Se a política fosse só o terreno da reta razão, essa reincidência espantaria, pela estupidez. Primeiro o lulo-petismo, depois o lava-jatismo, perderam o protagonismo para a serpente filo-fascista que se beneficiou daquela guerra entre santos com pés de barro. Nem a hipocrisia de direita, nem o cinismo de esquerda escaparam de efeitos não previstos da artilharia pesada disparada pelo bolsonarismo em 2018, usando munição de um arsenal montado em porões milicianos da antipolítica populista. Milícias, até então só digitais, que ocuparam um vácuo deixado pela desmoralização escandalosa, produzida pela Lava-jato, da antipolítica populista-empresarial que imperou no período anterior e que fora a fonte financiadora da farta – e, também, letal - munição oficial disparada contra adversários do governo nas eleições de 2014. Uns e outros terminaram entre os feridos, o lulo-petismo nas urnas de 2016 e 2018 e o lava-jatismo nas esgrimas palaciana, judiciária e interna ao MPF, transcorridas a partir de 2019. Tanto a política da confrontação como a da colaboração com o bolsonarismo tiveram destinos penosos. Penas análogas às cumpridas pela sociedade quase toda que, longe de ser inocente ou neutra, aceitou os termos de um duelo em que todos tinham a perder, exceto a malta ali autorizada pelas urnas a tomar de assalto o governo, desmontá-lo e, com seu bagaço, desferir torpedos contra as instituições.
A anulação de processos contra Lula e as
recentes pesquisas de intenção de voto que lhe dão posição privilegiada
juntam-se para produzir, na esquerda petista e seus anexos, duas presunções: a de
que Lula foi inocentado e a de que a eleição estará ganha, se Bolsonaro estiver
na área. A segunda presunção é animada pela rejeição a Bolsonaro e pela não
existência, até aqui, de alternativa eleitoral promissora para evitar a reprise
do confronto de 2018, que é encarada como uma revanche e assim desejada.
Já a primeira presunção parte de um erro de avaliação (que o lulo-petismo
parece compartilhar com áreas do chamado centrão), qual seja o de que o
lava-jatismo agoniza porque a Lava-Jato morreu. Na verdade, o lava-jatismo está
saindo de uma UTI e arma-se para voltar a envenenar o ambiente político, não só
contra Lula e o PT, mas contra a política de qualquer partido. Ao contrário do
lulo-petismo, o que o espectro justiceiro almeja, como sempre, não é (ou ao
menos não é prioritariamente) ganhar eleições, mas detonar soluções políticas.
Por
falar em detonação, trago um tópico. Ficou mais uma vez demonstrado, nos últimos
dias, que João Santana, ex-marqueteiro da Dilma-malvadeza Rousseff de 2014,
sente-se à vontade pondo sua perícia a serviço de Ciro Gomes, um proverbial
incontinente. A incontinência, agora mais adestrada e manejada de modo melhor, como
cálculo político, acaba de ser usada para queimar, contra a ex-cliente, pólvora
da mesma marca da que ajudou ela mesma a dinamitar Marina Silva naquela eleição.
Dilma reagiu com a obviedade que é sua marca costumeira mas a provocação fez também
Lula entrar no samba de partido alto (má vontade elitista, dirão lulistas, chamar
sua declaração de golpe baixo) interrompendo um ensaio de retorno do
samba-canção “Lulinha paz e amor” de 2002.
Está visto que a política da guerra, na
qual o moralismo é perito, é uma língua franca. Está longe de ser privilégio do
lava-jatismo ou do bolsonarismo. Sempre houve e há cada vez mais gente de
esquerda persuadida pela ideia-máxima de Carl Schmitt de que a relação amigo-inimigo
resume o sentido da política, na contramão da racionalização constitucional liberal-democrática.
A política da guerra, ideologicamente ecumênica, produz enredos folhetinescos, capazes
de estimular o colunismo político, como mostram os numerosos comentários sobre
o affaire Ciro x PT. Dentre eles menciono
duas interpretações díspares.
Lendo o colunista Bernardo de Melo Franco
temos acesso à interpretação que agrada ao PT: a de que o movimento do
"egocêntrico Ciro" (quem poderia lhe lançar a primeira pedra?) é mais
uma das suas tentativas, até aqui inúteis, de ser simpático à direita para superar
Bolsonaro e ir ao segundo turno contra Lula. Já lendo Vera Magalhães somos
apresentados à interpretação oposta à do desejo do PT: a ofensiva da dupla
Ciro/João Santana teria buscado, com êxito, tirar Lula da zona de conforto para
com isso perseguir o objetivo de tomar o seu lugar no segundo turno contra
Bolsonaro. Para o primeiro colunista foi só mais do mesmo. Para a segunda, algo
que pode funcionar, no caso, como a lei do ex. Cada leitor pode fazer sua
aposta, baseada em palpite ou em preferência.
Apostas e profecias à parte, faço um
comentário transversal: assim como a possível candidatura lava-jatista de Sergio
Moro pelo Podemos, a lavagem de roupa suja entre Ciro Gomes e o PT contribui
para recolocar o tema da corrupção no centro da peleja eleitoral, como esteve
em 2018. Melhor para o país seria deixar esse foco na penumbra, onde está de
2019 para cá, quando passamos a ter noção prática de problemas e perigos
maiores. Mas as tentações são imensas e acometem mais gente, além do impetuoso e
voluntarista Ciro Gomes. Demagogos cortejam o tema como galinha de ovos
eleitorais de ouro e, na outra ponta da torcida, imprudentes arriscam-se em
jogadas ousadas no Congresso. Dançar sobre o cadáver da Operação Lava-Jato
nesse momento pré-eleitoral, como se faz no caso da PEC que modifica a
composição do Conselho Nacional do Ministério Público, é cutucar com vara curta
a bem viva propensão faxineira, que tem expressão eleitoral, apesar da
desmoralização da república de Curitiba. Por mais plausíveis que sejam as
mudanças pretendidas, o momento não parece oportuno. Como se sabe, apóstolos do
extermínio da tradição política vendem gato por lebre e há quem compre por
valor de face.
O espectro justiceiro que ronda a pauta
eleitoral tem contado, pois, com a colaboração de quem pisa nos escombros
distraído, ajudando a reacender as esperanças de quem celebra o arruinamento
político de 2018 com simpatia e convicção. Alcoviteiros da fênix lava-jatista
há, inclusive, em vários partidos do centro democrático, fora do centrão. Se essa
infiltração prevalecer, o discurso de que a corrupção é a mãe de todos os males
do Brasil terá cumprido sua missão desagregadora. A insensatez perderá toda
medida se moradas possíveis de uma suposta terceira via se tornarem vulneráveis
a esse apelo. Poderão até veicular outras pautas, mas a precedência do tema da
corrupção tende a deixar os demais assuntos nacionais à sua sombra, sem
aprofundamento algum e entregues aos clichês. Se destituídas de orientação
programática compatível com a atual tragédia social, com a crise fiscal e
gerencial do Estado e com a falta de perspectiva econômica, essas moradas serão,
como na inesquecível canção nostálgica, barracos com portas sem trinco e tetos
de zinco furados, onde são dependurados trapos partidários descoloridos. Palcos
mal iluminados.
Vale fazer a pergunta óbvia: a quem interessa a volta da corrupção ao centro da agenda? Como resposta cabe até palpite quádruplo. Pode interessar a Ciro Gomes, a Sergio Moro, à esquerda de Lula ou a Jair Bolsonaro, sem exclusão prévia de qualquer dessas opções. Mas se a pergunta for oposta (a quem isso não interessa de modo algum?), será difícil negar que não interessa a quem quer que esteja investindo em costura política agregadora para fornecer ao eleitor, em 2022, um cardápio de candidaturas e propostas que lhe permita se comportar mais parecido com 2020 do que com 2018. Essas forças agregadoras precisarão reagir logo à mixórdia que se prepara e que fará do eleitor palhaço de perdidas ilusões. O silêncio e a inércia diante desse perigo iminente podem parecer a esse eleitor (que as espera sem enxergar), mais do que ao analista que as enxerga, um sinal de que essas forças políticas agregadoras simplesmente não existem. Convém agir, antes que o sinal vire fato.
*Cientista político e professor da UFBa
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