- O Estado de S. Paulo
Poderia um marxista, nesses tempos de crise de seu próprio campo teórico, analisar com isenção e eficácia a relação dos intelectuais com o marxismo? Se este marxista praticar um marxismo aberto ao novo, distante de dogmas e cristalizações doutrinárias, sem dúvida que sim. Se se chamasse Leandro Konder, a certeza seria ainda maior.
Konder, que morreu quarta-feira, 12/11/2014, aos 78 anos, foi uma ave rara no panorama intelectual brasileiro. Dono de vasta bagagem cultural e de amplo conhecimento de ciência e filosofia, foi um de nossos mais refinados marxistas, um pesquisador disciplinado e meticuloso, capaz de se debruçar tanto sobre grandes processos e questões abstratas quanto sobre detalhes aparentemente menores, com os quais compôs painéis históricos e perfis biográficos repletos de graça e rigor. Generoso, cordial e afetuoso por temperamento e convicção, foi um ativo escritor de livros. Ao longo da vida, publicou mais de duas dezenas deles, além de inúmeros artigos, ensaios e traduções.
Reconhecido por sua fineza intelectual e por seu texto envolvente, Konder nunca fez concessões ao doutrinarismo e ao dogmatismo tão comuns no universo marxista e no campo comunista, no qual militou a vida inteira. Também não se dobrou ao academicismo. Como professor, não se cansou de descer do pedestal e de construir pontes entre o saber acumulado e a jovem intelectualidade, os homens de cultura, os militantes democráticos e socialistas. Não atuou como mero “divulgador: esteve sempre interessado em resgatar os ângulos decisivos do marxismo, aqueles que melhor expressam o vigor e a originalidades das ideias de Marx e que acabaram por ser marginalizados pelo reducionismo “marxista-leninista” entranhado no imaginário dos partidos comunistas e de boa parte da esquerda, no Brasil e no mundo.
Konder desejou, em suma, repor no centro do marxismo a dimensão dialética, naquilo que tem de reconhecimento da irredutibilidade do real ao saber, de questionamento permanente, de recuperação plena do conceito de práxis. Buscou resgatar tudo isso à luz dos temas de hoje, sem deixar de lado episódios menosprezados, autores “malditos” ou polêmicas correntes. Pôs-se a tarefa de convidar seus leitores e ouvintes a despir-se de dogmas e preconceitos, alçar vôo e acompanhá-lo numa viagem ao cerne de debate político-cultural da modernidade.
Leandro possuía ainda outra característica distintiva: não se levou exageradamente a sério o tempo inteiro, como gostava de dizer. Havia nele, em doses fartas, um delicioso senso de humor que suavizava a firmeza da crítica e humanizava a exposição, recheando-as de detalhes e boutades que funcionavam como travas de sustentação da narrativa e sempre revelavam algo mais do personagem ou do assunto em foco. Como se não bastasse, a verve de Konder ajudou-o também a demonstrar que um marxista não é necessariamente um chato. “Importante mesmo – reconheceu certa vez – é ser intelectual marxista e preservar o senso de humor”. Não era gratuita sua admiração pelo Barão de Itararé,o corrosivo Aparício Torelly, o primeiro dos nossos “humoristas da democracia”, ao qual dedicou um saborosíssimo livrinho em 1983.
Todos estes traços estiveram presentes – com peso diferenciado – na extensa bibliografia de Leandro Konder, na qual se integram ensaios sobre grandes pensadores (Lukács, Hegel, Marx, Benjamin), estética, problemas filosóficos e temas políticos, com seguidas incursões pela história brasileira, vista pelo ângulo da cultura, dos intelectuais marxistas e do movimento comunista.
Em 1991, no livro Intelectuais Brasileiros e Marxismo, Konder analisou o encontro de certos intelectuais com o pensamento de Marx e com a prática política nele inspirada. A hipótese era que o marxismo, no Brasil, “antes de ser trabalhado no nível dos conceitos, foi vivido e traduzido em ação por numerosos ativistas políticos, militantes, batalhadores”, regra geral associados às lutas do movimento operário e do PCB, principal difusor das idéias de Marx no Brasil. Uma história do marxismo no Brasil, ponderava Konder, precisaria ir além da apreensão de aspectos exteriores, meramente relacionais; precisaria “examinar a representação da realidade em que tais lutadores se baseavam para agir”. Descobrir-se-ia, assim, o estatuto do marxismo por eles assimilado, sua maior ou menor rigidez doutrinária, sua eventual ausência de molejo dialético e dimensão filosófica. Num certo sentido, foi essa a perspectiva buscada em A Derrota da Dialética (1987), no qual investigou a recepção das ideias de Marx no Brasil até os anos trinta.
Leandro sempre se preocupou em decifrar duas formas típicas de pensamento: a mais “espontânea” e a mais elaborada, o pensamento instrumentalizado para a prática política e o pensamento dedicado a construções teóricas mais ambiciosas, que procuram “ultrapassar os limites das intuições e percepções empíricas que, com freqüência, atendem às necessidades imediatas dos abnegados militantes”. Nunca se propôs a abordar o tema da influência do marxismo na cultura brasileira em geral, o que tornaria ampla demais a relação dos personagens a serem considerados.
Dialogou com intelectuais de distinta trajetória e formação (Astrojildo Pereira, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Nelson Werneck Sodré, Antonio Candido, Sérgio Paulo Rouanet, Roberto Schwarz, José Guilherme Merquior, entre outros), que, cada um a seu modo, entraram em contato com o marxismo e com ele dialogaram. Alguns “aderiram entusiasticamente aos princípios do marxismo; outros lhe reconheceram aspectos estimulantes e trataram de assimilá-los; outros, ainda, prestaram-lhe a homenagem de discutir com ele, recusando-o de maneira global, mas freqüentando-o como interlocutor incômodo porém útil, ao qual se volta sempre para o exercício da discórdia”.
