Revista Veja
O mundo vive hoje os maiores desafios de sua existência
“O fim da História?”, cogitou, em 1989, o
cientista político Francis Fukuyama. Ele retomava a tese do filósofo
Friedrich Hegel, mais tarde adotada e propalada por Karl Marx, de que a
História teria um propósito evolutivo, um modelo que não pudesse ser superado.
Esse ponto marcaria o “fim da História”.
Fukuyama defendia que esse modelo era a
democracia liberal, não por ser perfeito, mas porque nenhum outro poderia
entregar estágios superiores de liberdade, igualdade, conforto. O liberalismo
havia derrotado o absolutismo e o fascismo, o comunismo era inviável. Não
sobrava nada.
Fukuyama foi muito atacado, em particular
pela esquerda, que acreditava na tese do fim da História, mas via o modelo
definitivo como sendo o comunismo. Pouco depois, no entanto, o Muro de Berlim
caiu e a URSS se desintegrou. O mundo parecia fadado a ser democrático.
Mas a História é famosa por ser trapaceira. A democratização e a globalização criaram ressentimentos em ricos e pobres. A intolerância nacionalista e/ou religiosa ressurgiu.
“A fé de que a democracia logo se espalharia
era precipitada, mas em trinta anos não surgiu modelo melhor”
A Bósnia submergiu em um banho de sangue. A
Rússia retomou um czarismo despótico e brutal. O terrorismo de extremistas
árabes se espalhou pelo mundo, a islamofobia cresceu. A Guerra do Iraque criou
o Estado Islâmico. A Primavera Árabe, que prometia a democratização, criou
novas ditaduras. A Líbia e a Síria mergulharam em guerra civil. A migração
de refugiados para a Europa abriu espaço para o discurso xenófobo e racista. O
Talibã retomou o Afeganistão. A Rússia invadiu a Ucrânia. Israel sofreu
recentemente o pior ataque de sua história e a guerra de Netanyahu contra o
Hamas está dizimando a população em geral. O antissemitismo cresce. A China
ameaça Taiwan, Maduro ameaça a Guiana. Biden é um presidente fraco, e Trump é
favorito para a eleição de 2024.
O mundo vive os maiores desafios de sua
história: o aquecimento global, que pode aniquilar a humanidade, e a revolução
tecnológica, destruidora de empregos e portadora de outros riscos que ninguém
alcança.
O panorama é de insatisfação, ressentimento,
incerteza, insegurança, risco. A urgência pede respostas rápidas e decididas,
mas a complexidade exige tempo e reflexão. Liberais não têm respostas rápidas
para problemas complexos, para os quais as soluções fáceis são sempre erradas.
Populistas, sim, têm soluções fáceis e erradas para tudo, e a polarização
trazida pelas redes sociais só os ajuda. Não por acaso, eles estão por aí:
Putin, Erdogan, Orbán, Duda, Netanyahu, Le Pen, Trump, Bolsonaro.
Antidemocráticos, intolerantes e, em geral, incompetentes.
A fé de que a democracia logo se espalharia
pelo mundo era precipitada, mas a tese de que ela representava o “fim da
História” não estava necessariamente errada. Nesses trinta anos de muito som e
fúria, não surgiu modelo melhor. Para superar os graves desafios que temos pela
frente, precisamos de boa-fé, tolerância, debate, negociação, consenso —
características típicas da democracia liberal. A esperança está na democracia:
é necessário preservá-la.
É isso — tolerância, compreensão, democracia
— que desejo a todos nós a partir do ano que vem. Feliz ano novo.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de
2023, edição nº
2872
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