O Globo
O país atacante costuma alegar questões de
sobrevivência da nação para empreender guerras eletivas
O belo, a arte, a ciência importam quando
bombas começam a cair? Foi em torno desse tema que o escritor irlandês C.S.
Lewis, autor, entre outras, das “Crônicas de Nárnia”, deu memorável palestra na
Universidade de Oxford em 1939, às vésperas da Segunda Guerra. Lewis escapara
por milagre de uma trincheira coalhada de cadáveres no conflito anterior
(1914-18), portanto conhecia o horror de mortos a granel. Ainda assim, ou
talvez por isso mesmo, respondeu afirmativamente à pergunta que nada tinha de
estapafúrdia.
— A vida humana sempre foi vivida à beira do
precipício — lembrou ele na ocasião.
Se esperássemos pela paz para criar arte, a
primeira pintura rupestre ainda não teria sido feita. Tampouco a busca do
conhecimento teria começado se aguardássemos estar em segurança plena.
— Isso não é brio, é nossa natureza — ensinou.
A célebre troca de cartas entre Sigmund Freud
e Albert Einstein sobre as causas e possíveis soluções para guerras, promovida
pela Liga das Nações em 1932, apenas confirmou que o bicho-homem não sabe viver
sem elas. Enquanto Einstein concentrou sua extensa argumentação nas estruturas
sociais e políticas do mundo, Freud pôs o foco nos conceitos de Eros (pulsão da
vida) e Tânatos (pulsão da morte), para concluir que a agressividade é uma
característica universal e atemporal do ser humano. Pensava que, na melhor das
hipóteses, podemos canalizar essa agressividade para formas de contendas menos
destrutivas.
Pelo jeito, nem isso. Cá estamos, em pleno
2025, com mais um precipício rasgando céus e vidas no Oriente Médio. Ao
contrário da esfera da medicina, em que cirurgias eletivas e cirurgias
obrigatórias são primos distantes, em confrontos bélicos as duas coisas se
misturam: o país atacante costuma alegar questões de sobrevivência da nação
para empreender guerras eletivas. É o caso do precipício desencadeado
pela Rússia de Vladimir
Putin contra a Ucrânia e da
metódica asfixia da vida civil em Gaza por parte
das Forças de Defesa de Israel (FDI).
De início, o argumento do governo de Benjamin
Netanyahu para esmagar o viver palestino em Gaza foi vingar as
atrocidades cometidas pelo Hamas na
fatídica manhã de 7 de outubro de 2023 — em apenas poucas horas, os terroristas
haviam trucidado indistintamente 1.217 crianças, jovens, velhos, civis e
militares que foram encontrando. Aniquilar o Hamas e libertar os 251 reféns
capturados pelos palestinos era a prioridade oficial. A meio caminho da
empreitada, contudo, Netanyahu passou a chamar a invasão militar de Gaza de
“questão de sobrevivência para Israel”. Hoje, decorridos 618 dias de ferocidade
contra o que resta de vida possível em Gaza, a justificativa da “ameaça
existencial” soa apenas o que é — cínica e criminosa. Nem guerra é.
A blitzkrieg israelense desencadeada na
madrugada de sexta-feira para abortar a capacidade nuclear do Irã, de seus mísseis
balísticos e — por que não? — o regime dos aiatolás tem alguma lógica interna —
sobretudo se você chefia o governo mais extremista-ortodoxo da História de
Israel. Com essa cartada, Netanyahu joga o tudo ou nada de sua carreira.
Embora o ataque não tenha sido propriamente
inesperado, o aniquilamento do topo da cadeia de comando militar iraniano
surpreendeu. Os preparativos clandestinos duraram oito meses e chegaram a visar
à eliminação de 25 cientistas ligados ao programa nuclear. O sistema de defesa
antiaérea iraniano parece ter sido neutralizado já na primeira salva. O alvo
maior, contudo — as instalações nucleares, algumas das quais construídas a mais
de 500 metros de profundidade —, pode exigir alargamento da guerra. Alargamento
em tempo, em recursos, em riscos e em insânia inerente a guerras.
Por enquanto, a intriga maior se refere ao
grau de envolvimento do governo americano na trama. Como se sabe, há meses o
negociador-chefe do presidente Donald Trump vinha
alimentando um diálogo com emissários iranianos para um hipotético acordo de
desnuclearização. Assim, à primeira vista, Netanyahu parecia ter assumido
sozinho o papel de belicoso-mor. A primeira nota oficial do governo americano
sobre o ataque, divulgada pelo chanceler Marco Rubio, chegou a falar em “ação
unilateral” de Israel, sugerindo possíveis reticências e ausência de consulta
prévia ao grande irmão.
Será? Poucas horas após o início do ataque,
Barak Ravid, um dos mais bem informados jornalistas sobre Oriente Médio,
escreveu no site Axios que duas fontes israelenses lhe confiaram ter sido tudo
coordenado entre Jerusalém e Washington. Um mero despiste bem-sucedido.
— Eu vi guerras — escreveu em 1936 o então
ocupante da Casa Branca Franklin D. Roosevelt. — Eu vi guerras em terra e no
mar. Eu vi sangue escorrendo dos feridos. Eu vi homens tossindo seus pulmões
gaseados. Eu vi mortos na lama. Eu vi cidades destruídas. Eu vi 200 homens
mancando e exaustos saindo da trincheira, eram sobreviventes de um regimento de
mil que avançou 48 horas antes. Eu vi crianças morrendo de fome. Eu vi a agonia
de mães e esposas. Eu odeio a guerra.
Continuamos vendo guerras. Mas continuamos a
fazer arte.
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