O Globo
Nunca, na História das democracias, tão
pouca gente não eleita teve uma quantidade tão absurda de poder sobre tantos
O debate sobre o PL das Fake News está
completamente torto. E de muitas formas. A primeira é que deveríamos chamá-lo
como o resto do mundo chama: regulação das plataformas digitais. Explica melhor
a intenção. A segunda é que o texto será votado na semana que vem, e o relator,
deputado Orlando Silva (PCdoB-SP),
só o protocolou ontem. Não pode. Não numa democracia. Não bastasse, o debate
está torto principalmente porque foi contaminado pela má-fé.
Vejamos só três acontecimentos das últimas
duas semanas. Num momento de pânico nacional, em que pais e professores temiam
rumores de um ataque em série nas escolas brasileiras, advogados do Twitter se
recusaram a retirar do ar contas que incentivavam a violência.
Enquanto isso, o Telegram se recusou a obedecer a uma ordem judicial. Terminou com a plataforma suspensa em todo o território nacional. É muita a prepotência de uma empresa que se põe acima da Justiça.
O deputado lavajatista Deltan
Dallagnol (PODE-PR) achou por bem espalhar pelas redes que a
regulação proibirá a publicação de versículos bíblicos no ambiente digital.
Como se um Congresso conservador como o atual estivesse disposto a censurar a
Bíblia. Como se não fosse, aliás, inconstitucional.
Os três acontecimentos mostram aspectos
diferentes dos problemas no debate. No mundo das empresas digitais, é muito
comum haver gente como Elon Musk,
CEO do Twitter, e Pavel Durov, CEO do Telegram. Eles se dizem libertários, têm
um discurso pesadamente anti-Estado. Há boas doses de cinismo, no caso de Musk.
Suas companhias mais importantes dependem do Estado. A Tesla precisou
de subsídios a carros elétricos para se tornar economicamente viável, e a
SpaceX sobrevive de contratos com o governo americano.
Mas ambos têm uma certa prepotência, tomam
decisões de forma isolada. Seria injusto comparar Mark
Zuckerberg, da Meta, com os
dois. Perante eles, Zuck é mais cuidadoso. Ainda assim, a governança da holding
põe todas as decisões em suas mãos. Ele faz o que quiser, dá a última palavra
em tudo, e o Conselho não pode tirar seu poder. Quando precisam lidar apenas
com seus acionistas, problema deles. Mas, nessas plataformas onde acontece o
debate público, suas decisões isoladas atingem toda a sociedade. Então o
problema é nosso. Eles não foram eleitos. Nunca, na História das democracias,
tão pouca gente não eleita teve uma quantidade tão absurda de poder sobre
tantos. Sobre todas as democracias. No caso de Musk e Zuck, eles literalmente
têm poder de decisão sobre o que vai ser lido e o que não vai. Sobre quais
ideias circularão e quais não.
O desprezo do Twitter pela violência nas
escolas brasileiras e o desprezo do Telegram pelas decisões da Justiça do país
mostram que não tem como dar certo.
Assim como o desprezo do deputado Dallagnol
pela verdade mostra que, entre nossos problemas graves, está o fato de um
conjunto de parlamentares ter abraçado a mentira como método de fazer política.
A mentira descarada. Dallagnol sabe que a Constituição proíbe que se mexa com a
liberdade religiosa. Sabe que não é possível, no Brasil, existir uma lei que
restrinja a liberdade de citar a Bíblia. Ele era procurador da República. Não
tem nenhuma desculpa para desconhecer o texto. Sabe, portanto, que, ao
distribuir informação falsa sobre a regulação das redes, faz terrorismo.
Ainda assim, o texto que a Câmara deverá
aprovar inclui liberdade incondicional para que parlamentares sigam mentindo,
aterrorizando, manipulando, sem temer consequências. Pelo tamanho de suas
audiências nas redes, alguns políticos estão entre as principais fontes de
desinformação.
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