelo caminho oposto,
contribuindo para que se mantenha tudo como está. A um só tempo, a mensagem é
cristalina e proterva: a Justiça paulista tolera as condições que permitem a
violência policial e, pior, dá azo a que essa violência seja cometida
impunemente à margem da lei.
Não deve, portanto, surpreender ninguém que
as operações policiais sejam tão letais. Há uma consolidada condescendência do
Judiciário paulista com esse tipo de atuação. Basta ver o tratamento que o
massacre do Carandiru vem recebendo, ao longo de três décadas, do TJSP. A
impunidade é consequência direta de uma compreensão do Direito que, indiferente
ao princípio da igualdade de todos perante a lei, cuida zelosamente dos
interesses do poder estatal.
A segunda agravante refere-se ao contexto da
decisão. O Órgão Especial do TJSP não estava discutindo a hipótese teórica de
um eventual risco de violência policial. A Justiça paulista tinha diante de si
a operação policial estadual mais violenta deste século, com dezenas de mortes,
e mesmo assim entendeu que as câmeras nos uniformes dos agentes não eram
obrigatórias.
Há aqui muito a entender sobre o quadro de
violência policial que se instaurou em muitas regiões do País. Não é que faltem
indícios ou elementos probatórios a respeito de ações ilegais de agentes de
segurança. O cenário é precisamente o oposto: há muitas e constantes evidências
da violência policial, de ações que extrapolam os limites da lei, de medidas
que violam direitos básicos da população. No entanto, simplesmente não se quer
ver. Nega-se a realidade.
O TJSP decidiu que as câmeras nos uniformes
policiais não são obrigatórias mesmo diante de todas as suspeitas de abuso por
parte do poder estatal. Em setembro, quando o presidente do tribunal,
desembargador Ricardo Anafe, derrubou a liminar que obrigava a PM paulista a
usar as câmeras nos uniformes de seus agentes em todas as operações que
respondessem a ataques contra PMs, o argumento no tribunal era que, pasme o
leitor, a obrigatoriedade das câmeras poderia levar a um “aumento das agressões
aos agentes públicos, com grave lesão à segurança pública”.
Essa descarada inversão factual do que
ocorreu no litoral paulista ilustra por que razão a violência de Estado segue
impune quando as vítimas vivem em regiões pobres das cidades. Simplesmente se
negam os fatos, que convenientemente são substituídos por hipóteses carentes de
qualquer fundamento.
Roga-se que essa decisão judicial seja
revertida, se não no próprio TJSP, em tribunais superiores. Além de lembrar que
no País existe direito à vida e de que não há pena de morte nem julgamento
sumário, cabe advertir: a Justiça deve servir à lei e ao direito, não à
barbárie.
A omissão do Senado
O Estado de S. Paulo
Se o País dependia da sabatina para conhecer
o futuro procurador-geral da República, continua no escuro
O Senado, mais uma vez, se eximiu de cumprir
uma de suas mais importantes obrigações constitucionais, que é sabatinar com
seriedade e espírito público o indicado pelo presidente da República para
exercer o cargo de procurador-geral da República. Convenhamos que, no dia 13
passado, não houve propriamente sabatina de Paulo Gonet Branco.
O pouco que se sabe da compreensão do futuro
procurador-geral da República sobre o papel do Ministério Público Federal
(MPF), sobre os grandes desafios do País e como o parquet pode ajudar a
superá-los veio de reportagens da imprensa e de algumas manifestações de Gonet
durante as sessões de julgamento transmitidas pela TV Justiça das quais
participou.
A imprensa é essencial para informar a
sociedade sobre os indicados pelo presidente da República a cargos como o de
procurador-geral da República, mas, se o noticiário bastasse, não haveria
necessidade de sabatina no Senado. A Constituição atribui ao Senado a tarefa de
inquirir esses indicados não somente para que a população possa conhecer sua
compreensão do Direito e seu efetivo compromisso com o Estado Democrático de
Direito, mas para que eles sejam avaliados, de forma pública e solene, em
relação aos requisitos constitucionais previstos para o cargo. Nessas funções
públicas, eles não vão exercer suas vontades e idiossincrasias, mas aplicar e
defender o Direito. Eis então que a sabatina não é uma etapa meramente
burocrática da nomeação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do
procurador-geral da República. É uma demonstração de respeito pelos cidadãos e
de reverência institucional.
Reconheça-se que os senadores pouco podiam
fazer durante uma sabatina cujo formato exótico – feita simultaneamente com
Gonet e com Flávio Dino, indicado ao STF – impediu que os senadores se
concentrassem exclusivamente no candidato à PGR. Como Dino era a estrela do
momento por diversas razões, dominou amplamente as atenções dos parlamentares.
