- O Estado de S.Paulo
Se proliferam movimentos populistas que defendem interesses nacionais imediatistas, que solapam as liberdades
O professor Bolívar Lamounier acaba de publicar na internet interessante e compacto artigo sobre a atual crise do liberalismo: O fim dos tempos liberais?
Seu ponto de partida é o surgimento das propostas liberais como reação ao poder absolutista que prevaleceu até metade do século 18 e deu lugar à imposição de “limites à ação do estado, ao seu tamanho e ao seu poder (...) o respeito aos direitos individuais, à propriedade privada e aos contratos”.
E ele envereda pelos atuais desafios enfrentados pelo pensamento liberal em todo o mundo, especialmente pelas reações antiglobalistas, de repúdio sistemático às instituições criadas a partir dos princípios liberais, tais como desenvolvidas nos últimos dois séculos. Hoje, se proliferam movimentos populistas que defendem interesses nacionais imediatistas, que solapam as liberdades, propugnam maior intervenção do estado na economia e solapam a atual ordem global.
Os principais movimentos pela destruição das bases geopolíticas liberais são cada vez mais visíveis. A vitória eleitoral de Donald Trump e seu slogan (put America first); a campanha do Brexit (take back control); o brado da direita na França (la France pour les français); os apelos dos direitistas da Itália (prima gli italiani); e o separatismo da Catalunha (fem la Republica Catalana) são algumas manifestações de insatisfação que têm em comum a atual incapacidade dos Estados nacionais de cumprir seus compromissos com a criação de empregos, de distribuição de bem-estar e de direitos sociais às classes médias, cada vez mais ressentidas.
O artigo de Lamounier vai por aí. O que talvez pudesse ser sugerido é que as raízes da atual crise do liberalismo podem ser encontradas no seguido questionamento de conceitos ainda mais profundos, que fundamentam o pensamento liberal.
O Renascimento colocou o homem e os valores humanistas no centro de tudo. Foi um processo que culminou no iluminismo e na Revolução Francesa. A crença de que o ser humano é dotado de livre-arbítrio e, nessas condições, detém o controle da história e do Direito há muito vem sendo deslocada do lugar ocupado até recentemente.
Em meados do século 19, Karl Marx propôs que a ação humana é condicionada pelas relações de produção e pelas forças desencadeadas pela luta de classes. O biólogo inglês Charles Darwin desenvolveu sua teoria da evolução segundo a qual as espécies, entre elas a humana, são fruto de longo processo de mutações e de seleção natural, e não da livre escolha, que desembocou na sobrevivência dos mais aptos. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, descobriu que a maioria das decisões humanas é gerada por mecanismos inconscientes e não por opções racionais. O pensador espanhol Ortega y Gasset, nas Meditaciones del Quijote, fez uma descoberta de grande clareza: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. Ou seja, a circunstância é parte importante do processo que conduz o indivíduo.
Ou seja, embora a escravidão sobreviva em bolsões isolados, o DNA e demais fatores genéticos, a educação, a publicidade, a imposição da sociedade, o controle exercido pelo grande irmão e o jogo de poder – geopolítico, nacional ou até mesmo familiar – impõem restrições ao exercício do livre-arbítrio, que se pretendia determinante.
A liberdade é questão de tamanho da gaiola. Essa conclusão pode estar mais perto da verdade do que repetidas afirmações de que o homem é fruto de suas escolhas feitas em total liberdade de consciência, que dotam o indivíduo de fonte natural de autoridade, fundamentos que justificam o movimento liberal.
O que vem aí no lugar da ideologia neoliberal hoje em crise, aponta Lamounier, é questão em aberto. Mesmo se o Brexit vier a ser revertido, é mais provável que se mantenham e até se fortaleçam as condições que puseram em marcha esses movimentos populistas. Ou seja, a atual ordem geopolítica global continuará sob fortes pressões. O desafio maior das instituições liberais será o de se reequacionar diante das enormes transformações demográficas e tecnológicas que já estão aí ou ainda a caminho.
Puxando agora para nosso sofrido Brasil, está claro que o confuso governo Bolsonaro enfrenta sério conflito de definições. A política econômica está sendo conduzida por um grupo de economistas que professam declaradamente a cartilha liberal. Mas o próprio presidente, o chanceler, o ministro da Educação, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o ministro do Meio Ambiente pregam ideais moralistas e o acirramento do controle do Estado nacional sobre o que chamam de vícios do globalismo. Nesse sentido se identificam mais com as tais forças nacional-populistas do que com os ideais liberalizantes.
Quanto isso pode subsistir nesse estado caótico é o que ainda se verá.
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