domingo, 15 de junho de 2025

Mais guerra – Dorrit Harazim

O Globo

O país atacante costuma alegar questões de sobrevivência da nação para empreender guerras eletivas

O belo, a arte, a ciência importam quando bombas começam a cair? Foi em torno desse tema que o escritor irlandês C.S. Lewis, autor, entre outras, das “Crônicas de Nárnia”, deu memorável palestra na Universidade de Oxford em 1939, às vésperas da Segunda Guerra. Lewis escapara por milagre de uma trincheira coalhada de cadáveres no conflito anterior (1914-18), portanto conhecia o horror de mortos a granel. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, respondeu afirmativamente à pergunta que nada tinha de estapafúrdia.

— A vida humana sempre foi vivida à beira do precipício — lembrou ele na ocasião.

Se esperássemos pela paz para criar arte, a primeira pintura rupestre ainda não teria sido feita. Tampouco a busca do conhecimento teria começado se aguardássemos estar em segurança plena.

— Isso não é brio, é nossa natureza — ensinou.

A célebre troca de cartas entre Sigmund Freud e Albert Einstein sobre as causas e possíveis soluções para guerras, promovida pela Liga das Nações em 1932, apenas confirmou que o bicho-homem não sabe viver sem elas. Enquanto Einstein concentrou sua extensa argumentação nas estruturas sociais e políticas do mundo, Freud pôs o foco nos conceitos de Eros (pulsão da vida) e Tânatos (pulsão da morte), para concluir que a agressividade é uma característica universal e atemporal do ser humano. Pensava que, na melhor das hipóteses, podemos canalizar essa agressividade para formas de contendas menos destrutivas. 

Pelo jeito, nem isso. Cá estamos, em pleno 2025, com mais um precipício rasgando céus e vidas no Oriente Médio. Ao contrário da esfera da medicina, em que cirurgias eletivas e cirurgias obrigatórias são primos distantes, em confrontos bélicos as duas coisas se misturam: o país atacante costuma alegar questões de sobrevivência da nação para empreender guerras eletivas. É o caso do precipício desencadeado pela Rússia de Vladimir Putin contra a Ucrânia e da metódica asfixia da vida civil em Gaza por parte das Forças de Defesa de Israel (FDI).

De início, o argumento do governo de Benjamin Netanyahu para esmagar o viver palestino em Gaza foi vingar as atrocidades cometidas pelo Hamas na fatídica manhã de 7 de outubro de 2023 — em apenas poucas horas, os terroristas haviam trucidado indistintamente 1.217 crianças, jovens, velhos, civis e militares que foram encontrando. Aniquilar o Hamas e libertar os 251 reféns capturados pelos palestinos era a prioridade oficial. A meio caminho da empreitada, contudo, Netanyahu passou a chamar a invasão militar de Gaza de “questão de sobrevivência para Israel”. Hoje, decorridos 618 dias de ferocidade contra o que resta de vida possível em Gaza, a justificativa da “ameaça existencial” soa apenas o que é — cínica e criminosa. Nem guerra é.

A blitzkrieg israelense desencadeada na madrugada de sexta-feira para abortar a capacidade nuclear do Irã, de seus mísseis balísticos e — por que não? — o regime dos aiatolás tem alguma lógica interna — sobretudo se você chefia o governo mais extremista-ortodoxo da História de Israel. Com essa cartada, Netanyahu joga o tudo ou nada de sua carreira.

Embora o ataque não tenha sido propriamente inesperado, o aniquilamento do topo da cadeia de comando militar iraniano surpreendeu. Os preparativos clandestinos duraram oito meses e chegaram a visar à eliminação de 25 cientistas ligados ao programa nuclear. O sistema de defesa antiaérea iraniano parece ter sido neutralizado já na primeira salva. O alvo maior, contudo — as instalações nucleares, algumas das quais construídas a mais de 500 metros de profundidade —, pode exigir alargamento da guerra. Alargamento em tempo, em recursos, em riscos e em insânia inerente a guerras.

Por enquanto, a intriga maior se refere ao grau de envolvimento do governo americano na trama. Como se sabe, há meses o negociador-chefe do presidente Donald Trump vinha alimentando um diálogo com emissários iranianos para um hipotético acordo de desnuclearização. Assim, à primeira vista, Netanyahu parecia ter assumido sozinho o papel de belicoso-mor. A primeira nota oficial do governo americano sobre o ataque, divulgada pelo chanceler Marco Rubio, chegou a falar em “ação unilateral” de Israel, sugerindo possíveis reticências e ausência de consulta prévia ao grande irmão.

Será? Poucas horas após o início do ataque, Barak Ravid, um dos mais bem informados jornalistas sobre Oriente Médio, escreveu no site Axios que duas fontes israelenses lhe confiaram ter sido tudo coordenado entre Jerusalém e Washington. Um mero despiste bem-sucedido.

— Eu vi guerras — escreveu em 1936 o então ocupante da Casa Branca Franklin D. Roosevelt. — Eu vi guerras em terra e no mar. Eu vi sangue escorrendo dos feridos. Eu vi homens tossindo seus pulmões gaseados. Eu vi mortos na lama. Eu vi cidades destruídas. Eu vi 200 homens mancando e exaustos saindo da trincheira, eram sobreviventes de um regimento de mil que avançou 48 horas antes. Eu vi crianças morrendo de fome. Eu vi a agonia de mães e esposas. Eu odeio a guerra.

Continuamos vendo guerras. Mas continuamos a fazer arte.

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