Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
É preferível adotar um caminho incremental
de mudança, que se oriente conforme as condições de implementação sejam
cumpridas
Depois de quatro anos de retrocessos em
quase todas as áreas, o terceiro governo Lula terá de reconstruir o Estado e as
políticas brasileiras em vários campos. Um deles é o da educação, completamente
abandonado pelo presidente Bolsonaro, gerando o aumento da desigualdade, a
piora do que já não estava funcionando e a paralisia de muita coisa que estava
dando certo. A reforma do ensino médio se encaixa neste contexto e sua
realização vai demorar mais tempo do que gostaria o MEC, pois será preciso
expressar melhor seus objetivos e, sobretudo, construir os meios necessários
para uma implementação adequada num país muito desigual.
Das diversas reformas que tardaram no Brasil, as da educação estão no topo do ranking. O projeto elitista e excludente esteve presente na maior parte da história da educação básica brasileira. Houve até um projeto extremamente inovador para mudar esse quadro, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932. Se o país tivesse seguido suas linhas principais, colocando todas as crianças numa escola pública forte institucionalmente e criativa pedagogicamente, teríamos uma sociedade bem diferente, provavelmente mais rica e mais igualitária.
Somente em 1988 o Brasil começou uma reforma
educacional que servia ao conjunto da população, incorporando milhões de
crianças e jovens cujos pais e avós não tinham tido acesso ou foram expulsos do
sistema escolar. A Constituição foi o pontapé inicial e depois outras mudanças
vieram, universalizando o ensino fundamental e melhorando vários indicadores
educacionais como em nenhuma outra época de nossa história. Mas os sucessos não
resolveram todos os problemas acumulados por um longo período no qual a
educação não foi prioridade.
Uma das etapas educacionais que ainda
necessitam de grande transformação é o ensino médio. É verdade que já houve
evolução aqui, uma vez que no início dos anos 1990 menos de 20% dos jovens
completavam esse ciclo, enquanto hoje o percentual chega a um pouco mais de
60%. O diagnóstico da educação brasileira, no entanto, é muito claro sobre seus
pontos mais críticos: o início e o fim da educação básica, isto é, as creches e
o ensino médio. Por esta razão, é fundamental investir e melhorar muito a
escolarização na primeira infância e fazer o mesmo esforço de qualidade nas
escolas que ensinam a juventude do país.
Diante dessa percepção, há mais de dez anos
vem se discutindo a necessidade de se reformar o ensino médio. Foi aprovada,
por medida provisória, uma legislação sobre este tema em 2017. Mas, nos últimos
quatro anos, o governo Bolsonaro, ao abandonar por completo toda a educação
pública, deixou ao deus-dará o chamado novo ensino médio. Nada foi feito pelo
MEC para criar parâmetros nacionais e ajudar os governos estaduais na implementação
desse processo.
No meio do caminho houve ainda a pandemia,
também negligenciada pelo bolsonarismo, e o resultado de tanta inação no plano
educacional e na proteção das famílias dos jovens que estudam em escolas
públicas foi terrível. Retrocesso é aqui até uma palavra fraca, pois o que
aconteceu foi um crime de Bolsonaro contra a juventude, atingindo, ao mesmo
tempo, o presente e o futuro desse grupo social.
O governo Lula encontrou, desse modo, uma
reforma do ensino médio que não teve diretrizes nacionais e coordenação
federativa, com redes estaduais em situação muito desigual em termos de
recursos e andamento da reforma. Além disso, os alunos que iniciaram esse
período reformista são os mesmos que passaram pela pandemia, com quase dois
anos de escolas fechadas, famílias fragilizadas pelo fracasso governamental em
combater a covid-19, aumento da depressão juvenil e outros problemas
emocionais, bem como um quadro de maior empobrecimento da população. Cenário
pior para começar uma grande mudança não poderia existir. Entretanto, a reforma
do ensino médio é essencial e precisa enfrentar um dos maiores desafios da
trajetória reformista no Brasil: a dificuldade de conciliar os fins com os
meios.
A justificativa dessa reforma passa por
três pontos. Num plano mais geral, o ensino médio é uma etapa essencial na
formação da cidadania e da criação de bases educacionais para a futura
profissionalização dos jovens. Se esse ciclo não funcionar adequadamente, o
Brasil não terá uma democracia e um desenvolvimento vigorosos nas próximas
décadas.
