sexta-feira, 28 de abril de 2023

Fernando Abrucio - Reforma do ensino médio: fins e meios

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

É preferível adotar um caminho incremental de mudança, que se oriente conforme as condições de implementação sejam cumpridas

Depois de quatro anos de retrocessos em quase todas as áreas, o terceiro governo Lula terá de reconstruir o Estado e as políticas brasileiras em vários campos. Um deles é o da educação, completamente abandonado pelo presidente Bolsonaro, gerando o aumento da desigualdade, a piora do que já não estava funcionando e a paralisia de muita coisa que estava dando certo. A reforma do ensino médio se encaixa neste contexto e sua realização vai demorar mais tempo do que gostaria o MEC, pois será preciso expressar melhor seus objetivos e, sobretudo, construir os meios necessários para uma implementação adequada num país muito desigual.

Das diversas reformas que tardaram no Brasil, as da educação estão no topo do ranking. O projeto elitista e excludente esteve presente na maior parte da história da educação básica brasileira. Houve até um projeto extremamente inovador para mudar esse quadro, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932. Se o país tivesse seguido suas linhas principais, colocando todas as crianças numa escola pública forte institucionalmente e criativa pedagogicamente, teríamos uma sociedade bem diferente, provavelmente mais rica e mais igualitária.

Somente em 1988 o Brasil começou uma reforma educacional que servia ao conjunto da população, incorporando milhões de crianças e jovens cujos pais e avós não tinham tido acesso ou foram expulsos do sistema escolar. A Constituição foi o pontapé inicial e depois outras mudanças vieram, universalizando o ensino fundamental e melhorando vários indicadores educacionais como em nenhuma outra época de nossa história. Mas os sucessos não resolveram todos os problemas acumulados por um longo período no qual a educação não foi prioridade.

Uma das etapas educacionais que ainda necessitam de grande transformação é o ensino médio. É verdade que já houve evolução aqui, uma vez que no início dos anos 1990 menos de 20% dos jovens completavam esse ciclo, enquanto hoje o percentual chega a um pouco mais de 60%. O diagnóstico da educação brasileira, no entanto, é muito claro sobre seus pontos mais críticos: o início e o fim da educação básica, isto é, as creches e o ensino médio. Por esta razão, é fundamental investir e melhorar muito a escolarização na primeira infância e fazer o mesmo esforço de qualidade nas escolas que ensinam a juventude do país.

Diante dessa percepção, há mais de dez anos vem se discutindo a necessidade de se reformar o ensino médio. Foi aprovada, por medida provisória, uma legislação sobre este tema em 2017. Mas, nos últimos quatro anos, o governo Bolsonaro, ao abandonar por completo toda a educação pública, deixou ao deus-dará o chamado novo ensino médio. Nada foi feito pelo MEC para criar parâmetros nacionais e ajudar os governos estaduais na implementação desse processo.

No meio do caminho houve ainda a pandemia, também negligenciada pelo bolsonarismo, e o resultado de tanta inação no plano educacional e na proteção das famílias dos jovens que estudam em escolas públicas foi terrível. Retrocesso é aqui até uma palavra fraca, pois o que aconteceu foi um crime de Bolsonaro contra a juventude, atingindo, ao mesmo tempo, o presente e o futuro desse grupo social.

O governo Lula encontrou, desse modo, uma reforma do ensino médio que não teve diretrizes nacionais e coordenação federativa, com redes estaduais em situação muito desigual em termos de recursos e andamento da reforma. Além disso, os alunos que iniciaram esse período reformista são os mesmos que passaram pela pandemia, com quase dois anos de escolas fechadas, famílias fragilizadas pelo fracasso governamental em combater a covid-19, aumento da depressão juvenil e outros problemas emocionais, bem como um quadro de maior empobrecimento da população. Cenário pior para começar uma grande mudança não poderia existir. Entretanto, a reforma do ensino médio é essencial e precisa enfrentar um dos maiores desafios da trajetória reformista no Brasil: a dificuldade de conciliar os fins com os meios.

A justificativa dessa reforma passa por três pontos. Num plano mais geral, o ensino médio é uma etapa essencial na formação da cidadania e da criação de bases educacionais para a futura profissionalização dos jovens. Se esse ciclo não funcionar adequadamente, o Brasil não terá uma democracia e um desenvolvimento vigorosos nas próximas décadas.

Uma segunda motivação para a reforma, a mais importante de todas as justificativas, deriva do diagnóstico da situação atual do ensino médio. Cinco problemas aparecem aqui como muito críticos. Um, a taxa de evasão estudantil ainda é bem alta. Soma-se a isso o fato de que a maioria do alunado tem um número insuficiente de horas para absorver o currículo, sendo que 10% estudam em escolas em período noturno. Ademais, pesquisas mostram que o descontentamento dos jovens com o modelo atual é muito grande, gerando enorme desmotivação. Ainda, o desempenho dos estudantes em testes padronizados é o pior entre os três ciclos avaliados. E, por fim, o ensino médio não está preparando a juventude para a vida adulta, seja no campo da cidadania, seja no campo das bases para a profissionalização.

Esses cinco elementos problemáticos derivam, em boa medida, de um modelo educacional que privilegiou o conteudismo e um número excessivo de disciplinas obrigatórias, que apartou o ensino regular do profissional, que não deu espaço ao protagonismo juvenil e à possibilidade de desenvolver múltiplos talentos para além daqueles tradicionalmente preponderantes no vestibular. Esse tipo de escola foi abandonado pela maioria dos países com bons sistemas educacionais pelo mundo afora.

Daí que uma terceira justificativa central à reforma do ensino médio está em dialogar e se inspirar em transformações importantes ocorridas em diversos países. A educação para os estudantes jovens têm sido cada vez mais flexível, múltipla em possibilidades acadêmicas e profissionais, além de voltada para construir um projeto de vida que abarque o desenvolvimento de conhecimentos e competências para a vida adulta. Fugir das linhas gerais dessa tendência internacional é esperar uma solução jabuticaba para nosso problema educacional, e esse tipo de raciocínio geralmente produz mais desastres do que boas soluções.

Seguindo esse diagnóstico, é muito perigoso usar o termo revogação. Os alunos não querem o antigo ensino médio e é preciso ofertar um outro modelo à juventude se quisermos produzir um país mais desenvolvido. Mesmo que faltem várias das condições de implementação, a ideia de que se pode partir de um ponto zero não é só um desrespeito com algumas das redes estaduais que começaram a dar os primeiros passos (ainda que incompletos) para mudança do modelo. O problema maior é que acabar com a atual legislação é, simplesmente, voltar à égide da anterior.

Alguns poderão dizer que será possível fazer um projeto ainda melhor e aprovar no Congresso Nacional. Quem diz isso não entende nada do contexto político atual. Com uma agenda carregada de reformas, com a força e o custo cada vez mais alto do Centrão e com o histrionismo paralisante da ala bolsonarista, defender a criação de algo completamente novo no Legislativo é ingenuidade ou irresponsabilidade.

Será necessário reformar a própria reforma sem jogar a criança com a água do banho. Para isso, usando os instrumentos administrativos e legislativos que já estão nas mãos do MEC e das secretarias, pode-se reformular o caminho reformista por meio de acordos em torno da criação dos meios necessários à sua implementação. Na verdade, antes disso será preciso tornar mais claros os objetivos, realçando o que é essencial no modelo: flexibilidade curricular, incentivos à multiplicidade de talentos, aproximação do ensino regular com o profissional, maior protagonismo juvenil, processo vestibular mais adequado e algo que foi pouco frisado: uma escola de ensino médio forte institucionalmente, capaz de realizar tal transformação.

O principal desafio da reforma do ensino médio é criar os meios adequados para sua efetivação. São medidas como uma normatização mais clara e sintética da possibilidade de itinerários formativos e de junção do ensino regular com o profissional; um mapa pormenorizado da oferta educacional no país e sua adequação ao novo currículo; a realização de processos amplos de formação docente; o estabelecimento de mecanismos de apoio do governo federal junto aos estados; e, sobretudo, o fortalecimento das escolas, que devem funcionar o mais próximo possível do padrão de tempo integral, com professores dedicados exclusivamente a elas e alunos empoderados e motivados.

Uma reforma com tal magnitude é uma política de Estado, e não de um único governo. Por isso, é preferível adotar um caminho incremental de mudança, que tenha um rumo que se oriente conforme as condições de implementação sejam paulatinamente cumpridas. Não se deve abandonar o fim almejado para um novo ensino médio. Mas o melhor é planejar uma trajetória negociada e efetiva de transformação, com um cronograma mais longo do que a correria inicialmente proposta e com etapas intermediárias de reformismo. Se num período de cinco a seis anos todo o modelo for implantado, não teremos perdido tempo. Só que não podemos mais parar por conta de discussões bizantinas ou por inação política.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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