- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
No mundo comunitário de Lula, as pessoas têm face e nome. Nenhum outro político brasileiro logra essa façanha. Bolsonaro conhece o Brasil oficial e superficial, do Facebook e do Twitter
A interrupção do cumprimento da pena do ex-presidente Luiz Inácio por decisão de juiz do Paraná, em decorrência da mudança da respectiva jurisprudência pelo STF, muda muita coisa no cenário político brasileiro. O Lula que saiu da cadeia não deveria ser o mesmo Lula que nela entrara em abril de 2018. Muita coisa mudou de lá para cá. A questão é saber o que mudou no processo político que também o tenha mudado.
Seu futuro e do PT e das próprias esquerdas dependem muito da compreensão do assunto que desenvolveram nesse período. Se continuarem com as mesmas polarizações ideológicas e programáticas, não irão a lugar nenhum.
Na cadeia, ele permaneceu como protagonista da política brasileira enquanto fantasma que assombra Bolsonaro e quantos chegaram ao poder no Executivo e no Legislativo em consequência de sua queda e a do petismo. É, também, o fantasma do Judiciário.
Lula do lado de fora da prisão continua preso à trama política da qual a prisão faz parte, que dele não depende, mas que dele exige e a ele impõe um diferente discurso e uma diferente atuação política. De certo modo, ele coloca nessa prisão o próprio Bolsonaro, que não terá como não levar em conta o rumo do imaginário político brasileiro no comportamento do povo. A cadeia de Lula é agora a mediação que dá sentido à política no Brasil. Nela, era um condenado a mais, fora dela é vítima que, aqui, encarna o povo.
Em suas primeiras horas de liberdade, Lula dá indicações contraditórias de como aproveitará, politicamente, a circunstância que agora o define. Se Lula e as esquerdas não conseguirem superar o bipolarismo do confronto sem projeto alternativo, ele se tornará um Bolsonaro de esquerda, do mesmo modo que Bolsonaro, desde a campanha eleitoral, tenta propor-se como um Lula de direita.
O rito dos petistas à porta da Polícia Federal, em Curitiba, na hora da saída de Lula da prisão, é boa indicação do que Luiz Inácio é e pode e Jair Messias não é nem pode. Bolsonaro não tem a destreza do verbo e a clareza do discurso que Lula tem.
Lula é bilíngue. Fala, compreende e se faz compreender tanto pelo povão da roça e da periferia das cidades, de língua brasileira impregnada de vocabulário e de sotaque nheengatu e do duplo de seus silêncios e sobressignificações. Fala e compreende, também, a língua dos brasileiros da universidade e dos brasileiros cultos e é por eles compreendido.
Sua língua é muito mais universal que a língua de Bolsonaro. Qualquer coisa que ele diga alcançará mais brasileiros. Depende, porém, do que disser. A circunstância da fala política de todos mudou desde sua prisão. Os primeiros sinais, porém, são de que Lula não decifrou os enigmas do Brasil social e politicamente mudado entre abril de 2018 e novembro de 2019.
Na porta da Polícia Federal outras características da nova situação de Lula marcam a diferença radical com a situação de Bolsonaro. Uma é a do caráter comunitário de seu mundo político. Durante 580 dias de sua prisão, como ele mesmo destacou, não houve um único dia em que não houvesse militantes de sua causa do lado de fora para gritar-lhe em uníssono “Bom dia, Lula”, “Boa tarde, Lula”, “Boa noite, Lula”.
É uma comunidade de pessoas presentes e ausentes, a favor de uma causa, que é sua.
O público de Bolsonaro é sociologicamente outro, societário, individualista, conflitivo, competitivo, movido a medo e rancor partidário. Não junta senão ocasionalmente e porque é contra a causa do outro, não é a favor da sua.
O mundo comunitário de Lula é um mundo em que as pessoas têm face e nome. Nenhum outro político brasileiro logra essa façanha. Bolsonaro conhece o Brasil oficial e superficial, do Facebook e do Twitter. Lula conhece o Brasil profundo, dos que vivem à margem do Brasil próspero dos poucos, sem deixar de conhecer esse também. Lula vem do sertão e do subúrbio. Bolsonaro vem do quartel e das limitações socializadoras próprias do que o sociólogo canadense Erving Goffman define como instituições totais.
Lula e Bolsonaro, na nova circunstância da liberdade de Lula, personificam mais vivamente do que antes a característica menos visível e mais decisiva de dois Brasis. Bolsonaro foi eleito, assumiu o poder, fez da família um condomínio político, cercou-se de ministros que apenas se empenham em concretizar um programa de oposição à esquerda, programa de uma direita que não tem programa.
A circunstância é diversa da das eleições. O povo brasileiro não elegeu o ministro Guedes, que alterou significativamente nosso destino como povo e nação. Já não sabemos quem somos. Lula e muitos de seus seguidores e admiradores sabem. Resta saber, sabem quanto e como para a ele se oporem com um projeto de nação.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociabilidade do Homem Simples" (Contexto).
Nenhum comentário:
Postar um comentário