quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Fernando Abrucio* - O reino dos caolhos

Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

O sectarismo tem prevalecido no Brasil, com resultados nefastos para a grande maioria da população

As democracias contemporâneas enfrentam uma situação paradoxal. De um lado, para garantir o bem-estar da sociedade, elas precisam lidar com vários direitos legítimos e tentar compatibilizá-los. É uma tarefa muito difícil, sem um fim ou uma conciliação completa, mas que é inescapável, se se quer construir uma sociedade justa e equilibrada. Só que, por outro lado, há cada vez mais cidadãos e atores políticos que procuram um caminho único para resolver os dilemas coletivos. Centra-se o foco apenas num aspecto em detrimentos dos demais. Assim, em vez de se basear em múltiplos olhares, esse modelo mental opta pelo modo caolho de se fazer política.

O modo caolho constrói diagnósticos e prognósticos unilaterais, apostando que um aspecto é mais importante e determina os demais. É um jogo da economia versus a política, ou dos políticos contra os tecnocratas, da vitória do mercado sobre o Estado, ou de um governo que prescinde da lógica mercadológica. A essa lista, o bolsonarismo incluiu mais uma dicotomia estéril: a dos direitos em contraposição aos deveres. Neste caso, num país tão desigual como o nosso, temo que apenas mais “deveres” aos que têm menos vai significar mais “direitos” aos que têm mais.

A complexidade das sociedades atuais deveria afastar políticos e gestores governamentais de soluções de tipo caolho. Embora não haja uma causa única para os levantes e crises que têm assolado vários países, pode-se perceber que a população quer desfrutar de múltiplos objetivos. Ela deseja estabilidade econômica, melhor saúde e educação, uma velhice digna, mais segurança, mobilidade urbana, redução de burocracias que atrapalham a vida pessoal ou dos negócios, proteção ao meio ambiente etc.

Responder a tantas demandas, não cansarei de repetir aqui, não é simples; contudo, se políticos e gestores públicos procurarem ver o mundo por mais de uma lente e não forem caolhos, pelo menos haverá maior capacidade de evitar ou reduzir os efeitos de crises sociais. Os governos fracassam quando concentram sua visão em somente um aspecto ou lógica de organizar a vida social

O Brasil apresenta exemplos recentes do modo caolho de se pensar a política. As três PECs enviadas recentemente pelo ministro Paulo Guedes está recheada de excessos de economicismos. Pegue-se o caso da proposta de colocar no texto constitucional um adendo à definição dos direitos sociais dos brasileiros. Junto com os direitos à saúde, educação, alimentação, moradia, transporte, entre os principais, quer se acrescentar que tais temas devam se sujeitar “ao direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.

Num país com várias histórias de descalabro fiscal, ter um modelo de finanças públicas sadio é sempre um avanço. Para isso existem reformas como a da Previdência, a tributária, a administrativa e tudo que possa, ao mesmo tempo, garantir as bases fiscais do Estado e o fornecimento de bons serviços públicos. Todavia, começa-se a se desconfiar dessa sugestão de reforma constitucional quando se vê que, ao lado dela, propõe-se juntar os percentuais de gastos obrigatórios de saúde e educação num mesmo montante.

No fundo, está se tentando inverter a lógica proposta pela Constituição de 1988, com um nítido desequilíbrio em favor dos meios contra os fins. Claro que o Brasil precisa melhorar a eficiência e a efetividade das políticas de saúde e educação, mas, para tanto, é preciso que elas sejam prioridades efetivas, porque as próximas gerações, como as anteriores dos extratos mais pobres, dependem de oportunidades criadas pelos governos para poderem ter alguma chance no mercado.

O temor aqui é que, em nome da crítica aos erros dos últimos 30 anos (e eles ocorreram), voltemos ao mundo pré-redemocratização, quando praticamente não havia atenção primária à saúde e mais de um terço das crianças de 7 a 14 anos estavam fora da escola.

A forma caolha da equipe econômica enxergar o Brasil começa quando Paulo Guedes diz que vai acabar com a modelo social democrata para colocar um paradigma completamente oposto, de perfil liberal, no lugar. O Estado brasileiro tem problemas, precisa ser reformado, mas houve muitos avanços no país. Quando se quer afirmar um liberalismo puro como única saída, o país pode perder as conquistas e aprendizados em troca por algo incerto, o qual, na melhor das hipóteses, poderá resolver alguns erros, mas que, ao jogar a criança fora junto com a água do banho, poderá levar a retrocessos sociais.

