- Folha de S. Paulo
Boliviano é o 17º presidente sul-americano a não terminar mandato desde a redemocratização
Ao renunciar, forçado pelos militares, o boliviano Evo Morales tornou-se o 17º presidente sul-americano a deixar o cargo antes do término do mandato, a contar do restabelecimento da democracia na região, no bojo do que viria a se chamar terceira onda democratizadora.
A partir de meados da década de 1980, eleições livres e competitivas tornaram-se a regra de escolha dos governantes numa parte do mundo onde, de há muito, o presidencialismo era a norma. Por essa métrica, a América do Sul deixava para trás um passado de instabilidade política combinada com períodos menos ou mais longos de autoritarismo civil ou militar. E se juntava ao crescente grupo de nações politicamente livres, nas quais Legislativo e Executivo se formavam segundo as preferências do eleitorado, sob a regência das leis.
Entretanto, não foram poucos os presidentes que, eleitos segundo bons preceitos democráticos, tiveram seu mandato encerrado antes do tempo em virtude de renúncia, impeachment ou algum tipo de artimanha golpista: a partir de 1985, foram dois no Paraguai, três na Bolívia e no Equador, dois no Peru, um na Venezuela, dois na Argentina e dois no Brasil. Não se computa aqui Hugo Chávez, que morreu quando ainda estava no governo. As exceções ficam por conta do Uruguai, do Chile e da Colômbia, onde todos os governantes eleitos cumpriram seu mandato constitucional.
Para o cientista político da Universidade de Notre Dame (EUA) Aníbal Pérez-Liñan, a receita das crises presidenciais quase sempre combina grandes manifestações de rua com presidentes sem maioria no Legislativo —ou, em suas palavras, sem escudo parlamentar. Ele observa também que se trata de uma nova forma de instabilidade política: os presidentes caem, mas o regime democrático continua em pé. E os novos governantes voltam a ser escolhidos pelos procedimentos costumeiros: eleições livres e razoavelmente limpas.
Por esse motivo, há quem acredite que estejamos diante de um processo em certa medida normal, uma espécie de flexibilização da regra do mandato com prazo fixo, típica do presidencialismo, aproximando-o, na prática, do sistema parlamentarista, no qual o governo cai quando perde a confiança —e, em geral, a maioria— do Legislativo. Uma forma de lidar com governos em crise, sem comprometer a democracia.
Não parece ser o caso. Procedimento corriqueiro no parlamentarismo, a queda do governo sob o regime presidencialista não se faz sem grande polarização política, tensão social e desgaste da confiança nas regras que permitem a todos continuar apostando no jogo democrático —e só nele.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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