Valor Econômico
Eleição argentina de 2023 talvez repita a
do Brasil de 2018
Um candidato “outsider”, apoiado no
radicalismo de direita das redes, passa a despontar nas pesquisas. A grande
referência da esquerda está enrolada na Justiça. O centro político dividido e
enfraquecido. Uma crise econômica exaspera o eleitorado, que passa a rechaçar a
política como um todo. A eleição brasileira de 2018 teve este quadro como ponto
de partida, e é assim que a eleição argentina de 2023 começa, como um “efeito
Orloff” tardio e invertido: a Argentina é o Brasil de ontem.
No caso brasileiro, a história evoluiu para a vitória de Jair Bolsonaro. O terceiro trimestre deste ano será o da campanha argentina, já que a eleição culmina em outubro, e o vento vai ficando favorável para o plano de voo do economista Javier Milei, variante portenha do extremismo de direita. O cenário menos provável é o da permanência do kirchnerismo no poder.
Especialistas na Argentina ainda duvidam
das chances de Milei. Usam os mesmos argumentos que os céticos a Bolsonaro
usavam há cinco anos. “Milei não tem o que oferecer para fazer alianças. As
eleições nacionais acontecem junto com as locais e ele não tem rede competitiva
de aliados disputando”, diz por exemplo o cientista político Marcos Novaro,
colunista do “Clarín” e professor na Universidade de Buenos Aires (UBA). “Os
partidos políticos na Argentina ainda são importantes”, pondera Julio Burdman,
também da UBA.
O combustível que pode alavancar Milei é a
crise econômica. O dólar hoje já é cotado a quase 500 pesos, dando arrancadas
que chegam a 5% ao dia. Os portais de notícia fazem cobertura ao vivo do
mercado de câmbio. Vive-se uma sensação de que o governo interromperá o
pagamento a seus credores, internos e externos, dentro de pouco tempo, talvez
semanas, o que deve derreter a moeda ainda mais. Exportadores adiam vendas,
esperando o dólar subir mais. Importadores estocam, e o saldo comercial fica
ameaçado. O superávit de US$ 1,4 bilhão no primeiro trimestre de 2022 virou um
déficit de US$ 1,3 bilhão de janeiro a março deste ano. O derretimento do dólar
acelera a inflação. O índice oficial de preços (IPC) de março foi de 7,7% em
março. Em março do ano passado era 6,7%.
A agenda de Milei depende do desespero para
ser aceita. Para o setor público sua proposta é, em suas próprias palavras, o
“Plano Motosserra”: dolarização total, pela cotação do mercado; fim de todas as
obras públicas, fechamento de todas as estatais e de algumas autarquias, como o
próprio Banco Central, privatização da educação, em troca de “vouchers”, corte
de todos os subsídios, eliminação de todas as transferências não obrigatórias
às províncias e municípios. Não sendo possível aprovar o Motosserra no
Congresso, ele como presidente promete levar a proposta às ruas e passar o
pacote por consulta popular.
Milei pouco fala sobre pauta de costumes -
evangélicos na Argentina são 15% da população, de acordo com pesquisa de 2019,
menos do que as estimativas no Brasil, em torno de 27%. Ele também não se
atreve a defender a ditadura militar de 1976 a 1983, anátema que unifica a
sociedade argentina. Isso o diferencia de Bolsonaro, mas é preciso ver como ele
se apresenta. Ele se diz o Bolsonaro argentino. “Esse é o dado importante. Há
uma demanda de um eleitor de extrema-direita e Milei busca atender a esse
eleitorado”, observa Burdman. O perfil do eleitor de Milei é masculino, jovem,
renda mais alta.
Milei hoje está na liderança, mas para
interpretar as pesquisas na Argentina é necessário entender que o sistema
eleitoral do país vizinho, na prática, tem três turnos. O primeiro são as
“Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias” (Paso). Todos os eleitores vão
às urnas, em 13 de agosto, para votar em pré-candidatos, às vezes dois ou três
por partido. Milei é o único candidato de seu partido, o “Liberdade Avança”.
Ele obteve 23% na pesquisa mais recente, divulgada terça. Horácio Larreta,
prefeito de Buenos Aires, tem 18% e Patricia Bullrich, ex-ministra da Segurança,
11%. Os dois são do “Juntos pela Mudança”, de centro-direita, apenas um poderá
seguir adiante.
O kirchnerismo (centro-esquerda) está no
“Frente de Todos” e tem muitos possíveis candidatos. Quem pontua melhor é a
ex-presidente Cristina Kirchner, condenada em primeira instância, mas que não
está impedida de concorrer. Ela, contudo, não se apresentou como candidata. A
soma dos pretendentes governistas dá entre 26% e 27%, conforme a lista. A do
Juntos pela Mudança dá 29%. Há uma advertência a ser feita: Milei é o único
definido. “A centro-direita tem candidato demais e a centro-esquerda não tem
nomes” diz Sergio Berensztein, especialista em pesquisas eleitorais.
Se cada campo partidário se mantiver unido,
Milei em tese termina o primeiro turno, em 22 de outubro, em terceiro lugar,
com a centro-direita e a centro-esquerda indo para o segundo turno em 19 de
novembro. Se isso acontecer, a balança pende para a centro-direita. Sem o
presidente Alberto Fernández e Cristina Kirchner na disputa, não há um nome forte
no governismo.
A economia pode não esperar esse calendário
para se desfazer. Uma disparada do dólar e da inflação fulmina qualquer governo
e há dúvidas se Fernández conseguirá concluir o mandato, em dezembro. Em
circunstâncias análogas, Alfonsín abreviou sua Presidência em 1989 e Fernando
de la Rúa renunciou em 2001.
A derrocada pulveriza alianças e tende a
favorecer a antipolítica. “Parte dos kirchneristas vai para Milei. Ele já tem
crescido em cima do kirchnerismo, e não da direita tradicional”, diz Novaro.
“Se Larreta, mais moderado, prevalecer no Juntos pela Mudança, o eleitorado de
Bullrich, conservador, pode ir para Milei”, opina Burdman.
Milei na reta final, mesmo perdedor, pode
rodar outro “reload”: o da contestação do resultado. Em 15 de fevereiro, ele
fez coro com as falsidades de Bolsonaro em relação ao pleito brasileiro. “As
eleições tiveram um resultado muito obscuro. Se Lula diz que não teve fraude,
ele que demonstre, nunca demonstrou”, disse. Na ocasião já fazia 38 dias da
baderna em Brasília.
Entre as balelas criadas pelo bolsonarismo
para tumultuar o processo eleitoral estava uma com DNA argentino: uma suposta
auditoria feita por um blogueiro, Fernando Cerimedo. A autoproclamada auditoria
foi veiculada em um vídeo no YouTube, suspenso por ordem de Alexandre de
Moraes. Cerimedo, naturalmente, está apoiando Milei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário