Folha de S. Paulo
Há alguma verdade na alcunha 'PEC da
vingança', mas corporação tenta seguir como sentinelas da lei autorizados a
agir fora da lei
“PEC
da vingança” –é assim que a corporação dos procuradores da República apelidou
a proposta de Emenda
à Constituição de reforma do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Há alguma verdade na alcunha pois, desde
a desmoralização
da Lava Jato, a elite política articula-se para limitar
investigações sobre corrupção. Sobretudo, porém, o que os procuradores
pretendem é preservar seu estatuto de intocáveis –ou seja, de sentinelas da lei
autorizados a agir fora da lei.
A Constituição de 1988 fabricou uma
anomalia ao desenhar o atual Ministério Público (MP). Inexiste, no mundo,
instituição similar com prerrogativas tão amplas e tão pouca responsabilização
como o nosso MP.
Numa ponta, os constituintes atribuíram-lhe poderes excepcionais,
encarregando-o da tutela dos “interesses difusos” dos cidadãos. A função
permite ao MP lançar acusações judiciais amparadas exclusivamente nas crenças
ideológicas dos procuradores.
Na outra, isentaram-no de controles
externos, traçando um círculo aristocrático de impunidade em torno de seus
integrantes. O CNMP,
finalmente criado em 2004, funciona apenas como simulacro de controle externo
pois o próprio MP indica metade dos conselheiros.
O ser teratológico evoluiu como estufa ideal para a militância de procuradores engajados na missão da reforma da sociedade. Dentro do MP, nasceram partidos políticos com programas e associados, como o “MP Democrático”, sob influência lulopetista, e o “MP Pró-Sociedade”, de inspiração moro-bolsonarista.
A lei, ora a lei: os procuradores-militantes
utilizam o poder de investigar e acusar para fazer política sem risco, no
conforto da estabilidade, de gordos salários e aposentadorias integrais.
A degeneração do MP ficou evidenciada na hora da desmoralização
da Lava Jato. Como esquecer o acordo de imunidade judicial absoluta
firmado pela PGR com Joesley Batista, o corruptor confesso da JBS? Ou a
tentativa da força-tarefa de Curitiba de gerir recursos devolvidos à Petrobras
por meio de um fundo privado? Ou, ainda, o conluio
ilegal entre a mesma força-tarefa e o juiz Sergio Moro na condução dos
processos contra Lula?
A corporação que alerta contra a “vingança” precisa olhar-se no espelho do
desfecho do “caso Lula”. A decisão do STF que reconheceu a parcialidade
de Moro ilumina a necessidade de reforma do MP. O mais notório
processo de corrupção na história brasileira permanecerá inconcluso para
sempre.
Os inimigos de Lula insistirão na narrativa
de que existiam provas condenatórias irrefutáveis. Os lulistas persistirão na
versão da inocência de um ex-presidente perseguido. A eternização de narrativas
polares capazes de reclamar legitimidade é uma mancha indelével de descrédito
aplicada ao sistema nacional de justiça –e, ainda, uma lápide apropriada no
túmulo de um poder irresponsável.
A PEC em tramitação não tem nem mesmo a pretensão de reformar o MP.
Circunscreve-se a uma reforma do CNMP, fazendo muito e pouco ao mesmo tempo.
Muito: a autorização que concede ao órgão
de rever atos de integrantes do MP, uma nítida “vingança” destinada a
interromper investigações de corrupção. Pouco: a ampliação de 14 para 15 no
número de assentos, com a reserva de quatro cadeiras a indicados pelo Congresso,
o que mantém a maioria de integrantes do MP, inviabilizando um efetivo controle
externo.
Moro confundiu a lei com suas ambições políticas, mas escapou de punição porque
abandonou o Judiciário para servir a Bolsonaro. Os procuradores missionários da
força-tarefa, que pintaram e bordaram, acabaram expostos pela Vaza Jato mas
nunca foram devidamente sancionados. A redoma constitucional os protege,
tornando-os imunes às leis com as quais acusam os demais cidadãos.
O Congresso, porém, não quer acabar com a classe dos intocáveis. Prefere estender o privilégio a seus próprios integrantes.
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