sábado, 16 de dezembro de 2023

Maria Cristina Fernandes - O alvo da bravata de Nicolás Maduro

Valor Econômico

Ao ameaçar a Guiana, presidente venezuelano mira à rediscussão das linhas que demarcam o mar territorial dos dois países por acesso mais direto ao Atlântico e por um percentual da exploração no país vizinho

Ao voltar de uma viagem relâmpago a Caracas, em março deste ano, o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, disse que, em 20 anos de contato com a Venezuela, nunca tinha visto “um clima tão grande de incentivo à democracia”.

Em maio, depois de colocar os Dragões da Independência na rampa do Palácio do Planalto para a recepção a Nicolás Maduro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou a “narrativa” antidemocrática contra a Venezuela.

Na semana passada, Maduro assinou decretos para dar início à administração de Essequibo e à exploração de petróleo na região que corresponde a dois terços do território da Guiana.

A ofensiva é a mais ousada desde 1841, quando a Venezuela apresentou suas primeiras queixas a uma suposta “invasão” de seu território por uma Guiana ainda britânica.

De lá para cá, a Venezuela assinou e rasgou sucessivos acordos de reconhecimento da legitimidade territorial da Guiana sobre Essequibo. Os governos dos dois países assinaram o Tratado de Washington em 1897 seguido de uma arbitragem de cinco juízes que, dois anos depois, deu ganho de causa para o Reino Unido.

Em 1963, sob o governo de Rómulo Betancourt, a Venezuela contestou aquela arbitragem com a alegação de que seu resultado derivou de um complô entre seus integrantes de origem americana, inglesa e russa.

Com a Guiana independente três anos depois, uma comissão, acertada em Genebra, reabriu a questão. Em 1970, ambos os países assinaram protocolo que suspendeu as reivindicações territoriais na região por 12 anos, renováveis por decisão das partes.

Em 1982, a Venezuela decidiu não renovar o protocolo, acionou as Nações Unidas e a relação evoluiu para seu período de maior cooperação. A Guiana vendia arroz para a Venezuela e recebia petróleo do vizinho. Com a crise, também passou a receber migrantes. A ONU calcula que haja 36 mil refugiados venezuelanos na Guiana.

Tudo mudou em maio de 2015, quando a ExxonMobil descobriu aquela que, em 2020, seria a maior reserva per capita de petróleo do planeta. Com 8 bilhões de barris e uma população de apenas 780 mil pessoas, a Guiana se transformaria num novo emirado.

Num extensivo e detalhado artigo sobre a disputa (“Guiana: Petróleo, disputas internas, os Estados Unidos e a Venezuela”, publicado em abril deste ano na revista “Contexto Internacional”), quatro pesquisadores da Universidade do Rio de Janeiro (Raphael Padula, Matheus Cecílio, Igor Oliveira e Caio Prado) explicam por que as novas reservas estão no centro da disputa.

Parece clara a disposição de Maduro em obter dividendos eleitorais na disputa presidencial de 2024 ou até mesmo colocar em questão sua realização. A Venezuela investe no reposicionamento do país no novo quadro de alianças do mundo produtor de petróleo, com os países árabes, liderados pela Arábia Saudita, mais próximos da Rússia e da China do que da parceria histórica com os Estados Unidos.

Se a ameaça de Maduro sobre o território da Guiana não passa de uma investida eleitoral, a ambição sobre áreas marítimas parece concreta, seja pelo acesso mais direto ao Oceano Atlântico, seja pelas reservas. A reclamação da Venezuela envolve uma área a partir de uma projeção da foz do rio Orinoco, próximo à Guiana, hoje explorada por um consórcio formado pela americana ExxonMobil (45%), a também americana Hess Guyana (30%) e pela estatal chinesa Cnooc (25%).

A ExxonMobil, juntamente com British Petroleum, Chevron, ConocoPhilips, Total e Statoil, haviam sido varridas, pelo decreto de nacionalização de Hugo Chávez, da Venezuela. É o país mais rico em petróleo do mundo, mas com um grau de produtividade inferior ao do Brasil, que tem 4% de suas reservas, pela falta de investimento.

Com 303 bilhões de barris, segundo o “Oil&Gas Journal”, a Venezuela supera a Arábia Saudita (258 bilhões), o Irã (208 bilhões) e o Canadá (170 bilhões). Os Estados Unidos (47 bilhões) não são páreo e o Brasil (13 bilhões) tampouco.

A Guiana, com uma reserva de 8 bilhões de barris de óleo leve, mais valorizado no mercado, parece um primo pobre nesta galeria das grandes riquezas petrolíferas. Mas a população, minúscula, possibilita que sua produção possa ser destinada quase inteiramente à exportação, nos cálculos das petrolíferas.

Hoje retratada pela propaganda venezuelana como um joguete nas mãos da ExxonMobil, a Guiana tem uma história de mais complexidades do que sugere Maduro. Único país de língua inglesa da América do Sul, a Guiana tem se aproximado da China a ponto de o governo ter anunciado, em visita a Xi Jinping, em setembro, a disposição de ampliar os atuais investimentos em infraestrutura e mineração aderindo à iniciativa chinesa “Belt & Road”.

