EDITORIAIS
Deter crescimento das favelas tem de ser
prioridade
O Globo
Popularmente podem ser chamadas de grotões,
invasões, alagados, vilas, palafitas, comunidades ou favelas. Na definição do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são “aglomerados
subnormais”. Independentemente da palavra, o conceito é o mesmo: ocupação
irregular para fim de habitação em área urbana, em geral caracterizada por
edificações precárias e carente de serviços públicos essenciais. Historicamente
presentes nas metrópoles brasileiras, as favelas dobraram em número entre 2010
e 2019. Foram de 6.329 em 323 cidades para 13.151 em 734 municípios, de acordo
com dados do Censo de 2010 e estimativas feitas pelo IBGE. Como numa gangorra,
o emprego e a renda caíram, e as comunidades cresceram. No Estado do Rio, o
número de domicílios nessas condições subiu de 617.466 para 717.326 em nove
anos.
A vergonha que esse aumento causa na sociedade deveria ser um combustível para que o Brasil encarasse com seriedade o desafio do déficit habitacional. Não se trata de problema para o qual a humanidade desconheça solução. Uma experiência nacional, o programa Minha Casa Minha Vida, criado em 2009 no governo Lula, proporcionou, com seus erros e acertos, uma importante curva de aprendizado. É lastimável que o governo Bolsonaro tenha demonstrado interesse insuficiente pelo assunto.
O ponto de partida para enfrentar a questão
pode ser resumido numa palavra: subsídio. É pacífico que a população de baixa
renda não tem, nem terá, como melhorar a qualidade da moradia sem ajuda do
governo. Outra característica essencial para uma estratégia bem-sucedida na
habitação é a previsibilidade. “As empresas privadas do setor da construção
civil precisam se planejar com tempo para conseguir ter escala de produção e
ganhos de produtividade”, afirma Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos da
Construção do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getulio
Vargas (FGV).
Com subsídios e previsibilidade, o governo
federal precisa envolver estados e municípios. É necessário dispor de um
arsenal de intervenções — para além da construção de casas. O conjunto de ações
para mitigar a chaga inclui recuperação de áreas degradadas nas regiões
centrais das cidades, aluguel social temporário, investimentos em transporte,
saneamento, regularização fundiária e melhorias em imóveis existentes.
É verdade que, nesses últimos dois pontos,
o governo Bolsonaro até avançou. Mas insistiu na inútil troca de nome do
programa habitacional — de Minha Casa Minha Vida para Casa Verde e Amarela — e
ainda retrocedeu, reduzindo o subsídio justamente para a população mais
necessitada. Em 2015, a União concedeu R$ 20,7 bilhões ao programa. No ano
seguinte, o total caiu para R$ 8 bilhões. No primeiro ano do governo Bolsonaro,
já estava em R$ 4,6 bilhões. No ano passado, bateu em R$ 2,5 bilhões. Tudo isso
sem levar em conta a inflação.
É sempre importante enfatizar a necessidade
de cortar gastos, num governo em penúria fiscal. Mas o dinheiro para a
habitação deveria estar entre as prioridades intocáveis. Não é o caso. Basta
lembrar que a Zona Franca de Manaus recebeu inacreditáveis R$ 31 bilhões em
subsídios tributários em 2020, quase um Casa Verde e Amarela (R$ 2,1 bilhões) a
mais que no ano anterior.
É urgente apuração de mortes em estudo
fajuto com proxalutamida
O Globo
Quando a ciência e a política se confundem,
não costuma haver ganhadores. No último sábado, a Rede Latino-americana e do
Caribe de Bioética (Redbioética), da Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (Unesco), declarou que as 200 mortes de voluntários
de uma pesquisa clínica com a substância proxalutamida no Amazonas, se
confirmadas as responsabilidades, serão uma das violações aos direitos humanos
e uma das infrações éticas mais graves na história da América Latina.
Defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, a
droga experimental, desenvolvida contra o câncer de próstata, começou a ser
usada em estudo com pacientes de Covid-19 em fevereiro. Em agosto, reportagens
do GLOBO expuseram suspeitas de irregularidades.
Mesmo censurado por uma decisão judicial,
que enxergou ofensa a “honra, imagem e reputação” dos pesquisadores, o material
levou à abertura de uma investigação pela Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (Conep), responsável por elaborar as diretrizes que protegem
participantes de experimentos. Após averiguação, a Conep levou uma denúncia à
Unesco.
Em comunicado, a entidade afirma que “é
ética e legalmente repreensível, conforme consta do ofício da Conep, que os
pesquisadores ocultem e alterem indevidamente informações sobre os centros de
pesquisa, participantes, número de voluntários, critérios de inclusão,
pacientes mortos”. Também condena a continuidade do recrutamento de novos
voluntários mesmo depois de sucessivas mortes.
A Unesco considerou gravíssima a suspeita
de que o comitê científico da pesquisa tenha sido coordenado por médicos
vinculados aos patrocinadores do estudo. “É urgente que, em caso de
irregularidades comprovadas, todos os atores sejam responsabilizados, não só de
forma ética, mas também legalmente, incluindo as equipes de investigação, as
instituições e patrocinadores responsáveis.” Por fim, a Unesco pede que a
comunidade científica acompanhe a denúncia da Conep: “É urgente identificar as
causas das mortes ocorridas durante os estudos. É inaceitável que esses tipos
de eventos, se verificados, estejam acontecendo no ano de 2021”.
É óbvio que a equipe do estudo, realizado
no Amazonas sob a liderança do endocrinologista Flávio Cadegiani e patrocinado
pela rede privada de hospitais Samel, deve ter todo o direito a defesa. Mas são
a cada dia mais eloquentes as evidências de um experimento que viola os
direitos humanos dos pacientes e os princípios éticos mais básicos da prática
científica. Assim como o caso da operadora de saúde Prevent Senior, este também
exige das autoridades investigação e a punição mais rigorosa ao alcance da lei.
É inadmissível que, em meio à pandemia mais letal em mais de cem anos, passe
impune a morte de cobaias humanas usadas para favorecer interesses políticos.
Vacinados, apesar de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
Após mais de um ano e meio de sofrimento e
privações de toda sorte, grande parte dos brasileiros voltou a experimentar uma
relativa sensação de normalidade. A pandemia de covid-19 arrefeceu no País na
exata proporção em que avançou a vacinação contra o coronavírus. Na
quarta-feira passada, o Brasil atingiu a marca de 100 milhões de pessoas
totalmente imunizadas, ou seja, que completaram o esquema vacinal com duas
doses ou com dose única, caso da vacina da Janssen. Isso significa que quase a
metade da população (47,11%) está, enfim, protegida contra as formas graves de
uma doença que já causou a morte de mais de 600 mil brasileiros.
A reabertura do comércio não essencial e
das escolas, a volta das atividades culturais e a retomada do turismo, por
exemplo, só foram possíveis porque a esmagadora maioria da sociedade ignorou
olimpicamente os desvarios do presidente Jair Bolsonaro, que até hoje insiste
em vituperar contra a vacinação. No mesmo dia em que o País que deveria
governar atingiu a auspiciosa marca de imunizados, Bolsonaro declarou que
decidiu não tomar mais a vacina. Na equivocada – e perigosa – visão do presidente,
o fato de estar com “a imunização lá em cima”, segundo suas palavras,
dispensaria a necessidade de receber a vacina, o que é desmentido pelos
médicos.
Para o bem do País, o negacionismo de
Bolsonaro ressoa apenas em uma pequena parcela da população. Até o momento,
cerca de 150 milhões de brasileiros já receberam ao menos uma dose da vacina
contra a covid-19, o que representa 70,29% da população. Isso atesta o sucesso
do Programa Nacional de Imunizações (PNI), referência internacional em políticas
públicas de saúde. Por sua vez, o sucesso do PNI se deve não apenas à
capacidade de seus profissionais, mas, sobretudo, pela adesão histórica dos
brasileiros às vacinas. O discurso antivacina nunca prosperou no Brasil. “Mais
uma vez, o País mostra a força de sua cultura vacinal, mesmo em uma campanha
que não contou com esforços publicitários (do governo federal)”, disse ao Estado a
epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, em
Washington.
Se, por um lado, o número de vacinados traz
alívio e esperança para os próximos tempos, por outro, é de indignar saber que
a história da pandemia no Brasil teria sido outra não fosse a desídia de
Bolsonaro. Sem a campanha sistemática do presidente contra as vacinas, que
incluiu um criminoso atraso na compra dos imunizantes, o Brasil, graças à sua
invejável tecnologia de vacinação em massa, seguramente teria voltado bem mais
cedo à normalidade e provavelmente teria enterrado menos mortos. Os devaneios
de Bolsonaro custaram caro demais ao Brasil.
A “cultura vacinal” da população, como
disse a epidemiologista Denise Garrett, aliada à capacidade do Sistema Único de
Saúde (SUS) para imunizar os brasileiros, teria levado o País bem antes à
desejada imunidade coletiva, caso o governo Bolsonaro não tivesse investido
tanto tempo, energia e recursos para propagandear mandingas em vez de trabalhar
para trazer as vacinas para o Brasil e estimular o comportamento responsável
dos cidadãos.
O vácuo federal só não tragou o País porque
houve quem se insurgisse contra a infâmia e o negacionismo. Recorde-se que o
governo do Estado de São Paulo viabilizou a Coronavac quando não havia nenhuma
vacina disponível, inoculando esperança num país enlutado. Recorde-se também a
iniciativa de Nelson Teich, que, em sua brevíssima passagem pelo Ministério da
Saúde, firmou acordo para realização de testes clínicos da vacina da
AstraZeneca no Brasil. Também foi decisiva a resistência institucional do
Supremo Tribunal Federal e do Congresso, sobretudo do Senado, aos arroubos irresponsáveis
de Bolsonaro contra a vacina, as medidas sanitárias e o bom senso.
Por fim, o País chegou até aqui graças à
mobilização da sociedade contra os atos e as palavras de um presidente que quer
tudo, menos o bem-estar de seus governados.
Incompreensão sobre o Ministério Público
O Estado de S. Paulo
O Ministério Público é uma instituição, não um Poder. É preciso aprimorar o CNMP
A tramitação na Câmara dos Deputados da
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 5/21, que busca aprimorar o controle
externo do Ministério Público, tem sido ocasião não apenas de críticas à
proposta, mas de manifestações acintosamente antirrepublicanas. Há profunda
incompreensão tanto sobre a instituição como sobre o Estado Democrático de
Direito.
Uma vez que a PEC 5/21 busca dar maior
efetividade ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), já era de
esperar alguma reação contrária de membros da instituição. “Nós estamos nas
articulações junto aos deputados. Eu, desde ontem à tarde, não faço outra coisa
a não ser falar com os deputados, expor a nossa visão”, disse o
procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, em entrevista
ao Estado, no dia 7 de outubro.
Também não surpreende o discurso utilizado
para impedir o debate sobre eventual melhoria do controle sobre o Ministério
Público. Por mais tênue que seja, toda mudança é apresentada como ameaça à
autonomia da instituição. Tal é a falta de correspondência com os fatos que o
discurso corporativista ganha tons de histeria.
Por exemplo, a PEC 5/21 propõe leve mudança
na composição do CNMP. Em vez dos atuais 14 membros, seriam 15 membros, cabendo
ao Congresso – representação por excelência, num Estado Democrático de Direito,
da sociedade – escolher quatro membros. Atualmente, Câmara e Senado escolhem um
membro cada. A leve alteração tem sido tratada por procuradores como
manifestação cabal da captura do Conselho para fins escusos.