Uma segunda motivação para a reforma, a
mais importante de todas as justificativas, deriva do diagnóstico da situação
atual do ensino médio. Cinco problemas aparecem aqui como muito críticos. Um, a
taxa de evasão estudantil ainda é bem alta. Soma-se a isso o fato de que a
maioria do alunado tem um número insuficiente de horas para absorver o
currículo, sendo que 10% estudam em escolas em período noturno. Ademais,
pesquisas mostram que o descontentamento dos jovens com o modelo atual é muito
grande, gerando enorme desmotivação. Ainda, o desempenho dos estudantes em
testes padronizados é o pior entre os três ciclos avaliados. E, por fim, o
ensino médio não está preparando a juventude para a vida adulta, seja no campo
da cidadania, seja no campo das bases para a profissionalização.
Esses cinco elementos problemáticos
derivam, em boa medida, de um modelo educacional que privilegiou o conteudismo
e um número excessivo de disciplinas obrigatórias, que apartou o ensino regular
do profissional, que não deu espaço ao protagonismo juvenil e à possibilidade
de desenvolver múltiplos talentos para além daqueles tradicionalmente
preponderantes no vestibular. Esse tipo de escola foi abandonado pela maioria
dos países com bons sistemas educacionais pelo mundo afora.
Daí que uma terceira justificativa central
à reforma do ensino médio está em dialogar e se inspirar em transformações
importantes ocorridas em diversos países. A educação para os estudantes jovens
têm sido cada vez mais flexível, múltipla em possibilidades acadêmicas e
profissionais, além de voltada para construir um projeto de vida que abarque o
desenvolvimento de conhecimentos e competências para a vida adulta. Fugir das
linhas gerais dessa tendência internacional é esperar uma solução jabuticaba
para nosso problema educacional, e esse tipo de raciocínio geralmente produz
mais desastres do que boas soluções.
Seguindo esse diagnóstico, é muito perigoso
usar o termo revogação. Os alunos não querem o antigo ensino médio e é preciso
ofertar um outro modelo à juventude se quisermos produzir um país mais
desenvolvido. Mesmo que faltem várias das condições de implementação, a ideia
de que se pode partir de um ponto zero não é só um desrespeito com algumas das
redes estaduais que começaram a dar os primeiros passos (ainda que incompletos)
para mudança do modelo. O problema maior é que acabar com a atual legislação é,
simplesmente, voltar à égide da anterior.
Alguns poderão dizer que será possível
fazer um projeto ainda melhor e aprovar no Congresso Nacional. Quem diz isso
não entende nada do contexto político atual. Com uma agenda carregada de
reformas, com a força e o custo cada vez mais alto do Centrão e com o
histrionismo paralisante da ala bolsonarista, defender a criação de algo
completamente novo no Legislativo é ingenuidade ou irresponsabilidade.
Será necessário reformar a própria reforma
sem jogar a criança com a água do banho. Para isso, usando os instrumentos
administrativos e legislativos que já estão nas mãos do MEC e das secretarias,
pode-se reformular o caminho reformista por meio de acordos em torno da criação
dos meios necessários à sua implementação. Na verdade, antes disso será preciso
tornar mais claros os objetivos, realçando o que é essencial no modelo:
flexibilidade curricular, incentivos à multiplicidade de talentos, aproximação
do ensino regular com o profissional, maior protagonismo juvenil, processo
vestibular mais adequado e algo que foi pouco frisado: uma escola de ensino
médio forte institucionalmente, capaz de realizar tal transformação.
O principal desafio da reforma do ensino
médio é criar os meios adequados para sua efetivação. São medidas como uma
normatização mais clara e sintética da possibilidade de itinerários formativos
e de junção do ensino regular com o profissional; um mapa pormenorizado da
oferta educacional no país e sua adequação ao novo currículo; a realização de
processos amplos de formação docente; o estabelecimento de mecanismos de apoio
do governo federal junto aos estados; e, sobretudo, o fortalecimento das
escolas, que devem funcionar o mais próximo possível do padrão de tempo
integral, com professores dedicados exclusivamente a elas e alunos empoderados
e motivados.
Uma reforma com tal magnitude é uma
política de Estado, e não de um único governo. Por isso, é preferível adotar um
caminho incremental de mudança, que tenha um rumo que se oriente conforme as
condições de implementação sejam paulatinamente cumpridas. Não se deve
abandonar o fim almejado para um novo ensino médio. Mas o melhor é planejar uma
trajetória negociada e efetiva de transformação, com um cronograma mais longo
do que a correria inicialmente proposta e com etapas intermediárias de
reformismo. Se num período de cinco a seis anos todo o modelo for implantado,
não teremos perdido tempo. Só que não podemos mais parar por conta de
discussões bizantinas ou por inação política.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário