sexta-feira, 28 de abril de 2023

Pedro Doria - Debate torto sobre regulação das redes

O Globo

Nunca, na História das democracias, tão pouca gente não eleita teve uma quantidade tão absurda de poder sobre tantos

O debate sobre o PL das Fake News está completamente torto. E de muitas formas. A primeira é que deveríamos chamá-lo como o resto do mundo chama: regulação das plataformas digitais. Explica melhor a intenção. A segunda é que o texto será votado na semana que vem, e o relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), só o protocolou ontem. Não pode. Não numa democracia. Não bastasse, o debate está torto principalmente porque foi contaminado pela má-fé.

Vejamos só três acontecimentos das últimas duas semanas. Num momento de pânico nacional, em que pais e professores temiam rumores de um ataque em série nas escolas brasileiras, advogados do Twitter se recusaram a retirar do ar contas que incentivavam a violência.

Enquanto isso, o Telegram se recusou a obedecer a uma ordem judicial. Terminou com a plataforma suspensa em todo o território nacional. É muita a prepotência de uma empresa que se põe acima da Justiça.

O deputado lavajatista Deltan Dallagnol (PODE-PR) achou por bem espalhar pelas redes que a regulação proibirá a publicação de versículos bíblicos no ambiente digital. Como se um Congresso conservador como o atual estivesse disposto a censurar a Bíblia. Como se não fosse, aliás, inconstitucional.

Os três acontecimentos mostram aspectos diferentes dos problemas no debate. No mundo das empresas digitais, é muito comum haver gente como Elon Musk, CEO do Twitter, e Pavel Durov, CEO do Telegram. Eles se dizem libertários, têm um discurso pesadamente anti-Estado. Há boas doses de cinismo, no caso de Musk. Suas companhias mais importantes dependem do Estado. A Tesla precisou de subsídios a carros elétricos para se tornar economicamente viável, e a SpaceX sobrevive de contratos com o governo americano.

Mas ambos têm uma certa prepotência, tomam decisões de forma isolada. Seria injusto comparar Mark Zuckerberg, da Meta, com os dois. Perante eles, Zuck é mais cuidadoso. Ainda assim, a governança da holding põe todas as decisões em suas mãos. Ele faz o que quiser, dá a última palavra em tudo, e o Conselho não pode tirar seu poder. Quando precisam lidar apenas com seus acionistas, problema deles. Mas, nessas plataformas onde acontece o debate público, suas decisões isoladas atingem toda a sociedade. Então o problema é nosso. Eles não foram eleitos. Nunca, na História das democracias, tão pouca gente não eleita teve uma quantidade tão absurda de poder sobre tantos. Sobre todas as democracias. No caso de Musk e Zuck, eles literalmente têm poder de decisão sobre o que vai ser lido e o que não vai. Sobre quais ideias circularão e quais não.

O desprezo do Twitter pela violência nas escolas brasileiras e o desprezo do Telegram pelas decisões da Justiça do país mostram que não tem como dar certo.

Assim como o desprezo do deputado Dallagnol pela verdade mostra que, entre nossos problemas graves, está o fato de um conjunto de parlamentares ter abraçado a mentira como método de fazer política. A mentira descarada. Dallagnol sabe que a Constituição proíbe que se mexa com a liberdade religiosa. Sabe que não é possível, no Brasil, existir uma lei que restrinja a liberdade de citar a Bíblia. Ele era procurador da República. Não tem nenhuma desculpa para desconhecer o texto. Sabe, portanto, que, ao distribuir informação falsa sobre a regulação das redes, faz terrorismo.

Ainda assim, o texto que a Câmara deverá aprovar inclui liberdade incondicional para que parlamentares sigam mentindo, aterrorizando, manipulando, sem temer consequências. Pelo tamanho de suas audiências nas redes, alguns políticos estão entre as principais fontes de desinformação.

 

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