Planalto tenta reagir para reparar danos no Ambiente
Valor Econômico
Presidente Lula prometeu vetar os trechos
da lei que atentam contra a Mata Atlântica
O governo começou a reagir aos reveses
impostos pela bancada ruralista e legendas do Centrão na MP que reorganiza os
ministérios e que pode esvaziar os dois mais simbólicos: Meio Ambiente e o dos
Povos Indígenas. A luta contra o aquecimento global é uma cruzada mundial,
ocupa posição central na reorganização produtiva e no impulso a novas
tecnologias. A Amazônia tem papel central, não só por sua função na regulação
do clima do planeta e sua incrível biodiversidade, mas também porque ela abriga
os que nela vivem desde o princípio, os povos indígenas. A tragédia da
desnutrição dos yanomamis é resultado da mesma lógica da que comanda a
destruição impiedosa das florestas. As duas pastas sob risco de enfraquecimento
têm missões literalmente vitais.
A Comissão Mista do Congresso aprovou por
esmagadora maioria - com comemoração da bancada petista no Senado - uma
reorganização que retira atribuições fundamentais da pasta de Marina Silva,
como o Cadastro Ambiental Rural, entregue ao Ministério de Gestão e da Inovação
em Serviços Públicos, cujos objetivos nunca passaram remotamente perto da nova
tarefa que colocam em suas mãos. Além disso, saem de sua guarida a política de
recursos hídricos e resíduos sólidos.
O CAR é essencial para orientar o combate ao desmatamento, identificar agressões ao (e agressores do) ambiente e mapear as necessidades de recuperação de áreas degradadas, entre outras. A batalha da bancada ruralista contra o Cadastro é antiga e a adesão ao programa nele baseado, o Programa de Recuperação Ambiental, foi adiado mais um vez por iniciativa do governo Bolsonaro, que emitiu a MP 1150 para esse fim. A Câmara dos Deputados nela incluiu dispositivos que permitem a devastação ampla e absoluta do que resta da Mata Atlântica, o Senado os retirou, mas eles foram reintroduzidos pelos deputados em votação final.
A mudança nas leis que protegem a Mata é um trabalho de especialistas em destruição e nada tem a ver com ideologia, mas com dinheiro. Dois terços da bancada petista na Câmara, demonstrando que a bandeira ecológica da legenda não é levada a sério, votaram a favor de uma legislação escandalosa.
No ano passado foram devastados 17.163 ha
da Mata Atlântica, estreitando o cerco à flora e fauna -um quarto das espécies
(2.845) estão ameaçadas de extinção, segundo o SOS Mata Atlântica. Setenta e
dois por cento dos brasileiros vivem nela ou ao seu redor e a especulação
imobiliária é fonte de pressão permanente à integridade dos 24% de florestas
originais remanescentes.
Os dispositivos incluídos pelos deputados
permitem destruir mais mata nativa e até a que está em recuperação. Um deles
chega a ponto de ditar que “a vegetação secundária em estágio médio de
regeneração poderá ser derrubada para fins de utilidade pública mesmo quando
houver alternativa técnica ou de outro local para o empreendimento”. Quando em
área municipal, é dispensada a anuência prévia de orgão ambiental para seu
corte.
As faixas de proteção aos rios urbanos
serão abolidas, pois “zonas de amortecimento e corredores ecológicos em
unidades de conservação, quando situadas em áreas urbanas definidas por lei
municipal, passam a ser dispensados”. Esse manual de aniquilação do ambiente,
se transformado em lei poderá ser replicado em outras áreas do país. A criação
de uma terra sem lei impulsiona a ação de garimpeiros, traficantes de drogas,
madeireiras clandestinas, contrabandistas e outros espécimes do submundo do
crime que invadem terras indígenas na Amazônia.
O governo lavou as mãos para a ofensiva
deslanchada por todos os lados pelo Centrão, desdenhando inexplicavelmente as
consequências políticas domésticas e externas. Pelo lado do prêmio, o país
deixa de contar, pelo com o desmatamento, com os créditos de carbono que
receberia para evitá-lo - e é muito dinheiro que está em jogo. Pelo lado da
punição, a União Europeia acabou de aprovar nova lei ambiental que pune a
importação de produtos agropecuários provenientes de zonas desmatadas e outros
países tendem a seguir o mesmo caminho. O estrago político pode ser muito
grande. As credenciais do Brasil como protagonista de primeira linha na defesa
ambiental, propagandeada pelo governo, pode se dissolver logo diante dos golpes
da realidade.
