domingo, 8 de fevereiro de 2009

O pior cego...

Sérgio Fausto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Um amigo, que agora acompanha de perto a cena política da Itália e faz tempo reflete sobre as relações internacionais, sob a perspectiva das sociedades civis, e não apenas dos governos dos países, escreveu-me esta semana a respeito dos danos que o episódio Battisti vem provocando à imagem do Brasil na sociedade italiana.

Muito se tem falado sobre os efeitos do episódio nas relações governo a governo. O estrago salta aos olhos. Menos visível, mas não menos importante, é a perda de parte da simpatia e do prestígio acumulados ao longo de anos pelo Brasil entre os italianos.

Não é uma perda irreversível, claro, mas levará tempo para sanar os efeitos da decisão desastrada e quase inexplicável do ministro Tarso Genro. Ao conceder refúgio a Cesare Battisti - nunca é demais lembrar, contrariando a decisão do Conselho Nacional dos Refugiados e não obstante sentenças condenatórias em tribunais italianos e uma corte europeia - ele desconsiderou não apenas a reação previsível do governo daquele país, mas principalmente o sentimento existente na sociedade italiana em relação aos chamados "anni di piombo".

Foram mesmo anos de chumbo: entre o atentado a bomba da Piazza Fontana, em 1969, e a explosão da estação de trem de Bolonha, em 1980, grupos de extrema-direita e extrema-esquerda promoveram o terror. Não apenas se trucidaram reciprocamente, mas também vitimaram políticos, agentes do Estado, principalmente policiais e juízes, e muitas pessoas comuns. Foram muitos os mortos - 85 deles apenas no atentado na estação de Bolonha, perpetrado pela extrema-direita. E imenso o trauma deixado.

O sequestro e o posterior assassinato de Aldo Moro, pelo seu significado político, dão a chave para entender a dinâmica daqueles anos terríveis. Moro havia sido primeiro-ministro por duas vezes, era uma das principais lideranças do maior partido do país, a Democracia Cristã (DC), e estava empenhado na construção do que à época ficou conhecido como "o compromisso histórico".

Tratava-se de uma aliança entre a DC e o Partido Comunista Italiano (PCI), que atingira quase 35% nas eleições legislativas de 1976. Pelo lado da DC, Moro era o principal artífice da aliança. Pelo PCI, Enrico Berlinguer, que vinha conduzindo o partido para longe do PC da URSS. Da sua ótica, o "compromisso histórico" serviria para dar estabilidade política à Itália num momento especialmente delicado (além do terrorismo, o país enfrentava os efeitos da crise resultante do primeiro choque do petróleo) e pavimentar o caminho para uma transição pacífica para o socialismo. O Chile, onde a polarização entre os partidos de esquerda e a DC abrira caminho para o golpe de Pinochet, em 1973, oferecia-lhe o contraexemplo.

O "compromisso histórico" tinha muitos inimigos. Na extrema-esquerda, as Brigadas Vermelhas e outros grupúsculos, entre os quais o de Cesare Battisti, que apostavam na polarização política e na destruição do "Estado imperialista das multinacionais" (as Brigadas assim designavam o Estado italiano), pela via armada. Na extrema-direita, os setores terroristas do Movimento Social Italiano, partido fascista, que viam no "compromisso histórico" a antessala da "comunização" do país.

Compartilhavam essa percepção, com maior ou menor nuance, setores do serviço secreto italiano e do establishment conservador norte-americano. Sim, a Itália, pela presença de um partido comunista de massas, foi o foco das preocupações e da atuação dos Estados Unidos na Europa Ocidental durante a guerra fria. Na Bota, a intromissão da CIA na política doméstica não é mito, mas um fato histórico fartamente documentado. Como se não bastasse, o "compromisso histórico" encontrava oposição na ala da Democracia Cristã ligada a Giulio Andreotti, também ele primeiro-ministro da Itália por duas vezes, político mais conservador, cujas ligações com a Máfia viriam a público anos depois.

A despeito de tudo, a aliança entre a DC e o PCI avançou. Moro foi sequestrado quando se dirigia ao Parlamento para uma sessão na qual seria confirmado o primeiro governo da DC com o apoio dos comunistas. Brutalmente assassinado com dez tiros à queima-roupa, desferidos pelo líder brigadista Mario Moretti, teve seu corpo encontrado 55 dias após a sua captura no porta-malas de um carro abandonado na Via Caetani, em Roma, num ponto equidistante entre as sedes do PCI e da DC. O simbolismo não poderia ser mais claro. Ao assassinar Moro, as Brigadas procuravam sepultar o "compromisso histórico".

A aliança entre a DC e o PCI, ao final, não teve vida longa, por razões que vão além do assassinato de Moro. Na esteira de seu fracasso, a política italiana voltou a girar em torno das alianças da DC com outros partidos menores, lubrificadas por práticas pouco ortodoxas na lida com recursos e cargos públicos, que foram desnudadas no âmbito da Operação Mãos Limpas, nos anos 90. Desnudadas, mas não erradicadas, infelizmente.

Num aspecto crucial, porém, houve progresso na política italiana nos mais de 30 anos que nos separam do caso Aldo Moro: o terrorismo, cujas fronteiras com o crime comum se tornaram cada vez mais tênues, foi eliminado pela atuação do Estado e pela repulsa veemente da quase totalidade da sociedade italiana.

Foi esse sentimento de repulsa - guardado, mas ainda vivo - que a decisão do ministro Tarso Genro atraiu contra o Brasil e o governo atual. Fosse apenas contra o governo atual, teríamos, em tese, um problema circunscrito e com prazo determinado. Mas é a imagem do Brasil que se vê atingida, a menos que o STF "corrija" a decisão ministerial. Isso parece improvável. É que a decisão de Tarso Genro, ao que tudo indica, não fere a legalidade. Ela fere o bom juízo político que se espera de um ministro de Estado.

Sérgio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP

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