Diante do discurso alarmista, vale lembrar
que a Constituição atribui ao CNMP “o controle da atuação administrativa e
financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de
seus membros”. Além disso, o Conselho, na atual composição, com maioria de
membros indicada pelo próprio Ministério Público, não vem cumprindo suas
funções constitucionais.
Não há como tapar o sol com peneira. A
Emenda Constitucional (EC) 45/2004 não criou o CNMP para que tudo permanecesse
da mesma forma. No entanto, infelizmente, as práticas seguem praticamente as
mesmas. É escandalosa, por exemplo, a conivência do órgão de controle com
privilégios relativos a vencimentos e férias da categoria.
Há também forte oposição quanto à
possibilidade, prevista na PEC 5/21, de o novo CNMP “rever ou desconstituir
atos que constituam violação de dever funcional dos membros, após a devida
apuração em procedimento disciplinar”. Trata-se de ponto elementar. Depois de
apurada a ocorrência de violação do dever funcional, o ato abusivo não deve
continuar produzindo efeitos, cabendo sua revisão ou desconstituição. Alegar
que essa específica proposta atenta contra a autonomia da instituição é admitir
que se deseja uma independência funcional além dos limites legais, o que é
incompatível com o regime republicano.
Outra crítica diz respeito à mudança
relativa ao corregedor do CNMP. Pela PEC 5/21, o cargo caberia a um integrante
indicado pelo Congresso Nacional, dentre os membros do Ministério Público.
Sendo órgão de controle externo, com competências definidas, não há nenhum
problema – é, na verdade, medida perfeitamente constitucional – que o
Legislativo defina o corregedor do CNMP. A sociedade, por meio de seus
representantes eleitos, não deve ter mera posição figurativa no órgão.
O mais surpreendente, pois rigorosamente
inconstitucional, é a alegação de que a PEC 5/21 interfere no princípio da
separação dos Poderes, opondo o Legislativo ao Ministério Público. A pretensão
de tratar o órgão como um Poder ignora a estrutura e o funcionamento do Estado
Democrático de Direito, revelando grave incompreensão sobre as funções e os
limites dos procuradores. O Ministério Público é uma instituição, não um Poder.
É preciso aprimorar o CNMP. O Congresso
deve estudar a PEC 5/21 com cuidado, mas sem se tornar refém de pressões
corporativistas de setores do Ministério Público. Toda função pública deve
estar submetida a controle, e este não pode ser só no papel.
A boiada dos TRFs
O Estado de S. Paulo
Após a criação de TRF específico para MG, parlamentares querem o mesmo em seus Estados
Menos de três semanas após a aprovação, pelo
Senado, do polêmico projeto que autoriza a criação do Tribunal Regional Federal
(TRF) da 6.ª Região, com jurisdição exclusiva no Estado de Minas Gerais, as
bancadas dos Estados da Bahia, do Amazonas e do Paraná também querem o mesmo
privilégio.
A criação de um novo TRF com jurisdição
específica numa única unidade da Federação e a proposta de criação de outros
três com a mesma característica carecem de fundamentação técnica e são
desnecessárias, em matéria de volume de trabalho. Além disso, não faz sentido
aumentar as despesas de custeio do Poder Judiciário em plena pandemia. Por fim,
a iniciativa das bancadas estaduais vai na linha oposta à da política da
Justiça Federal, que é a de ter poucos tribunais de segunda instância e de
fazer com que eles tenham uma atuação interestadual. Isso ajuda na
uniformização da jurisprudência da instituição e aumenta a segurança do direito
no País. É justamente por esse motivo que a Justiça Federal mineira estava até
agora vinculada ao TRF da 1.ª Região, com sede em Brasília.
A importância da política da Justiça
Federal ganhou destaque quando a proposta de criação do TRF da 6.ª Região foi
originariamente apresentada ao Congresso, há 21 anos. Na época, a Associação
Nacional dos Procuradores Federais (ANPF) alegou que a iniciativa era
inconstitucional. O então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro
Joaquim Barbosa, não apenas endossou essa crítica, como também concedeu liminar
pedida pela ANPF, suspendendo a tramitação do projeto.
Por seu lado, o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) publicou um estudo considerando irrealistas os
valores previstos para o custeio de um novo TRF e afirmando que eles exigiriam
um aumento significativo no orçamento da Justiça Federal, num período de crise
fiscal. Já os especialistas em direito processual lembraram que, como a Emenda
Constitucional (EC) 45/04 criou medidas para encerrar os conflitos de massa
ainda na primeira instância, a carga de trabalho dos tribunais de segunda
instância tende a se reduzir com o tempo, o que torna desnecessária a criação
de mais TRFs. E entidades de juristas disseram que a criação de um novo
tribunal anula os avanços propiciados pela EC 45/04. Essa emenda promoveu a
reforma do Judiciário que, apesar de consumir 2% do PIB, cerca de quatro vezes
mais do que a média dos países da OCDE, sempre teve um desempenho
medíocre.
O que está motivando as bancadas baiana,
amazonense e paranaense no Congresso a propor a ampliação da rede de TRFs,
contudo, não são argumentos técnicos nem jurídicos. O interesse é apenas
político. Para cada novo tribunal haverá a necessidade da construção de um
majestoso “palácio da Justiça”, da contratação de um corpo de servidores
administrativos e da aquisição de uma frota de veículos para servir a cada um
dos desembargadores. Além disso, a criação de novos TRFs abre caminho para que
parlamentares interfiram politicamente na escolha dos juízes de Varas Federais
que serão promovidos a desembargador.
Por isso, as justificativas que essas
bancadas apresentam para a expansão da rede de TRFs não passam de retórica
vazia. A bancada mineira, por exemplo, afirmou que a criação do TRF da 6.ª
Região era “essencial” para Minas Gerais, pois o Estado responderia por 35% dos
processos que tramitam no TRF da 1.ª Região. Já a bancada federal amazonense
defende a criação de um TRF com sede em Manaus sob a justificativa de que, como
o Amazonas conta “com a maior floresta do planeta”, é preciso uma corte sediada
no Estado para dar conta de conflitos envolvendo questões ambientais. No caso
do Paraná, a alegação é de que a criação de um TRF sediado em Curitiba é uma
“antiga reivindicação da seccional da OAB”.
A iniciativa das bancadas federais da Bahia, do Amazonas e do Paraná, tentando seguir a trilha que foi aberta pela bancada federal mineira, o que implica gastos desnecessários, é mais uma preocupante demonstração de como políticos e magistrados estão desconectados de nossa realidade social e econômica.
Saída enganosa
Folha de S. Paulo
Projeto que muda ICMS não é uma solução
duradoura para preço dos combustíveis
O improviso que se tornou regra nas
votações da Câmara dos Deputados é preocupante. A aprovação de um projeto mal
desenhado para alterar a sistemática de cobrança do ICMS com o
objetivo de baixar o preço dos combustíveis não vai ao cerne do problema e pode
trazer dissabores futuros.
Sob forte pressão do presidente da Casa,
Arthur Lira (PP-AL), e após repetidos ataques de Jair Bolsonaro aos
governadores, o texto votado pelos deputados e remetido ao Senado muda o preço
de referência para a incidência do imposto.
Em vez da sistemática atual, na qual os
estados alteram o preço que serve de base para a cobrança a cada 15 dias, a
nova regra considera o valor médio dos combustíveis nos últimos dois anos. Os
estados continuam a fixar as alíquotas, mas poderão fazê-lo anualmente. Na
prática, o valor do tributo será fixo ao longo de um ano.
O preço-base dos combustíveis ainda vai
variar com a política de preços da Petrobras, que depende da cotação
internacional do petróleo e da taxa de câmbio.