Konder nos ajudou, assim, a entender como e porque o marxismo, no Brasil, ainda que sem conseguir se completar como matriz permanente de grandes criações, funcionou como importante pólo de atração e referência da intelectualidade, a ela fornecendo estímulo para uma melhor consideração da questão social e parâmetros para a superação das tendências individualistas e corporativas quase sempre inevitáveis na vida cultural.
Leandro também foi decisivo para que muitas pessoas compreendessem que há muita coisa envelhecida e superada em Marx e o marxismo encontra-se em crise profunda, mas Marx ainda não é carta fora do baralho e em certos aspectos pulsa com vitalidade. Seu primoroso livro O futuro da filosofia da práxis. O pensamento de Marx no século XXI, publicado em 1992, é revelador de um modo de pensar. Está lá, com todas as letras, o princípio que norteou sua atuação:
“O pensamento que provém de Marx e que, mal ou bem, atravessou o século XX combatendo, não tem nenhuma chance de sobreviver refugiado em universidades ou em institutos científicos; e também não tem nenhuma possibilidade de resistir à autodissolução se renunciar ao rigor teórico, realizar um sacrificium intellectus, abandonar as exigências da reflexão e tornar-se instrumento de alguma seita.”
Marx foi “um pensador do século XIX”. Comparados com os nossos, seus horizontes eram limitados. Havia nele traços fortes de “eurocentrismo”, a questão da democracia e de seu valor universal não merecia maior atenção, estavam ausentes ou rebaixados, entre outros, os temas relativos à dignidade da pessoa humana, à autonomização dos indivíduos, ao pluripartidarismo e à participação das massas na vida pública e no controle do Estado. Além do mais, a perspectiva de Marx foi literalmente saqueada pela prática partidária comunista ao longo do século XX, ficando reduzida em sua complexidade, engessada e atrofiada em diversos pontos. Ao menos por isso, os textos de Marx não podem ser convertidos em doutrina fechada, uma espécie de cataplasma universal pronto para ser “aplicado” nas feridas abertas pelo capitalismo. Em Marx, enfatizava Konder, “não existe nenhum anabolizante para os atletas do socialismo revolucionário atravessarem em tempo recorde a tempestade da crise atual”. Há, isso sim, um convite à crítica permanente e à revisão.
Além do mais, não havia e não há porque santificar Marx e vê-lo como que pairando acima de sua própria época e de seus limites. “O fato de ter sido um desmistificador genial dos fenômenos típicos de uma esfera decisiva da atividade alienada (a esfera da produção e da apropriação) – escreveu Leandro – não assegurava a Marx uma consciência isenta de ‘alienação’ na esfera da vida familiar e da moral privada”.
Konder jamais se fechou para as diversas correntes da filosofia e do pensamento. Foi o marxista que todos deveriam tentar ser: afável, não sectário, modesto, nada professoral, sempre disposto a ouvir e a se reformular. O “seu” Marx estava aliviado das cristalizações enrijecidas pelo tempo e a manipulação intensiva; era um pensador carregado de força sugestiva, capaz de iluminar muitas das perplexidades com que nos deparamos na sociedade atual: a degradação do trabalho, o caráter dilacerado da comunidade humana, a mercantilização galopante da vida social, o esvaziamento dos valores, a perda de potência das grandes utopias e da ideia de socialismo.
Em um de seus últimos livros (Em torno de Marx, de 2010), Leandro fez questão de valorizar o Marx filósofo, cuja contribuição à construção do conhecimento na cultura do Ocidente não teria sido plenamente aproveitada. Reiterou o convite à reflexão crítica e autocrítica, como se estivesse a repisar o terreno do qual jamais se afastou:
“Os cientistas erram. Não só eles: todos nós erramos. E é errando e corrigindo o erro que se aprende. Na esperança de diminuir seus erros, os homens aprendem a pensar mais criticamente e, por extensão, mais autocriticamente. O exercício do diálogo abre espaço para conhecimentos novos e ajuda a evitar que se percam conhecimentos desmistificadores”.
A morte de Leandro Konder retirou na cultura brasileira um de seus personagens mais ativos, gentis e generosos. Um grande intelectual, um marxista que jamais se fechou em dogmatismos, um democrata. Seu trabalho ajudou a formar muitas gerações de marxistas não sectários, democráticos e pluralistas.
Fomos muito amigos. Nos últimos anos não o encontrei mais, e me lamento muito por isso. Carregarei esta culpa daqui para frente. Tentei algumas vezes, não consegui. Tudo ficou difícil.
Em 1988, Leo revisou com esmero uma tradução do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, que eu havia preparado para a Editora Vozes, cotejando-a rigorosamente com o original alemão. Fez o trabalho como amigo, interessado exclusivamente no valor da edição. Tive de convencê-lo a compartilhar comigo a autoria da tradução. Em 2004, redigiu a quarta capa de meu livro Um Estado para a sociedade civil. Foi um acontecimento para mim.
Jamais o esquecerei, por isto, por ter sido ele quem foi, pelas coisas que fizemos juntos, por sua importância na minha formação e por sempre ter sido um exemplo a seguir.
Todas as lágrimas, lembranças e homenagens a ele serão poucas.
Marco Aurélio Nogueira, cientista político e professor de teoria política na Unesp
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