Já Gonet se limitou a dar respostas evasivas às poucas perguntas que lhe foram
dirigidas. Simplesmente ele não foi sabatinado.
O momento em que Gonet assume a PGR é
delicado. A PGR foi jogada na sarjeta durante os mandatos de alguns de seus
antecessores, em particular durante as gestões dos ex-procuradores-gerais
Rodrigo Janot e Augusto Aras. Cada um a seu modo, ambos reduziram a PGR a
instrumento de joguetes políticos e corporativos particulares. O País paga até
hoje um alto preço pelos desatinos de um e pela vassalagem de outro.
Com o que se sabe hoje, nada indica que Gonet tomará direções extremadas à frente da PGR. Mas eis o ponto principal. Não há informações suficientes à disposição da sociedade que permitam assegurar que isso não tornará a acontecer. Apenas se torce pelo melhor, para que, sob Gonet, desconhecido da maioria da população até pouquíssimo tempo atrás, a PGR voltará a defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis com técnica, discrição e espírito público.
Desoneração tranquiliza empresas e
trabalhadores
Correio Braziliense
A desoneração é uma política já existente, com alta empregabilidade, que não deveria ser alterada de forma abrupta e integral, sem levar em conta a realidade dos agentes econômicos
Ainda bem que o Congresso Nacional derrubou,
nesta quinta-feira, o veto integral do presidente Lula ao projeto de lei (PL
334/2023) que prorroga, por mais quatro anos, a chamada desoneração da folha
salarial. Seria um desincentivo a 17 grandes setores da economia, que
perderiam, aproximadamente, 9 milhões de empregos, cuja desorganização seria um
desastroso fator recessivo na economia.
O PL 334/2023 permite que a empresa substitua
o recolhimento de 20% de imposto sobre sua folha de salários por alíquotas de
1% até 4,5% sobre a receita bruta. Para compensar a diminuição da arrecadação
do governo, o projeto também prorroga o aumento em 1% da alíquota da
Cofins-Importação até dezembro de 2027. O texto determina, ainda, a redução, de
20% para 8%, da alíquota da contribuição previdenciária sobre a folha dos
municípios com população de até 142.632 habitantes.
São beneficiados os seguintes setores:
confecção e vestuário, calçados, construção civil, call center, comunicação,
construção e obras de infraestrutura, couro, fabricação de veículos e
carroçarias, máquinas e equipamentos, proteína animal, têxtil, tecnologia da
informação (TI), tecnologia da informação e comunicação (TIC), projeto de
circuitos integrados, transporte metroferroviário de passageiros, transporte
rodoviário coletivo e transporte rodoviário de cargas.
O governo ameaça recorrer à Justiça por
considerar a medida inconstitucional, o que não faz sentido, uma vez que essa
política vigora desde 2011, quando foi aprovada por proposta do governo Dilma
Rousseff justamente com objetivo de proteger as atividades econômicas e gerar
empregos. Caso o Congresso não tomasse essa decisão, a partir de 1º de janeiro
de 2024, as empresas dos setores beneficiados passariam por grandes
dificuldades. A única novidade no texto aprovado, que, em tese, pode ser objeto
de arguição constitucional, é a inclusão dos pequenos municípios.
Antes da derrubada do veto integral do
presidente Lula, que surpreendeu os setores produtivos e o Parlamento, o
presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ressaltou que a decisão do
Congresso não impede a retomada das negociações com a equipe econômica do
governo para viabilizar eventuais alternativas. Essa é a atitude mais sensata
diante do fato de que não se sabe ainda qual será o impacto da reforma
tributária na economia, principalmente na vida das empresas, nem quando seus
efeitos começarão efetivamente a ser sentidos na arrecadação da União, estados
e municípios.
Não se pode pular na piscina sem saber se há
água dentro. A desoneração é uma política já existente, com alta
empregabilidade, que não deveria ser alterada de forma abrupta e integral, sem
levar em conta a realidade dos agentes econômicos, sejam as empresas ou seus
trabalhadores.
Trata-se até de uma questão de segurança
jurídica, para que se possa amplificar investimentos, garantir o emprego do
trabalhador e gerar riqueza para o país. A lógica da desoneração é mais do que
razoável: quem gera mais empregos paga menos impostos. Com a renovação das
desonerações da folha de pagamento, até o governo ganha tempo e mais elementos
para propor alternativas, já levando em consideração os efeitos reais do novo
sistema tributário, que acabará com a guerra fiscal entre os estados e projeta
uma forte elevação do Produto Interno Bruto (PIB).
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