Valor Econômico
Ao ameaçar a Guiana, presidente venezuelano
mira à rediscussão das linhas que demarcam o mar territorial dos dois países
por acesso mais direto ao Atlântico e por um percentual da exploração no país
vizinho
Ao voltar de uma viagem relâmpago a Caracas,
em março deste ano, o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, disse
que, em 20 anos de contato com a Venezuela, nunca tinha visto “um clima tão
grande de incentivo à democracia”.
Em maio, depois de colocar os Dragões da
Independência na rampa do Palácio do Planalto para a recepção a Nicolás Maduro,
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou a “narrativa” antidemocrática
contra a Venezuela.
Na semana passada, Maduro assinou decretos
para dar início à administração de Essequibo e à exploração de petróleo na
região que corresponde a dois terços do território da Guiana.
A ofensiva é a mais ousada desde 1841, quando
a Venezuela apresentou suas primeiras queixas a uma suposta “invasão” de seu
território por uma Guiana ainda britânica.
De lá para cá, a Venezuela assinou e rasgou
sucessivos acordos de reconhecimento da legitimidade territorial da Guiana
sobre Essequibo. Os governos dos dois países assinaram o Tratado de Washington
em 1897 seguido de uma arbitragem de cinco juízes que, dois anos depois, deu
ganho de causa para o Reino Unido.
Em 1963, sob o governo de Rómulo Betancourt, a Venezuela contestou aquela arbitragem com a alegação de que seu resultado derivou de um complô entre seus integrantes de origem americana, inglesa e russa.
Com a Guiana independente três anos depois,
uma comissão, acertada em Genebra, reabriu a questão. Em 1970, ambos os países
assinaram protocolo que suspendeu as reivindicações territoriais na região por
12 anos, renováveis por decisão das partes.
Em 1982, a Venezuela decidiu não renovar o
protocolo, acionou as Nações Unidas e a relação evoluiu para seu período de
maior cooperação. A Guiana vendia arroz para a Venezuela e recebia petróleo do
vizinho. Com a crise, também passou a receber migrantes. A ONU calcula que haja
36 mil refugiados venezuelanos na Guiana.
Tudo mudou em maio de 2015, quando a
ExxonMobil descobriu aquela que, em 2020, seria a maior reserva per capita de
petróleo do planeta. Com 8 bilhões de barris e uma população de apenas 780 mil
pessoas, a Guiana se transformaria num novo emirado.
Num extensivo e detalhado artigo sobre a
disputa (“Guiana: Petróleo, disputas internas, os Estados Unidos e a
Venezuela”, publicado em abril deste ano na revista “Contexto Internacional”),
quatro pesquisadores da Universidade do Rio de Janeiro (Raphael Padula, Matheus
Cecílio, Igor Oliveira e Caio Prado) explicam por que as novas reservas estão
no centro da disputa.
Parece clara a disposição de Maduro em obter
dividendos eleitorais na disputa presidencial de 2024 ou até mesmo colocar em
questão sua realização. A Venezuela investe no reposicionamento do país no novo
quadro de alianças do mundo produtor de petróleo, com os países árabes,
liderados pela Arábia Saudita, mais próximos da Rússia e da China do que da
parceria histórica com os Estados Unidos.
Se a ameaça de Maduro sobre o território da
Guiana não passa de uma investida eleitoral, a ambição sobre áreas marítimas
parece concreta, seja pelo acesso mais direto ao Oceano Atlântico, seja pelas
reservas. A reclamação da Venezuela envolve uma área a partir de uma projeção
da foz do rio Orinoco, próximo à Guiana, hoje explorada por um consórcio
formado pela americana ExxonMobil (45%), a também americana Hess Guyana (30%) e
pela estatal chinesa Cnooc (25%).
A ExxonMobil, juntamente com British
Petroleum, Chevron, ConocoPhilips, Total e Statoil, haviam sido varridas, pelo
decreto de nacionalização de Hugo Chávez, da Venezuela. É o país mais rico em
petróleo do mundo, mas com um grau de produtividade inferior ao do Brasil, que
tem 4% de suas reservas, pela falta de investimento.
Com 303 bilhões de barris, segundo o
“Oil&Gas Journal”, a Venezuela supera a Arábia Saudita (258 bilhões), o Irã
(208 bilhões) e o Canadá (170 bilhões). Os Estados Unidos (47 bilhões) não são
páreo e o Brasil (13 bilhões) tampouco.
A Guiana, com uma reserva de 8 bilhões de
barris de óleo leve, mais valorizado no mercado, parece um primo pobre nesta
galeria das grandes riquezas petrolíferas. Mas a população, minúscula,
possibilita que sua produção possa ser destinada quase inteiramente à
exportação, nos cálculos das petrolíferas.
Hoje retratada pela propaganda venezuelana
como um joguete nas mãos da ExxonMobil, a Guiana tem uma história de mais
complexidades do que sugere Maduro. Único país de língua inglesa da América do
Sul, a Guiana tem se aproximado da China a ponto de o governo ter anunciado, em
visita a Xi Jinping, em setembro, a disposição de ampliar os atuais
investimentos em infraestrutura e mineração aderindo à iniciativa chinesa “Belt
& Road”.
