sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Fernando Abrucio* - Não haverá cidadania com racismo

Eu & / Valor Econômico

Lei de Cotas é importante, mas é preciso que os reformadores, principalmente a universidade e o movimento negro, levem esse avanço para a educação básica

O Brasil teve uma enorme perda com a morte do historiador José Murilo de Carvalho, um dos maiores estudiosos dos períodos imperial e das origens de nossa República. Foram muitas as questões tratadas por ele, mas uma lhe chamava muito a atenção: por que a cidadania se desenvolveu aqui tão lentamente e num caminho marcado por enormes desigualdades? Se quisermos homenagear essa angústia que incomodou tanto Zé Murilo, como carinhosamente era chamado, vale escolher uma das mais relevantes raízes da fragilidade cidadã do país: o racismo persistente e profundo.

A escravidão deixou marcas que foram muito além do processo de Abolição. Zé Murilo gostava muito do pensamento de Joaquim Nabuco, um abolicionista que sabia que as consequências do modelo escravocrata não sairiam tão rapidamente do DNA do país, e por isso disse: “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. No fundo, ela é a mãe de uma sociedade que não teve como base de construção um projeto de igualdade.

A Constituição de 1988 foi a maior ruptura histórica neste longo caminho de cidadania rarefeita que tanto incomodava Zé Murilo. Entre os vários avanços, e não foram poucos, derivados dessa Carta de Direitos e das legislações que vieram posteriormente no seu bojo, destaca-se o ataque ao racismo. Recentemente, a renovação da Lei de Cotas pela Câmara Federal por mais dez anos - o projeto ainda tem de passar pelo Senado - mostrou como a luta antirracista tem avançado no Brasil para as questões estruturais que causam a discriminação racial.

Junto com avanços legais, houve melhoras na atuação da sociedade contra o racismo. O movimento negro tem se fortalecido e ampliado sua pauta, assim como governos, empresas e entidades do Terceiro Setor têm cada vez mais adotado políticas afirmativas para ampliar oportunidades e reduzir barreiras à inserção social da população negra. É importante frisar esse ponto porque a cidadania se alcança combinando políticas públicas garantidoras de direitos com transformações na visão social dominante em relação à igualdade dos cidadãos. Novamente retomo Zé Murilo, que sempre acreditou no efeito das instituições, mas sabia que é preciso alcançar os valores da sociedade e de suas elites para fazer mudanças mais profundas.

Sem prejuízo da admissão dos avanços, o racismo ainda se faz presente em várias dimensões da sociedade brasileira. Os negros têm os piores salários quando comparados com pessoas com mesmo posto e/ou escolaridade (pior ainda se for uma mulher negra); são os que mais sofrem com a violência no país, particularmente a policial; ainda estão pouco representados na elite do país quando se coteja com seu tamanho populacional; e, por fim, continuam sendo os que menos têm oportunidades para ascender na escala educacional. Ressalte-se que mesmo num espaço em que sempre tiveram presença marcante, como o futebol, pululam constantemente exemplos de racismo.

O fato é que a luta antirracista precisa ocorrer em várias frentes. A primeira é da percepção social do fenômeno. Aqui acontece um paradoxo que revela o quão sorrateira é essa discriminação. Pesquisa recente do Ipec revelou que 81% dos brasileiros afirmam que o Brasil é racista, mas, ao mesmo tempo, apenas 11% admitem ter esse preconceito. Onde está, então, a origem do problema?

Diante desse paradoxo, algumas pesquisas recentes revelam que a maioria dos brasileiros quer corrigir desigualdades e injustiças vinculadas à questão racial. Uma delas, feita pelo Datafolha em março deste ano, revelou que 60% das pessoas acreditam que é necessário ter mais negros ocupando postos de chefia. A mesma pesquisa do Ipec citada anteriormente não só realça que os negros são os mais discriminados nas mais diversas situações sociais - na escola ou pela polícia, por exemplo -, como também revela um sentimento amplamente favorável a vários tipos de política de ação afirmativa.

O sentimento reparador está crescendo, mas muitas vezes ele não é capaz de enxergar as incongruências valorativas que estão na cabeça dos brasileiros. O maior exemplo está na questão da segurança pública. A maior parte da população sabe que há uma discriminação evidente da polícia em relação aos negros, sobretudo (mas não só) se morarem nas periferias e favelas dos principais conglomerados urbanos. Só que o mesmo público que aponta essa injustiça também é o que aceita ou mesmo apoia visões de policiamento em que vale a lógica do “atirar primeiro” para garantir a vida dos cidadãos, quando o resultado disso tem sido o assassinato de jovens pretos e pobres em larga escala, cometido por governos de direita e de esquerda.

No fundo, todos nos definimos contra o racismo, mas os serviços públicos, as empresas, os comércios e muitos dos cidadãos têm uma referência sorrateira e nem sempre implícita de qual cor deve ter, de antemão, um tratamento privilegiado ou de inferioridade - e a população negra ainda é vista como de segunda classe na nossa escala de cidadania, tomada como menos “igual” do que os outros, o que revela o quanto a escravidão continua entre nós.

O saudoso Zé Murilo, inclusive, tinha uma história pessoal, que depois transformou em pequeno artigo, para contar como a Justiça e o Estado brasileiros não são cegos em relação à questão racial. Dizia que encontrara, ao sair de seu sítio, uma senhora negra que estava desesperada porque seu jovem filho acabara de ser preso. Por conta disso, Zé Murilo foi à delegacia com ela e constatou que o poder público, na sua prática, define uma tipologia de cidadãos. Ele procurou entender a situação e usou a linguagem de uma pessoa com alta escolaridade, geralmente branca, e por conta disso foi tratado pelo delegado como “doutor”, o primeiro tipo de cidadão.

Depois, o delegado contou qual fora o crime: um roubo de galinhas. Relatou ainda que primeiro a polícia entrara numa casa em que havia uma senhora, que ficou desesperada com a situação, pois não sabia como lidar com a quebra de seus direitos. Logo os policiais perceberam que se tratava de “gente de bem”, pois ela era crente, o segundo tipo de cidadão - alguém que não tem o privilégio a priori de tratamento, mas que não é tratada como culpado de antemão.

Continuaram atrás do meliante, como diria o jornalismo policial de outrora, e entraram na residência mais precária daquela senhora negra encontrada pelo Zé Murilo. Lá, viram o jovem negro na sala, junto com várias estátuas vinculadas à umbanda. Pronto, pensou a equipe policial: roubo de galinhas só pode ser coisa de macumbeiro, o terceiro tipo de cidadão, geralmente preto ou pardo, que normalmente não tem a presunção da inocência a seu favor. Obviamente que a Constituição brasileira definiu um modelo de cidadania igual a todos, mas quem faz valer a lei são os valores de quem está na linha de frente das políticas públicas, bem como os representantes do pensamento mediano da sociedade, que são os políticos, apresentadores populares na mídia e outros influenciadores em larga escala. Todos esses grupos vão dizer que são contra o racismo, mas efetivamente não são antirracistas.

O processo de transformação dessa camada profunda de racismo passa certamente pela educação. Por isso a Lei de Cotas é tão importante, não só porque aumenta o percentual de pretos e pardos com ensino superior, num país em que o “diploma” tem um significado positivo para além do conhecimento embutido nele, mas especialmente em razão de criar referências para os negros mais jovens, para que estes consigam sobreviver no difícil caminho infantil e juvenil pelo qual passa a maioria da população negra.

Só que essa política afirmativa no plano educacional tem de ir além: é preciso que os reformadores, principalmente a universidade e o movimento negro, levem esse avanço para a educação básica. É preciso um currículo que trate efetivamente das injustiças raciais, do mesmo modo que é necessário ter mais negros e negras como professores(as), diretoras(es) e comandantes das secretarias municipais e estaduais de Educação. Sem se alastrar para todos os ciclos de ensino, inclusive chegando fortemente à primeira infância, o caminho das cotas será mais lento na transformação do racismo. Afinal, além de aumentar a igualdade de oportunidades, é fundamental ter ações educacionais para criar uma nova geração antirracista.

A questão racial também precisa estar mais presente em outras políticas públicas para além da educação. Os serviços públicos são um canal fundamental para aumentar a equidade na sociedade brasileira. Mas também é preciso ter agendas antirracistas que se realizem nas organizações da sociedade civil, nas empresas privadas e nas igrejas. Políticas governamentais são centrais para a cidadania, mas sua feição mais profunda depende igualmente da transformação dos valores sociais e da visão das elites de um país.

O sonho de uma cidadania mais plena foi o mote da obra de Zé Murilo. Ela melhorou nos últimos 35 anos, mas há ainda muita desigualdade, e a questão racial é um dos maiores exemplos disso. O processo de mudança antirracista será longo e múltiplo. Não obstante, perseverar nele é sair da armadilha da escravidão que nos aprisiona há séculos.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Verdade.

Daniel disse...

Excelente análise. Só faltou terminar a história do roubo das galinhas...