O presidente Lula prometeu vetar os trechos
da lei que atentam contra a Mata Atlântica e orientou seu núcleo político a
manobrar no Congresso para que o desenho original consubstanciado na MP, pelo
menos para os dois ministérios, seja mantido o mais intacto possível. O núcleo
político se encarregará da tarefa, mas não parece estar muito convencido do
estrago que ajudou a patrocinar.
Lula faz uma urgente operação de redução de danos necessária em si, mas também para impedir que a frustração pelos golpes sofridos pela ministra Marina Silva, um símbolo do ambientalismo brasileiro, a levem a abandonar o governo. Sua saída seria um sinal de que pouca coisa melhorou após a devastadora passagem de Bolsonaro pelo poder e de que há riscos de degradação maior.
Juízes deveriam se dar conta dos próprios
privilégios
O Globo
São oportunas manifestações dos ministros
Gilmar Mendes e Rosa Weber contra benesses absurdas
São extremamente oportunas as críticas
recentes de ministros do Supremo Tribunal Federal à exorbitância que o Estado
brasileiro gasta com o Judiciário. Se os próprios juízes da mais alta Corte
começam a sentir vergonha dos privilégios inaceitáveis que a magistratura
usufrui num país desigual como o Brasil, é sinal de que ainda existe uma chance
de algo mudar para melhor.
No julgamento do ex-presidente Fernando
Collor, o ministro Gilmar
Mendes sugeriu o fim das férias de 60 dias para juízes, uma das
vantagens mais descabidas — e mais defendidas — da categoria. Enquanto dezenas
de milhões de brasileiros (inclusive funcionários públicos) gozam um mês de
descanso, juízes desfrutam dois. A regalia permite que aumentem o próprio
salário vendendo parte dos dias, sob a alegação de sobrecarga de trabalho.
Outra manifestação contra as benesses do
Judiciário veio da ministra Rosa Weber,
presidente do STF.
Ela lamentou, no desfecho do julgamento de um juiz acusado de assédio sexual,
que a pena disciplinar máxima dos juízes seja a aposentadoria compulsória.
“Lamento que nossa legislação assegure vencimentos ou subsídios proporcionais
ao tempo de serviço”, afirmou. Essa “punição”, prevista na Lei Orgânica da
Magistratura em vigor desde 1979, é defendida com afinco pela corporação e seus
aliados em Brasília.
A última investida do lobby da toga é a
tentativa reiterada de aprovar no Congresso uma emenda à Constituição
restaurando a promoção automática a cada quinquênio que vigorava até 2006. Se
prosperar, será uma ignomínia sem igual. Juízes e procuradores já são as
categorias mais privilegiadas do funcionalismo, cujo salário médio as coloca
entre os 2% de maior renda no Brasil. “A partir dos anos 1990, as remunerações
do Judiciário assumem trajetória de aumento bem superior aos demais Poderes”,
afirma estudo do Ipea que esmiuçou as regalias em 2019.
Em 24 estados, só o vale-refeição de juízes
supera o salário mínimo. Embora seus vencimentos sejam legalmente o teto do
funcionalismo, os magistrados são os primeiros a rompê-lo. Mais de 8 mil já
receberam remuneração igual ou superior a R$ 100 mil pelo menos uma vez desde
2017. Eles são um terço dos que recebem supersalários acima do teto
constitucional. São inúmeras as exceções criadas para contornar o limite. Não
são computados, para efeito do teto, os auxílios transporte, moradia, refeição,
paletó e saúde, 13° salário, serviços extraordinários, pagamento de férias
atrasadas etc.
Por desfrutar tais privilégios, cada juiz
custou aos cofres públicos mais de R$ 60 mil mensais em 2021, segundo o último
relatório do Conselho Nacional de Justiça. O Brasil tem a Justiça mais cara do
mundo, de acordo com estudo dos pesquisadores Luciano Da Ros e Matthew Taylor.