Estima-se que a mudança possa reduzir os
preços da gasolina e do diesel na bomba em cerca de 8% e 3,7%, respectivamente,
alívio que pode ser rapidamente diluído caso as cotações internacionais do petróleo
continuem subindo, como tem sido o caso.
Nesse contexto, a Petrobras anunciou no
último dia 8 um reajuste de 7,2% nos preços da gasolina —no ano, a alta já
chega a 61%.
Os governadores agora ameaçam ir ao
Supremo Tribunal Federal contra a mudança, que feriria a
autonomia estadual, uma tese questionável. Nem mesmo a perda de arrecadação
estimada de R$ 24 bilhões anuais, cálculo que também suscita dúvidas, se mostra
um argumento irrefutável.
É fato que, como a cobrança do ICMS se dá
como percentual do preço final, a receita se eleva quando sobem os preços. Os
combustíveis mais caros têm dado enorme contribuição aos cofres estaduais.
Cumpre pensar em soluções, evidentemente —e
o projeto não as traz. Fixar o imposto pela média dos dois anos anteriores
proporciona um ganho pontual para o consumidor, mas a fórmula vai se tornar um
problema se as cotações externas caírem adiante.
O ICMS, nesse caso, ficará
proporcionalmente ainda mais alto, o que logo suscitará pressões por novas
intervenções.
O problema de fundo está na insegurança da
política econômica que desvaloriza o real e magnifica o choque externo, problema
que não será resolvido a curto prazo no disfuncional governo Bolsonaro.
Controles de preços na Petrobras já foram tentados, com resultados desastrosos
para empresa e contribuinte. Não há saída simples.
Justiça e aprendizado
Folha de S. Paulo
Condenação de militares por homicídios deve
gerar reflexão sobre ação das Forças
A utilização das Forças Armadas em
atividades de segurança pública comporta não poucos riscos. Tendo como missão
precípua a defesa nacional, e não o combate à criminalidade no contexto urbano,
os militares não dispõem do treinamento adequado para atuar em situação desse
tipo, o que abre margem para reações imprudentes e excessivas, quando não
brutais.
Foi o que se verificou no hediondo
assassinato do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de
material reciclável Luciano Macedo, fuzilados numa ação do Exército em abril de
2019 no Rio.
Segundo a acusação, foram desfechados nada
menos que 257 tiros na direção do carro em que estavam o músico, seu sogro, sua
mulher, seu filho, então com sete anos de idade, e uma amiga. Na tentativa de
socorrer a família, que seguia para um chá de bebê, o catador também terminou
alvejado.
Como ficou demonstrado no julgamento,
encerrado na quinta-feira (14), os militares procederam com flagrante
despreparo, ignoraram os protocolos de abordagem e, sem que tivessem certeza de
quem estava no automóvel, assumiram que poderiam atirar para matar.
Dos 12 agentes envolvidos na operação, 8,
que comprovadamente realizaram disparos, foram condenados pela Justiça Militar
por duplo homicídio qualificado e tentativa de homicídio (concernente ao sogro,
que sobreviveu).
Por um placar apertado de 3 votos a 2, sete
foram sentenciados a 28 anos, e o comandante da ação, a 31 anos e seis meses.
Cabe lembrar que desde 2017 crimes dolosos
cometidos por militares contra a vida de civis durante atividades operacionais
não pertencem mais à esfera da Justiça comum, fruto de uma controversa mudança
aprovada pelo Congresso e sancionada pelo então presidente Michel Temer (MDB).
Não à toa, no caso em tela, instalara-se o
receio, felizmente desfeito pelo resultado do julgamento, de que o espírito
corporativo pudesse sobrepujar o rigor e a imparcialidade esperados de um
tribunal. A apreensão não é infundada, uma vez que 4 dos 5 membros do conselho
julgador são militares da ativa e não possuem necessariamente formação em
direito.
Para além da importância e do simbolismo,
espera-se que a condenação venha a proporcionar uma reavaliação do emprego do
Exército no papel de polícia, algo que nos últimos anos só produziu resultados
fugazes e tragédias humanas.
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