O Globo
As plataformas, e apenas elas, escolhem o que
veremos. E escolhem também o que não veremos
A decisão que o Supremo Tribunal Federal (STF) está para tomar a respeito das big techs não é um ataque à livre expressão. É apenas o reconhecimento daquilo que a Constituição prevê desde o início: o discurso é livre. Falar o que pensamos, podemos todos. Mas é preciso que exista responsabilização por eventuais consequências do que é dito. Não é à toa que o próprio texto constitucional reúne duas premissas. Não pode haver censura prévia, mas é vedado o anonimato. Ainda assim, o assunto é difícil, e não há qualquer consenso, entre os ministros, a respeito de como as grandes plataformas digitais devem se organizar para que sirvam de praça pública para o século XXI.
Os oito ministros que já votaram se
organizaram no entorno de três posições. A mais radical foi puxada por Dias
Toffoli, que considera inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da
Internet. Toffoli propõe que as plataformas devem ser equiparadas a meios de
comunicação tradicionais. Isso quer dizer que são corresponsáveis por tudo o
que se publica nelas. Se houver promoção de algum atentado contra a democracia,
se mentiras que causem dano a alguém forem distribuídas amplamente, aí há razão
para processo. Mais ou menos como ele, votaram também Alexandre
de Moraes, Luiz Fux e
Gilmar Mendes.
O grupo moderado, que reúne o presidente da
Corte, Luís
Roberto Barroso, com Flávio Dino e Cristiano
Zanin, vai por outro caminho. As plataformas não são imediatamente
responsáveis. Qualquer um que considere que algo publicado seja um problema
teria de fazer uma denúncia. A partir da denúncia extrajudicial feita, aí sim
se considera que as companhias estejam cientes de que há um problema. Elas
avaliam se é preciso parar de impulsionar ou mesmo tirar do ar o conteúdo.
Podem também avaliar que não há nada demais. Mas, a partir daí, são
corresponsáveis junto ao autor por qualquer dano.
O que une ambos os grupos é o dinheiro. Os
sete ministros concordam que, quando se trata de qualquer conteúdo que tenha
sido impulsionado nas redes, aí tudo muda. Se as plataformas receberam dinheiro
para pôr algo na frente de muita gente, são obviamente responsáveis. Os muitos
golpes de lojas falsas, os cancelamentos que podem afetar injustamente a
reputação de alguém, se houver crime e elas ganharam para distribuir, então
terão responsabilidade mesmo sem notificação.
Há o terceiro grupo, claro. O ministro André
Mendonça votou sozinho por nada mudar. Faltam se manifestar Cármen
Lúcia, Edson
Fachin e Kassio
Nunes Marques.
Muitos argumentam que o STF quer limitar o
que pode ser dito. O espírito da rede mudou muito desde que os princípios do
Marco Civil foram elaborados. Os algoritmos de recomendação não são neutros,
nem têm como ser. Sejam editores humanos, sejam editores de IA, a decisão de
apresentar a alguém um conteúdo em detrimento de outro segue algum critério. É
uma escolha ativa. No caso dos algoritmos usados nas redes sociais, o objetivo
é fazer com que a pessoa volte, volte e volte. Nos querem consumindo mais para
sermos expostos a mais propaganda. E tudo certo, é um negócio. Mas isso tem
consequências. Adolescentes obcecadas com o que percebem como falhas do próprio
corpo são levadas à automutilação — ou pior. Quem está num momento de
fragilidade é exposto e reexposto a jogos que o atiram no buraco financeiro —
ou pior. Imagens íntimas de homens e mulheres são transformadas em armas para
chantagem ou vingança.
Nada disso ocorre sem que um algoritmo
escolha expor seres humanos a um determinado tipo de informação. O problema não
está apenas em quem escolheu publicar aquilo. Afinal, não somos nós que
escolhemos o que veremos nas redes. São as redes. O ato de publicar não leva o
conteúdo a ser visto. O ato de seguir alguém cada vez menos quer dizer que
veremos o que publica. As plataformas, e apenas elas, escolhem o que veremos. E
escolhem também o que não veremos. Esse é um ato de edição. Quem edita é
responsável por suas escolhas.
As big techs propõem o seguinte: a sociedade
as deixa seguirem numa atividade que as tornou as empresas mais ricas do mundo,
e as consequências devem ser ignoradas. Estamos falando de depressão, conflito
social, democracias abaladas, golpes financeiros de toda sorte, suicídio.
O STF não é herói, e a Justiça brasileira tem
problemas demais. Mas, nesse caso, os ministros estão certos no ponto
essencial: o problema existe.
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