• Hoje, o Nordeste é também aqui — até seca o Sudeste tem. Mas de reforma urbana nunca se falou e não se fala
- O Globo
É terrível saber que enquanto faço minha caminhada diária pelo calçadão de Ipanema, seis pessoas são assassinadas no país. E que, ao terminar de escrever esta coluna, três ou quatro brasileiros tiveram o mesmo fim. Em frios dados estatísticos, a média é de um homicídio a cada dez minutos. Só em 2013, foram quase 53 mil assassinatos, sem falar em 50 mil estupros registrados. A cultura da violência e da morte está em toda parte. Nossos policiais matam mais em cinco anos do que os americanos em trinta. Os agentes da lei executam seis pessoas por dia. Falamos com espanto de regiões do mundo em conflito armado, mas esquecemos que muitas vezes nossa realidade se equipara ou supera as mais distantes. Matamos muito mais no dia a dia do que, por exemplo, os choques mortais entre israelenses e palestinos. Até a guerra do Vietnam, que durou cerca de duas décadas, causou um número de mortos 25% inferior ao que o Brasil produziu ao longo dos últimos 20 anos.
Para especialistas, o número de mortes violentas já caracteriza uma crise endêmica e, por isso, talvez seja a questão mais preocupante do país, mesmo considerando que a nossa democracia enfrenta outros problemas como pobreza, desigualdade, educação. Ela devia nos motivar imediatamente, porque na área de segurança os avanços são pouco consistentes, quando existem. O mais estranho é que, apesar da importância, o tema não sensibilizou os candidatos à Presidência, frequentando muito pouco suas reflexões. Nos debates, eles se mostravam mais preocupados com a economia, como se a violência não tivesse também, além das perdas de vidas, prejuízos sociais e econômicos. Um estudo mostra que hoje o custo com seus efeitos já chega a 5,4% do nosso PIB, ou R$ 285 bilhões.
Nos anos 60, a luta pela reforma agrária contra a miséria, a violência e a seca mobilizou o país (e até ajudou a derrubar o presidente João Goulart e a implantar o golpe militar). Acreditava-se que essas mazelas só existiam lá em cima, eram flagelos do sertão nordestino, enquanto um ovo de serpente se chocava no que o humorista Henfil chamava ironicamente de “Sul maravilha”. Hoje, o Nordeste é também aqui — até seca o Sudeste tem. Mas de reforma urbana nunca se falou e não se fala. E nem temos para imortalizar o drama das nossas metrópoles em crise o consolo literário de obras-primas como o poema “Morte e vida severina”, de João Cabral de Mello Neto, e o romance “Vidas secas”, de Graciliano Ramos. Os dois ainda renderam subprodutos à altura dos originais que serviram de inspiração: a música de Chico Buarque e o filme de Nelson Pereira dos Santos.
Zuenir Ventura é jornalista
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