Judiciário e Ministério Público consomem anualmente 1,8% do PIB (só o
Judiciário custou 1,2% do PIB em 2021). Isso equivale a 11 vezes o custo
espanhol, dez vezes o argentino e nove vezes o americano.
Não se põe em questão o trabalho do
Judiciário, mas seu custo estratosférico, inflado por regalias como as férias
de 60 dias ou a “punição” com aposentadoria compulsória. Por isso é mais que
bem-vinda a reação dos ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber. Que sirvam para
chamar a atenção para distorções que já deveriam ter sido corrigidas faz tempo
— e são usadas contra o Judiciário pelos inimigos da democracia.
Subsidiar empreiteiros para retomar
concessão de estradas não faz sentido
O Globo
Governo Lula repete erro da gestão Dilma ao
querer usar dinheiro do contribuinte para baixar pedágio
Obrigado a arcar com o peso de gastos
bilionários em saúde, educação, previdência e milhares de outras
despesas, o governo
federal anunciou a intenção de investir com empreiteiros na construção de
estradas. Pretende subsidiar os pedágios, despejando dinheiro
público nas empreiteiras que venham a enfrentar dificuldades em obras que
necessitem de mais investimentos. Se elas precisarem, o Tesouro aparecerá para
resolver o problema.
A ideia em Brasília para destravar
investimentos privados em infraestrutura é
garantir às construtoras que os custos mais elevados na abertura de estradas —
construção de túneis, pontes e trechos que representem um risco financeiro
maior — sejam bancados pelo Tesouro. O plano será aplicado numa carteira de
licitações de 20 rodovias, até 2026, negócios que poderão movimentar até R$ 200
bilhões em investimentos, pelos cálculos do secretário executivo do Ministério
dos Transportes, George Santoro. O BNDES, disse Santoro ao GLOBO, deverá
facilitar o financiamento dos projetos. Quanto à tarifa dos pedágios, adiantou
que será “adequada” à realidade de cada região e ao uso da estrada — turismo ou
transporte de carga.
O plano do governo, apesar de simples, está
errado. Atrair o investimento privado é fundamental para recuperar as estradas
brasileiras, a maioria em situação precária. Mas usar o dinheiro do
contribuinte para favorecer um meio de transporte baseado em combustível
fóssil, que nem todos usarão e de que nem todos se beneficiarão não é a melhor
forma de fazer isso. Além de injusto, é um erro econômico.
Pedágio baixo era ideia fixa na gestão
Dilma Rousseff. Nas licitações, era item prioritário. Quanto mais baixa fosse a
previsão de pedágio, mais chance a empreiteira tinha de ganhar a obra. Depois o
negócio se revelava inviável. Tarifas artificialmente reduzidas e movimento
aquém do previsto não pagavam a manutenção, nem permitiam o retorno do capital
investido pelos empreiteiros e sua margem de lucro. O resultado foi uma Medida
Provisória do governo Michel Temer, permitindo a devolução de concessões dentro
de regras. No ano passado, o governo enfrentava dificuldades para relicitar
seis lotes rodoviários de 4.331 quilômetros que haviam sido devolvidos.
Agora o governo petista volta a insistir em tarifas mais baixas nas novas concessões, usando desta vez o artifício do subsídio. É um contrassenso falar em gastar dinheiro com isso quando o governo já concede mais de R$ 450 bilhões em isenções e benefícios todo ano e precisará revê-los para cumprir as metas agressivas do novo arcabouço fiscal. O ideal é que os projetos de abertura de estradas apresentem custos e expectativas de receitas realistas, para que se defina a tarifa justa de pedágio. Em vez disso, o governo quer mascarar os custo real das obras, pondo os cofres públicos à disposição do empreiteiro e dos usuários das estradas. Não faz sentido.
Erro industrial
Folha de S. Paulo
Governo recicla velhas ideias e argumentos
equivocados para subsidiar empresas
Está em formação uma nova edição da aliança
entre governo e empresários para ampliar subsídios, com a justificativa de
combater a assim chamada desindustrialização —a queda na participação do setor
no PIB de 24% em 1980 para pouco mais de 10% hoje.
Em evento recente na Fiesp, o presidente do
BNDES, Aloizio Mercadante repetiu argumentos conhecidos em favor do
favorecimento oficial à atividade. Segundo sua argumentação, o país precisa de
políticas industriais para enfrentar a competitividade asiática e não ser
apenas uma fazenda exportadora de produtos primários.
Já há providências em curso, além do despropositado
programa para a volta do carro popular. Negocia-se com o
Tribunal de Contas da União (TCU) um adiamento na devolução ao Tesouro de
recursos recebidos ainda na gestão de Dilma Rousseff (PT).
Ademais, o BNDES novamente disponibilizará
dinheiro barato —R$ 20 bilhões— para inovação, empresas exportadoras e
investimentos em máquinas.
O diagnóstico e os meios utilizados
novamente para tentar reanimar a indústria são equivocados, a começar pela
comparação com países asiáticos, que deixa de levar em conta as razões de fundo
para a competitividade peculiar deles.
Por lá, o custo de capital é baixo porque a
poupança é alta, o que depende de políticas fiscais prudentes.
Há persistentes subsídios à produção, mas
eles resultam mais de mecanismos institucionais que limitam o crescimento dos
salários abaixo da produtividade do que de aportes diretos do Estado.
É assim que são gerados os saldos
exportadores. Tais condições não são todas reproduzíveis no Brasil —e, em
relação a várias delas, nem seria desejável que o fossem.
E, a longo prazo, a diferença é
principalmente um maciço esforço na educação básica para a formação de mão de
obra de qualidade. Não se trata apenas de mais dinheiro, como atestam as
medições recentes de ausência de melhoria da qualidade da educação no Brasil
nas últimas décadas.
Competitividade, portanto, depende de
políticas econômicas e sociais que lidem com todos os elementos estruturais,
não de remendos pontuais que beneficiam o lucro de alguns poucos.
Nas condições atuais do país, a reforma
tributária, com foco nos impostos incidentes sobre o consumo, seria um bom
começo, bem como a abertura econômica e o aumento da poupança pública por meio
de uma reforma do Estado.
Sem esses componentes, o mais provável é
que a nova rodada de favores não resulte em efeitos palpáveis na economia e
apenas deixe mais uma conta para o contribuinte, como sempre ocorreu.
Barbárie no Amazonas
Folha de S. Paulo
PF expõe violação escandalosa de direitos
humanos no estado, até contra crianças
Vítimas metralhadas e torturadas, inclusive
crianças e adolescentes —a barbárie
abarca fatos investigados pela Polícia Federal no Amazonas, que são
objeto de relatório concluído em abril deste ano, com indiciamento de altas
autoridades do estado. A chacina, ocorrida em agosto de 2020, vitimou
comunidades ribeirinhas e indígenas próximas ao rio Abacaxis.
A PF suspeita do envolvimento da cúpula do
governo amazonense, incluindo o coronel da Polícia Militar Louismar Bonates,
ex-secretário de Segurança Pública, e Ayrton Ferreira do Norte,
ex-comandante-geral da PM.
Seja pelo grau do envolvimento das polícias
locais, com aparente participação de quase 130 agentes militares e civis, seja
pela crueldade chocante, o episódio precisa ser investigado com rigor.
As apurações até o momento apontam para
vingança pessoal e conivência institucional. O caso teve início com a entrada
irregular de um secretário estadual em terra protegida da União para a pesca
esportiva. A partir daí, a situação escalou a ponto de a PM deflagrar uma
operação que teria envolvido atos atrozes, incluindo uma longa lista de métodos
de tortura.
Nos últimos anos, houve uma alta expressiva
de violência contra povos indígenas. Entre 2018 e 2021, aumentaram em
180% os casos de invasão e exploração ilegal de terras, segundo
relatório de 2022 do Conselho Indigenista Missionário, órgão ligado à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A histórica violência contra os povos
originários, combinada com teias de impunidade, serve de palco para o caso no
Amazonas.
A gravidade do episódio é tamanha que
faltam adjetivos para enquadrá-lo. Para além das condutas individuais dos
policiais, que precisam ser apuradas, é praticamente impossível que operação
dessa natureza não tenha sido, ao menos, acobertada pelas autoridades.
Cabe aos órgãos de proteção de testemunhas
dar apoio às vítimas, e às instituições de combate à tortura, enfraquecidas sob
Jair Bolsonaro (PL), auxiliar nas investigações para garantir, além da punição,
que episódios como esse jamais se repitam.
A médio e longo prazos, fortalecer mecanismos internos e externos de controle das polícias, como corregedoria, ouvidorias e Ministério Público, bem como proteger terras indígenas, são condições sine qua non para que cessem infrações atrozes aos direitos humanos.
O limite das terras indígenas é claro
O Estado de S. Paulo
A Constituição estabeleceu um parâmetro
para a demarcação, e a lei tem soluções para conflitos entre indígenas e
proprietários. Ao Judiciário cabe só aplicar a vontade do legislador
A Câmara aprovou um requerimento de
urgência para um projeto de lei que define o chamado “marco temporal” para
demarcação de terras indígenas. O mérito deve ser votado nesta semana, mas, a
rigor, é simbólico, porque redundante: o projeto só reafirma a determinação
constitucional, consolidada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
(STF), que restringe a demarcação às terras tradicionalmente ocupadas pelos
indígenas na data de promulgação da Constituição. Mas o símbolo se presta a
transmitir uma mensagem ao STF, que julgará no dia 7 de junho um litígio cujo
resultado pode reverter sua própria jurisprudência: o Legislativo não aceitará
passivamente que a Corte declare inconstitucional uma norma da Constituição.
Em seu artigo 231, a Carta determina que
“são reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens”. Em 2009, no âmbito do julgamento de uma disputa
sobre a Reserva Raposa Serra do Sol, o STF definiu as diretrizes a serem
seguidas nos processos de demarcação. Entre elas, a Corte acrescentou uma justa
e necessária elucidação: poderiam ser também reconhecidos como territórios
indígenas os que estavam, em 1988, em conflito ou contencioso.
Agora, o STF julgará um recurso da Funai
contra uma ação de reintegração de posse movida pelo Estado de Santa Catarina
contra a comunidade indígena Xokleng. Como o caso tem repercussão geral, a tese
firmada passaria a valer para todas as discussões a respeito das demarcações.
A rigor, sem o parâmetro temporal, o Brasil
inteiro se torna potencial área indígena. “Copacabana certamente teve índios,
em algum momento”, disse o ministro Gilmar Mendes ao refutar um parecer
contrário ao marco em um julgamento de 2014. Essa reductio ad absurdum ganha
ares de plausibilidade quando se considera a posição do relator do processo que
põe o marco na berlinda, Edson Fachin: ao invés do critério temporal, o
elemento definidor seria um “laudo antropológico” da Funai atestando a ocupação
“tradicional”.
Sob o marco temporal já estão garantidos
aos 500 mil indígenas (0,2% da população) 14% do território nacional,
principalmente no Norte e no Nordeste. As áreas reivindicadas em estudo
correspondem a mais 13,7% do território, principalmente no Centro-Oeste, Sul e
Sudeste.
São regiões onde já estão consolidados
intensa atividade agrícola e mesmo centros urbanos. Em parte dessas terras, há
disputas entre indígenas e indígenas. Mas, na esmagadora maioria, os
proprietários (muitos deles indígenas aculturados) têm títulos de propriedade
reconhecidos pelo Estado que remontam há décadas. A prevalecer a tese de
Fachin, a Funai teria poder discricionário de convertê-las em reservas e
expropriar seus proprietários.
Isso não significa que não haja pretensão
legítima dos índios a parte dessas terras. Mas não se corrige uma injustiça com
outra. Se há um conflito entre os direitos originários dos indígenas e os
outorgados aos proprietários rurais, o Estado pode solucionar o problema por
ele mesmo criado, comprando ou desapropriando as terras – mediante a
indenização dos proprietários conforme o valor de mercado, incluindo
benfeitorias e a terra nua – para transformá-las em reservas.
Se já há dificuldades em relação às terras
em disputa em 1988, imaginemse todas as outras que poderiam se criar para novas
terras mediante um “laudo antropológico” da Funai.
Não se nega que o País tem uma “dívida
histórica” para com os indígenas, mas a quitação dessa dívida passa muito mais
por prover assistência social e infraestrutura do que por terras. No que diz
respeito a elas, a solução foi dada pela Assembleia Constituinte. A lei tem
solução para conflitos já existentes à época, como a Lei 4.132/62, que define
os casos de desapropriação por interesse social. O fato é que não cabe ao STF
legislar. Uma revogação do marco temporal não só extrapolaria suas
competências, como inauguraria um drama interminável de insegurança jurídica,
perdas econômicas e violência.
A rocambolesca agonia da Lava Jato
O Estado de S. Paulo
Antes ermida da esperança nacional, a
operação ganha as manchetes hoje mais pelas confusões envolvendo seus
integrantes do que por suas eventuais virtudes, num final melancólico
O roteiro da agonia da Lava Jato é digno de
uma novela de baixo orçamento. Veja-se o que ocorre agora na 13.ª Vara Federal
de Curitiba, que durante o período áureo da operação anticorrupção foi
transformada em uma espécie de “Tribunal Oficial do Brasil” e hoje oferece ao
País um lastimável show de horrores.
Roga-se ao leitor que preste atenção, para
que não se perca pelas curvas dessa história rocambolesca. Até outro dia, a
13.ª Vara Federal estava sob a chefia do juiz Eduardo Appio. Declarado
simpatizante do presidente Lula da Silva e crítico da Lava Jato, Appio revogou
algumas decisões que Sérgio Moro tomou quando esteve à frente daquele juízo,
entre as quais uma ordem de prisão contra Rodrigo Tacla Duran, advogado acusado
de ser operador de transações financeiras ilegais da Odebrecht. Tacla Duran,
que vive fora do País há alguns anos, acusa Moro e Deltan Dallagnol de terem
exigido substancial soma em dinheiro para o livrarem da cadeia. Ou seja, teriam
praticado extorsão.
Ao que tudo indica, Appio abusou de seu
cargo como titular da 13.ª Vara Federal para fazer tábula rasa da Lava Jato,
talvez menos motivado pela correção de vícios processuais e mais pelo desejo de
retaliar Moro e Dallagnol, tidos como desafetos, principalmente o hoje senador.
Nesse contexto, o destino penal de Tacla Duran passou a ser mero instrumento de
uma rixa particular.
Em meados de abril, o desembargador Marcelo Malucelli, do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), anulou o despacho de Appio revogando a prisão de Tacla Duran e ordenou que o advogado fosse preso, tal como Moro havia feito em 2016. Malucelli era o relator dos processos da Lava Jato no TRF-4 até pedir seu afastamento por suspeição após terem vindo a público seus laços com a família Moro. O desembargador é pai do advogado João Eduardo Malucelli, sócio do escritório de advocacia de Moro e da esposa do senador, a deputada federal Rosângela Moro (União-SP), e sogro da filha mais velha do casal, Júlia Wolff Moro.
Com tintas de chanchada, o enredo dessa
história passou a flertar com o nonsense após Appio ter sido afastado da 13.ª
Vara Federal pelo TRF-4 por suspeita de, pasme o leitor, ter passado um trote
para João Eduardo Malucelli a fim de chantageá-lo e, de quebra, constranger seu
pai desembargador. Em tudo essa trama avilta os mais elementares princípios
republicanos.
Para piorar, Appio foi substituído na 13.ª Vara Federal pela juíza Gabriela Hardt, a mesma que em uma de suas sentenças no âmbito da Lava Jato se mostrou incapaz do cuidado mais comezinho que se espera de um julgador: saber quem está julgando. A magistrada, vale lembrar, tratou como sendo pessoas distintas José Aldemário Pinheiro Filho e “Léo Pinheiro”, apelido pelo qual o ex-presidente da OAS é conhecido.
A mixórdia entre o interesse público e as
motivações particulares da chamada República de Curitiba é o retrato mais bem
acabado do rebaixamento moral e institucional a que foi submetida a Lava Jato,
tanto pelos que a personificaram como purgadores do País como pelos que, a
pretexto de saneá-la, a conspurcaram ainda mais.