A Guiana é governada por um presidente muçulmano, Irfaan Ali, de origem indiana como 40% de sua população. É filiado ao PPP (Partido Progressista do Povo). O segundo maior grupo étnico, de origem africana, representa 30% da população e está abrigado no APNU (Aliança da Unidade Nacional). O resto da população se divide entre nativos (10%) e diferentes origens, como chinesa, que deu ao país seu primeiro presidente.

Filho de imigrantes chineses, Arthur Chung formou-se em direito no Reino Unido e chegou a juiz da Corte de Apelação em Georgetown antes de se eleger à presidência em 1970, quatro anos depois da independência do país. Daria início a uma linhagem de presidentes nacionalistas que estabeleceram fortes laços com regimes comunistas da Guerra Fria bem antes de Hugo Chávez fazê-lo.

Esta relação foi sedimentada pela fundação do PPP, partido de origem socialista, por Cheddi e Janet Jagan.

O casal Jagan se conheceu nos EUA, Cheddi como estudante. Em Georgetown, deram início a uma militância sindical e política que lhes custou uma prisão durante os embates da independência antes da ascensão ao poder.

Nascida em Chicago, de origem judaica, Janet Jagan seria eleita presidente no mandato subsequente ao do marido, de quem havia sido ministra. Foi a primeira presidente da América do Sul e única branca a governar o país.

Desde 1966, quando se tornou independente, a Guiana se mantém na Commonwealth, comunidade das ex-colônias britânicas. A descoberta de suas novas reservas tornou o país mais estratégico para os Estados Unidos, não apenas pela litigiosidade com a Venezuela, mas pela crescente autonomia dos produtores árabes em relação ao seu tradicional parceiro. Os exercícios militares do Comando Sul das Forças Aéreas dos Estados Unidos, um dia depois da queda de um helicóptero militar da Guiana, o demonstram.

O anúncio, pela ExxonMobil, das novas reservas do país aconteceu nove dias antes da eleição de um presidente da ANPU, David Granger, que pôs fim a 23 anos do PPP no poder. O ex-CEO da Exxon e ex-secretário de Estado do governo Donald Trump Rex Tillerson chegou a dizer que a descoberta havia colocado a região no “centro da disputa global”.

Em 2020, o PPP voltou ao poder no país que, no ano passado, viu sua economia se expandir 62%, liderando o ranking de crescimento do Fundo Monetário Internacional.

A despeito da fronteira de 1.605 km, na Amazônia, o Brasil mantém escassas relações com o país. Em meio à escalada do confronto com a Venezuela, Lula anunciou, em sua passagem recente pela Alemanha, que a viagem para Georgetown, como convidado do Caricom, comunidade de 15 países do Caribe, é uma das duas viagens internacionais que pretende fazer em 2024 (a outra é a Adis Abeba).

Até a eclosão do conflito, que tira o sono da diplomacia brasileira, era na gôndola de supermercado que a Guiana mais se aproximava do país. É da região em disputa que se origina o açúcar marrom e de grão encorpado, consumido no Brasil com o nome de demerara.

É de uma historiadora brasileira, Emília Viotti da Costa, falecida em 2017, o caudaloso relato de uma das mais importantes rebeliões da América do Sul colonial - “Coroas de glória, lágrimas de sangue: A rebelião dos escravos de Demerara em 1823”.

Historiadora que fez carreira nos Estados Unidos, depois de ter sido presa e aposentada compulsoriamente em 1969, Viotti da Costa mergulhou nos arquivos britânicos para reconstituir a história de uma rebelião nascida da luta de escravos educados por missionários evangélicos.

Duzentos anos antes de a religião evangélica ter se transformado num dos braços ideológicos da extrema direita ao Norte e ao Sul do continente, a releitura dos pressupostos de fraternidade e autodisciplina do protestantismo deu gás à subversão. Levou um contingente entre 9 mil e 12 mil escravos a enfrentar os grilhões de uma colônia que disputava com o Brasil os mercados mundiais de açúcar e algodão.

O julgamento injusto do missionário símbolo da rebelião, John Smith, que acabaria morrendo na prisão, incendiou o debate sobre abolição e sobre as condições de vida dos operários na metrópole e transformaria de vez a Guiana. Depois de dez anos de debates intensamente cobertos pela imprensa britânica, veio a abolição.

Duzentos anos depois, nem as bravatas de Maduro sobre o conflito na região, hoje sob a zona de influência dos Estados Unidos, afetam a opinião pública americana. No primeiro domingo depois da escalada marcada pelos decretos de anexação e exercícios militares americanos na Guiana, o “The New York Times” não trouxe uma única linha sobre o conflito.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

■■■A que desfaçatez a desonestidade e cinismo de Lula chegam, não é::

■ "Em maio, depois de colocar os Dragões da Independência na rampa do Palácio do Planalto para a recepção a Nicolás Maduro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou a “narrativa” antidemocrática contra a Venezuela.".

■■■Na cabeça desonesta de Lula, a Venezuela e seu chavismo ser uma ditadura não é um fato; para a índole sempre desonesta de Lula dizer que a Venezuela é uma ditadura trata-se de "narrativa".

■E Lula atribui falta de democracia aos que denunciam os ditadores e os denomina pelo que são: DITADORES ; e não atribui falta de democracia a quem realmente com a democracia não tem nenhum compromisso verdadeiro, a começar por ele mesmo, Lula.

ADEMAR AMANCIO disse...

Artigo bom,mas muito longo!