sábado, 16 de outubro de 2021

Ascânio Seleme - Ciro x Lula, a guerra prematura

O Globo

Todo mundo no PT sabia que seria difícil evitar um confronto com Ciro Gomes, mas também não se esperava que partissem do próprio PT as pedradas que desencadeariam a tormenta. O ideal era que o confronto ocorresse apenas na campanha, talvez nos debates, na propaganda de TV, nas entrevistas dos candidatos. Mas, não, os ataques que ajudam a desmontar a história alternativa que o partido pretendia contar sobre os seus quatro mandatos no governo do Brasil foram iniciados depois das agressões da militância petista a Ciro na manifestação do dia 2 de outubro. Era tudo o que ele precisava e queria. Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro.

A estratégia agora no PT, com o leite derramado prematuramente, é evitar danos maiores. A primeira ordem do comando, de não responder a eventuais ataques, caiu antes mesmo de ser implementada. A afirmação de que Lula contribuiu de maneira decisiva para o impeachment de Dilma, que passou anos falando mal dela e de seu governo, foi prontamente respondida por Dilma. E, mais grave, pelo próprio Lula, que mordeu a isca. Falou, de maneira inapropriada para um momento grave como este, que Ciro deve ter sequelas no cérebro em razão da Covid, mas não fez referência direta à acusação de que falava mal de Dilma. Talvez para não ser pego na mentira, vai que alguém gravou.

Os ataques de Ciro são de quem conhece muito bem Lula e o PT. Quando partem de Bolsonaro ou de seus aliados, as investidas têm muito menor eficiência do que quando disparadas por gente que já foi de dentro. Ciro foi da casa, sabe muito bem com quem está lidando, conhece concretamente os métodos petistas e percebe cada dissimulação, todas as tergiversações. Mais grave, Ciro sabe se expressar. Bolsonaro, não. E Ciro tem agora João Santana, outra fonte inesgotável de informações que podem complicar muito a candidatura petista até a eleição do longínquo outubro de 2022.

Aliás, o tempo é outro problema para o PT. Se serve para Lula viajar e negociar alianças ao centro e à direita, serve também para aos poucos ir manchando sua aura de político perseguido, desmanchando a imagem de um homem indefeso que foi fustigado, condenado e preso por um juiz politicamente comprometido e um Ministério Público corrupto e interesseiro. O manto de santo com que se vestiu Lula pode virar farrapos numa campanha tão longa.

Teoricamente, esta ainda era a hora para se pressionar com todas as forças democráticas pelo impeachment do presidente, denunciado por mais de 30 crimes de responsabilidade. Foi o PT que minou a causa ao abandoná-la. Logo o PT que pediu o impeachment de todos os presidentes não petistas desde a redemocratização. Ninguém escapou da saga petista, nem mesmo o acima de qualquer suspeita Itamar Franco. Contra todos se empenhou e mostrou seus dentes. Já com o Bolsonaro, apesar do discurso inicial, aquietou-se porque, por seus cálculos corretos, com ele no páreo fica mais fácil a eleição de Lula.

Lula foi chamado de corrupto, arrogante e egocêntrico. Dilma de incompetente. Sobre o PT, Ciro disse ver um grupo de fanfarrões e hipócritas neoliberais. Difícil dizer o que dói mais na alma petista, ser chamado de corrupto ou de neoliberal. Deixando à parte todos os conhecidos exageros retóricos de Ciro Gomes, o fato é que o PT ao longo dos anos foi se transformando de um partido socialista-marxista em um agrupamento de esquerda social democrática, o que não é ruim, absolutamente, até ser hoje de centro-esquerda, como ensinou o professor Fernando Haddad.

Falta um ano para eleição, tempo demais nos cálculos petistas para ficar vendo seu telhado ser ameaçado pela chuva de pedras que já começou a pingar. A ordem de não reagir a Ciro Gomes terá de ser atendida, sob pena de Lula perder a polarização que pretende exclusiva com Bolsonaro. De sua parte, Ciro sabe que é improvável tirar Lula do segundo turno. Seu objetivo é dividir a esquerda até onde conseguir e caminhar sobre os votos do centro para alijar Bolsonaro da disputa final. Também aí terá de ralar muito. De qualquer forma, a guerra prematura à esquerda está aberta e pode ser útil aos demais.

Comprando polêmica 1

A decisão do senador Davi Alcolumbre de não pautar a indicação de André Mendonça para a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado faz parte do jogo político. A prerrogativa do presidente de indicar nomes para o Supremo Tribunal Federal não significa que automaticamente sua indicação passará. Primeiro, tem que ser pautada pelo presidente da CCJ, depois aprovada pela Comissão e depois pelo plenário. Todas estas etapas são políticas e devem ser negociadas. Se a nomeação fosse automática, não precisava da avaliação do Senado. Alcolumbre tem razão e direito legal de sentar sobre a indicação da mesma forma que Arthur Lira senta sobre mais de cem pedidos de impeachment do presidente Bolsonaro. E, já que estamos tratando do terrivelmente evangélico Mendonça, Alcolumbre tem razão de sobra.

Comprando polêmica 2

Está bem que a pauta do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, é um horror. Seus métodos de ação são ainda mais escabrosos e obscuros. O homem inventa uma pauta de manhã e à tarde a coloca em votação. Essa prática vai acabar, junto com o fim do mandato de Bolsonaro. Mesmo assim, não dá para dizer que jogar um pouco mais de luz e mais controle sobre o Ministério Público é ruim. O que faltou foi oportunidade. E debate.

Comprando polêmica 3

A possibilidade de se criar federações de partidos pode ser útil à democracia brasileira. Reduzir o número de agremiações políticas ajuda a combater o partidarismo de aluguel. E, como força que a federação perdure quatro anos, permite ajustes, entendimentos e acordos para além das eleições. O que é muito bom.

Tolinho

O governo está soprando por aí que, pelos seus cálculos, a candidatura de André Mendonça ao STF será derrotada se chegar ao plenário do Senado. Tolinho. Fosse verdade, já teria trocado o nome para não passar vexame. Seu alvo é Alcolumbre, a quem a turma palaciana deve considerar um poço de ingenuidade.

Sem estratégia

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes provaram esta semana que, além da falta de apreço, não têm qualquer estratégia em relação à Petrobras. O presidente, reclamando que sobre ele caem todas as responsabilidades dos males do Brasil, disse que até quando a gasolina sobe a culpa é dele. E falou que isso cansa e já está até pensando em privatizar a companhia para se livrar do abacaxi. O ministro, por sua vez, propôs vender ações da Petrobras toda vez que o preço dos combustíveis subir e distribuir o dinheiro obtido entre os mais pobres. Vai ver que é isso mesmo o que ele quer. Até o fim do governo, diante das sucessivas desvalorizações do Real e dos consequentes aumentos da gasolina, Guedes privatizaria a estatal. Mas claro que não é assim que se toca assunto tão importante. Falar o que dá na telha, sem estudo, sem análise, com argumentos paupérrimos, apenas confirma o que já se sabe de ambos. São dois irresponsáveis contumazes.

Coreia bem piorada

Quantos brasileiros se inscreveriam no jogo proposto na série coreana “Round 6”? Para quem não sabe, trata-se do maior fenômeno de audiência da Netflix da temporada, onde 456 homens e mulheres desesperados, pobres e endividados, sem perspectivas, topam participar de um jogo de vida e morte para ganhar um mega prêmio em dinheiro. Na Coreia, 95% têm pelo menos o equivalente ao segundo grau completo. No Brasil, bom, por aqui, num jogo semelhante, as filas de inscrição dobrariam esquinas.

Pobre e velho

O motorista fechou o apressadinho que havia buzinado para ele, forçando que parasse o carro. Abriu então a janela e disparou: “Está com pressa? Da próxima vez passa por cima, seu velho”. “Você devia ter vergonha deste carro. Aposto que ganha 15 mil por mês, seu velho, pobre!”. O outro, incrédulo com o que ouvira, até em razão do conceito de pobreza do ofensor, respondeu: “Vai se vacinar, Bolsonaro”. Bastou para o “jovem” persegui-lo por três quadras, ameaçando bater, fechando o seu carro em manobras arriscadas e chamando-o seguidamente de velho e pobre. Mais bozo, impossível.

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