Tal foi o desserviço prestado por essa
turma que hoje delinquentes posam como supostas vítimas dos erros cometidos
pela força-tarefa com a maior desfaçatez e levam muitos brasileiros de boa-fé a
acreditar que eles possam estar dizendo a verdade.
A Lava Jato, hoje se sabe, padeceu de um
terrível vício de origem, o desabrido desrespeito ao princípio do devido
processo legal, que selou seu destino. Direitos fundamentais foram solapados
pela sanha punitiva e pela agenda política de muitos servidores ligados à
operação, principalmente suas duas maiores estrelas. Ao se apropriarem de uma
ação oficial do Estado como plataforma de lançamento de seus projetos
particulares, esses agentes públicos, a um só tempo, feriram de morte a Lava
Jato e decepcionaram muitos brasileiros que depositaram na operação a esperança
pelo resgate do princípio fundamental da República, a igualdade de todos
perante a lei, do fosso das grandes desilusões nacionais.
Infraestrutura à míngua
O Estado de S. Paulo
Projeção de investimento cresce, mas ainda
muito abaixo do nível ideal; iniciativa privada lidera
A iniciativa privada continua liderando os
investimentos em infraestrutura e se prevê agora um aumento em 2023 em relação
aos valores do ano passado. Pelos cálculos de especialistas, os investimentos
chegarão a quase 2% do Produto Interno Bruto (PIB). É um avanço, mas representa
apenas a metade do que deveria ser investido. Faltam uma ação mais organizada
do governo e crédito acessível.
A tentativa da União de mudar as regras
para saneamento e aumentar seu poder na recém-privatizada Eletrobras, além da
polêmica em torno das concessionárias dos aeroportos do Galeão, no Rio de
Janeiro, e de Viracopos, em São Paulo, não ajuda a dar mais confiança para que
se iniciem ou sejam retomadas obras.
Um estudo da consultoria de Cláudio Frischtak
mostra que as aplicações em infraestrutura poderão chegar a R$ 204 bilhões
neste ano, e 65% delas viriam do setor privado. O maior volume de investimentos
deve ser carreado para os setores de energia e de transportes. Como se sabe, a
transição energética no Brasil avança mais rapidamente do que em outros países,
em grande parte graças aos projetos tocados pela iniciativa privada.
Os valores projetados para os investimentos
em infraestrutura neste ano indicam um crescimento de pouco mais de 10% em comparação
com 2022. Mesmo com essa expansão, o total a ser investido continuará muito
abaixo do necessário para corrigir as deficiências no País. Considera-se que
seria preciso aplicar 4% do PIB em obras de infraestrutura para corrigir
problemas como a péssima qualidade das nossas estradas de rodagem, que ainda
são essenciais para a movimentação dos produtos agrícolas tanto na distribuição
para o consumo doméstico como para os portos com destino à exportação. E este é
apenas um exemplo entre as muitas deficiências do País.
A incerteza dos empresários para investir
foi retratada, mais uma vez, na queda do índice de confiança da construção da
FGV, divulgado na sexta-feira, e o segmento que indicou mais problemas foi
exatamente o das empresas de infraestrutura, que reportaram piora na carteira
de contratos. O acesso ao crédito teve a pior avaliação desde julho do ano
passado, segundo o informe da FGV.
Nesse contexto, o que faz o governo? Por
enquanto, são muitos os discursos e fartas as promessas de concessão de estradas
e outras obras. Depois das experiências desastrosas do passado na busca dos
“campeões nacionais”, como eram chamadas as empresas eleitas para receber
benesses governamentais, é compreensível o temor de que o governo do presidente
Lula da Silva volte àquele padrão de política pública. Mesmo o presidente do
BNDES, Aloizio Mercadante, foi cauteloso ao anunciar seu propósito de fazer o
banco voltar a crescer – ele disse que sua meta “não é o BNDES após a crise de
2009, que era de 4,3% do PIB”, e sim um “banco de 2% do PIB e que foi menos de
1% nesses últimos anos”.
O que o Brasil precisa para deslanchar investimentos em infraestrutura é seguir o receituário clássico: regras claras nas concessões e espaço para que a iniciativa privada tenha segurança e condições competitivas.
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