A Guiana é governada por um presidente
muçulmano, Irfaan Ali, de origem indiana como 40% de sua população. É filiado
ao PPP (Partido Progressista do Povo). O segundo maior grupo étnico, de origem
africana, representa 30% da população e está abrigado no APNU (Aliança da
Unidade Nacional). O resto da população se divide entre nativos (10%) e
diferentes origens, como chinesa, que deu ao país seu primeiro presidente.
Filho de imigrantes chineses, Arthur Chung
formou-se em direito no Reino Unido e chegou a juiz da Corte de Apelação em
Georgetown antes de se eleger à presidência em 1970, quatro anos depois da
independência do país. Daria início a uma linhagem de presidentes nacionalistas
que estabeleceram fortes laços com regimes comunistas da Guerra Fria bem antes
de Hugo Chávez fazê-lo.
Esta relação foi sedimentada pela fundação do
PPP, partido de origem socialista, por Cheddi e Janet Jagan.
O casal Jagan se conheceu nos EUA, Cheddi
como estudante. Em Georgetown, deram início a uma militância sindical e
política que lhes custou uma prisão durante os embates da independência antes
da ascensão ao poder.
Nascida em Chicago, de origem judaica, Janet
Jagan seria eleita presidente no mandato subsequente ao do marido, de quem
havia sido ministra. Foi a primeira presidente da América do Sul e única branca
a governar o país.
Desde 1966, quando se tornou independente, a
Guiana se mantém na Commonwealth, comunidade das ex-colônias britânicas. A
descoberta de suas novas reservas tornou o país mais estratégico para os
Estados Unidos, não apenas pela litigiosidade com a Venezuela, mas pela
crescente autonomia dos produtores árabes em relação ao seu tradicional
parceiro. Os exercícios militares do Comando Sul das Forças Aéreas dos Estados
Unidos, um dia depois da queda de um helicóptero militar da Guiana, o
demonstram.
O anúncio, pela ExxonMobil, das novas
reservas do país aconteceu nove dias antes da eleição de um presidente da ANPU,
David Granger, que pôs fim a 23 anos do PPP no poder. O ex-CEO da Exxon e
ex-secretário de Estado do governo Donald Trump Rex Tillerson chegou a dizer
que a descoberta havia colocado a região no “centro da disputa global”.
Em 2020, o PPP voltou ao poder no país que,
no ano passado, viu sua economia se expandir 62%, liderando o ranking de
crescimento do Fundo Monetário Internacional.
A despeito da fronteira de 1.605 km, na
Amazônia, o Brasil mantém escassas relações com o país. Em meio à escalada do
confronto com a Venezuela, Lula anunciou, em sua passagem recente pela
Alemanha, que a viagem para Georgetown, como convidado do Caricom, comunidade
de 15 países do Caribe, é uma das duas viagens internacionais que pretende
fazer em 2024 (a outra é a Adis Abeba).
Até a eclosão do conflito, que tira o sono da
diplomacia brasileira, era na gôndola de supermercado que a Guiana mais se
aproximava do país. É da região em disputa que se origina o açúcar marrom e de
grão encorpado, consumido no Brasil com o nome de demerara.
É de uma historiadora brasileira, Emília
Viotti da Costa, falecida em 2017, o caudaloso relato de uma das mais
importantes rebeliões da América do Sul colonial - “Coroas de glória, lágrimas
de sangue: A rebelião dos escravos de Demerara em 1823”.
Historiadora que fez carreira nos Estados
Unidos, depois de ter sido presa e aposentada compulsoriamente em 1969, Viotti
da Costa mergulhou nos arquivos britânicos para reconstituir a história de uma
rebelião nascida da luta de escravos educados por missionários evangélicos.
Duzentos anos antes de a religião evangélica
ter se transformado num dos braços ideológicos da extrema direita ao Norte e ao
Sul do continente, a releitura dos pressupostos de fraternidade e
autodisciplina do protestantismo deu gás à subversão. Levou um contingente
entre 9 mil e 12 mil escravos a enfrentar os grilhões de uma colônia que
disputava com o Brasil os mercados mundiais de açúcar e algodão.
O julgamento injusto do missionário símbolo
da rebelião, John Smith, que acabaria morrendo na prisão, incendiou o debate
sobre abolição e sobre as condições de vida dos operários na metrópole e
transformaria de vez a Guiana. Depois de dez anos de debates intensamente
cobertos pela imprensa britânica, veio a abolição.
Duzentos anos depois, nem as bravatas de
Maduro sobre o conflito na região, hoje sob a zona de influência dos Estados
Unidos, afetam a opinião pública americana. No primeiro domingo depois da
escalada marcada pelos decretos de anexação e exercícios militares americanos
na Guiana, o “The New York Times” não trouxe uma única linha sobre o conflito.
2 comentários:
■■■A que desfaçatez a desonestidade e cinismo de Lula chegam, não é::
■ "Em maio, depois de colocar os Dragões da Independência na rampa do Palácio do Planalto para a recepção a Nicolás Maduro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou a “narrativa” antidemocrática contra a Venezuela.".
■■■Na cabeça desonesta de Lula, a Venezuela e seu chavismo ser uma ditadura não é um fato; para a índole sempre desonesta de Lula dizer que a Venezuela é uma ditadura trata-se de "narrativa".
■E Lula atribui falta de democracia aos que denunciam os ditadores e os denomina pelo que são: DITADORES ; e não atribui falta de democracia a quem realmente com a democracia não tem nenhum compromisso verdadeiro, a começar por ele mesmo, Lula.
Artigo bom,mas muito longo!
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