O Estado de S. Paulo
Cabe à imprensa estabelecer o alicerce de
fatos sobre o qual se ergue o debate de qualidade
Em vez de retórica pomposa, objetividade
inteligente. Esse é o estilo de Maria Ressa, a jornalista filipina que acaba de
ganhar o Prêmio Nobel da Paz, nas palestras que faz pelo mundo. Há dois anos,
na Califórnia, tive a oportunidade de vê-la ao vivo num evento do Google. Ressa
narrou alguns episódios em que o bom jornalismo do Rappler, site fundado e
dirigido por ela, incomodou o presidente Rodrigo Duterte, o autocrata de
plantão em seu país – é frequente que o bom jornalismo incomode autocratas.
Ressa não se colocou, no entanto, no papel
de heroína da resistência. Em vez disso, preferiu discorrer sobre três
vertentes de seu trabalho: apuração rigorosa, inovações tecnológicas e
sustentabilidade financeira. São três fundamentos inseparáveis. A tecnologia
ajuda o jornalismo a chegar a mais leitores, garantindo a independência
financeira do veículo. E a excelência do trabalho traz apoios de peso. Entre os
investidores do Rappler está Pierre Omidyar, criador do site ebay.
“Quando não há acesso aos fatos, não há confiança. E confiança é o que nos mantém unidos para resolver os problemas complexos que nosso mundo enfrenta atualmente”, disse Ressa em sua palestra na Califórnia. Tal máxima, repetida em várias entrevistas, resume com precisão o papel do bom jornalismo nas democracias. Cabe à imprensa estabelecer o alicerce de fatos sobre o qual se ergue o debate público de qualidade. Não existe democracia sem verdade factual, parafraseando o título de um ensaio escrito por Eugênio Bucci, colunista do Estadão e professor da Universidade de São Paulo.
Bucci, que é o entrevistado do minipodcast
da semana, acaba de lançar outro livro fundamental: A superindústria do
imaginário. Trata-se de obra abrangente e complexa sobre a comunicação no mundo
atual. Uma de suas linhas narrativas mostra como a imprensa, ao longo dos
séculos, tornou-se o palco preferencial do debate púbico nas democracias. Este
papel, segundo Bucci, passou a ser ameaçado quando a instância da imagem ao
vivo adquiriu primazia sobre a palavra escrita.
Tal fenômeno surgiu com a televisão,
intensificou-se com a internet e teve um impacto monumental nos regimes de
liberdade. “Em vez de trazer ideias à discussão pública, os políticos passaram
a ser ‘performers’, privilegiando a criação de personagens capazes de ganhar
cliques”, diz Eugênio. Existe remédio para isso? “Sim. Precisamos civilizar a
política. Já se veem políticos preocupados em melhorar a qualidade do debate, e
eleitores que privilegiam os candidatos com propostas concretas.”
A imprensa tem papel fundamental nesse
quadro. Além de cultivar a obsessão pela verdade factual, ela precisa, cada vez
mais, analisar e contextualizar. O tom de sua cobertura deve ser civilizado, de
maneira a elevar o debate entre as diversas correntes de opinião, à direita e à
esquerda. O Estadão estreia amanhã um novo formato impresso, que dará ênfase à
informação aprofundada – a principal demanda dos leitores em tempos de
cacofonia e “fake news”.
Como diria Maria Ressa, trata-se, acima de
tudo, de buscar a essência do trabalho jornalístico. Não há nenhum heroísmo
nisso – o que não significa que seja algo trivial. Dois dias depois de sua
palestra na Califórnia, Ressa retornou às Filipinas – e foi presa no aeroporto.
A imprensa, alicerce da democracia, é ao mesmo tempo o pesadelo dos autocratas.
Nunca foi tão atacada. Nunca foi tão necessária.
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