Ter um olhar múltiplo é compatibilizar melhor esses objetivos fiscais e sociais, e evidentemente o pacotão Guedes, mesmo propondo algumas coisas corretas, está desbalanceado. Afinal, se é para garantir direitos intergeracionais, expressão que dá um tom mais nobre ao pensamento econômico, porque não colocar numa reforma tão ampla do Estado que qualquer nova política pública econômica ou de infraestrutura deve garantir o direito intergeracional de meus netos poderem ter um meio ambiente protegido e a cultura ancestral dos povos indígenas resguardada?

Pode parecer provocação diversionista essa questão, mas quando o ministro Guedes diz que vai modernizar nosso país, deveria contar ao seu chefe maior que a economia brasileira vai fracassar no futuro se não se ancorar também em preocupações ambientais e de direitos humanos. Isso é o que os principais centros econômicos de pesquisa do mundo estão dizendo. Se não tivermos direitos intergeracionais mais amplos, o modelo bolsonarista de reforma do Estado é atrasado no tempo.

Esse economicismo fora de época aparece ainda na proposta de redução dos municípios com até cinco mil habitantes e arrecadação própria menor que 10% da receita total. Quase um quarto das cidades brasileiras estão nesta situação. É bem verdade que houve um crescimento enorme do contingente de governos municipais pós-1988, fenômeno que diminuiu de intensidade após a aprovação da Emenda Constitucional nº 15, de 1996. Só que o governo só olha a dimensão financeira do problema, que é importante obviamente, sem analisar outras duas esferas essenciais: o efeito na produção de cidadania e na qualidade da prestação de serviços públicos.

Juntar mais de mil municípios com seus vizinhos poderá significar que em muitos deles haverá a redução da possibilidade de participação política dos seus cidadãos. Seria muito mais interessante limitar o pagamento de vereadores em micromunicípios do que extingui-los, pois junto com a morte dessas cidades decretada por Bolsonaro vai para o túmulo o que se conseguiu, mesmo que seja pouco, de democracia em tais localidades historicamente marcadas pelo mandonismo local.

Se o objetivo é melhorar a qualidade dos políticas locais e, ao mesmo tempo, aumentar a eficiência, a solução já existe, sem contraindicações políticas ou administrativas: os governos federal e estaduais deveriam incentivar a cooperação intermunicipal em larga escala, disseminando as experiências bem-sucedidas de consórcios de saúde e de desenvolvimento econômico, bem como os arranjos de desenvolvimento da educação. Isso não precisa de reforma constitucional e junta o útil (o aspecto financeiro) ao agradável e essencial (a prestação de bons serviços públicos). Para tanto, basta deixar de lado o modo caolho do economicismo.

O governo Bolsonaro erra ao traduzir federalismo como descentralização, quando ele é mais do que isso, pois sua essência, sobretudo em países desiguais, está nas relações intergovernamentais. Neste sentido, o maior problema dos governos locais está em sua baixa capacidade estatal de produzir políticas públicas. Acabei de ajudar a organizar, pela Editora da FGV, um livro sobre esse tema nos países ibero-americanos e, a partir dos dados empíricos, posso dizer que sem melhorar as capacidades estatais subnacionais brasileiras, poderemos ter, com a reforma Guedes, municípios saneados com serviços públicos precários e sem efetividade. Aqui, a cooperação com os governos federal e estaduais, assim como dimensões regionais do federalismo, são peças-chave para garantir boas prefeituras e a cidadania no Brasil.

A dificuldade de se abandonar o modo caolho tem como base a busca de identidade grupal e partidária como algo mais importante do que a construção de consensos. Isso gera algo mais do que polarização.

Esse comportamento resulta em um ambiente político nocivo e políticas públicas piores. É bom lembrar que se Fernando Henrique e Lula, durante 16 anos, tiveram mais sucesso do que seus sucessores, uma das principais razões disso está no fato de que procuraram construir coalizões de ideias e interesses maiores do que seu grupo original. De lá para cá, o sectarismo tem vencido, com resultados nefastos.

É preciso dizer que o país só se reconstruirá se superar o modo caolho de se fazer política, adotando um modelo mais incrementalista, plural e negociador de se pensar o país. Bolsonaro, Lula, Dória, Ciro, Huck, quem quer que seja nosso líder maior, só conseguirá governar melhor se conversar com os demais atores e construir uma governança com múltiplos olhares.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

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