Eu & / Valor Econômico
Lei de Cotas é importante, mas é preciso
que os reformadores, principalmente a universidade e o movimento negro, levem
esse avanço para a educação básica
O Brasil teve uma enorme perda com a morte
do historiador José Murilo de Carvalho, um dos maiores estudiosos dos períodos
imperial e das origens de nossa República. Foram muitas as questões tratadas
por ele, mas uma lhe chamava muito a atenção: por que a cidadania se
desenvolveu aqui tão lentamente e num caminho marcado por enormes
desigualdades? Se quisermos homenagear essa angústia que incomodou tanto Zé
Murilo, como carinhosamente era chamado, vale escolher uma das mais relevantes
raízes da fragilidade cidadã do país: o racismo persistente e profundo.
A escravidão deixou marcas que foram muito
além do processo de Abolição. Zé Murilo gostava muito do pensamento de Joaquim
Nabuco, um abolicionista que sabia que as consequências do modelo escravocrata
não sairiam tão rapidamente do DNA do país, e por isso disse: “a escravidão
permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. No fundo,
ela é a mãe de uma sociedade que não teve como base de construção um projeto de
igualdade.
A Constituição de 1988 foi a maior ruptura histórica neste longo caminho de cidadania rarefeita que tanto incomodava Zé Murilo. Entre os vários avanços, e não foram poucos, derivados dessa Carta de Direitos e das legislações que vieram posteriormente no seu bojo, destaca-se o ataque ao racismo. Recentemente, a renovação da Lei de Cotas pela Câmara Federal por mais dez anos - o projeto ainda tem de passar pelo Senado - mostrou como a luta antirracista tem avançado no Brasil para as questões estruturais que causam a discriminação racial.
Junto com avanços legais, houve melhoras na
atuação da sociedade contra o racismo. O movimento negro tem se fortalecido e
ampliado sua pauta, assim como governos, empresas e entidades do Terceiro Setor
têm cada vez mais adotado políticas afirmativas para ampliar oportunidades e
reduzir barreiras à inserção social da população negra. É importante frisar
esse ponto porque a cidadania se alcança combinando políticas públicas
garantidoras de direitos com transformações na visão social dominante em
relação à igualdade dos cidadãos. Novamente retomo Zé Murilo, que sempre
acreditou no efeito das instituições, mas sabia que é preciso alcançar os
valores da sociedade e de suas elites para fazer mudanças mais profundas.
Sem prejuízo da admissão dos avanços, o
racismo ainda se faz presente em várias dimensões da sociedade brasileira. Os
negros têm os piores salários quando comparados com pessoas com mesmo posto
e/ou escolaridade (pior ainda se for uma mulher negra); são os que mais sofrem
com a violência no país, particularmente a policial; ainda estão pouco
representados na elite do país quando se coteja com seu tamanho populacional;
e, por fim, continuam sendo os que menos têm oportunidades para ascender na
escala educacional. Ressalte-se que mesmo num espaço em que sempre tiveram
presença marcante, como o futebol, pululam constantemente exemplos de racismo.
O fato é que a luta antirracista precisa
ocorrer em várias frentes. A primeira é da percepção social do fenômeno. Aqui
acontece um paradoxo que revela o quão sorrateira é essa discriminação.
Pesquisa recente do Ipec revelou que 81% dos brasileiros afirmam que o Brasil é
racista, mas, ao mesmo tempo, apenas 11% admitem ter esse preconceito. Onde
está, então, a origem do problema?
Diante desse paradoxo, algumas pesquisas
recentes revelam que a maioria dos brasileiros quer corrigir desigualdades e
injustiças vinculadas à questão racial. Uma delas, feita pelo Datafolha em
março deste ano, revelou que 60% das pessoas acreditam que é necessário ter
mais negros ocupando postos de chefia. A mesma pesquisa do Ipec citada
anteriormente não só realça que os negros são os mais discriminados nas mais
diversas situações sociais - na escola ou pela polícia, por exemplo -, como
também revela um sentimento amplamente favorável a vários tipos de política de
ação afirmativa.
O sentimento reparador está crescendo, mas
muitas vezes ele não é capaz de enxergar as incongruências valorativas que
estão na cabeça dos brasileiros. O maior exemplo está na questão da segurança
pública. A maior parte da população sabe que há uma discriminação evidente da
polícia em relação aos negros, sobretudo (mas não só) se morarem nas periferias
e favelas dos principais conglomerados urbanos. Só que o mesmo público que
aponta essa injustiça também é o que aceita ou mesmo apoia visões de
policiamento em que vale a lógica do “atirar primeiro” para garantir a vida dos
cidadãos, quando o resultado disso tem sido o assassinato de jovens pretos e
pobres em larga escala, cometido por governos de direita e de esquerda.
No fundo, todos nos definimos contra o
racismo, mas os serviços públicos, as empresas, os comércios e muitos dos
cidadãos têm uma referência sorrateira e nem sempre implícita de qual cor deve
ter, de antemão, um tratamento privilegiado ou de inferioridade - e a população
negra ainda é vista como de segunda classe na nossa escala de cidadania, tomada
como menos “igual” do que os outros, o que revela o quanto a escravidão
continua entre nós.
O saudoso Zé Murilo, inclusive, tinha uma
história pessoal, que depois transformou em pequeno artigo, para contar como a
Justiça e o Estado brasileiros não são cegos em relação à questão racial. Dizia
que encontrara, ao sair de seu sítio, uma senhora negra que estava desesperada
porque seu jovem filho acabara de ser preso. Por conta disso, Zé Murilo foi à
delegacia com ela e constatou que o poder público, na sua prática, define uma
tipologia de cidadãos. Ele procurou entender a situação e usou a linguagem de
uma pessoa com alta escolaridade, geralmente branca, e por conta disso foi
tratado pelo delegado como “doutor”, o primeiro tipo de cidadão.
Depois, o delegado contou qual fora o
crime: um roubo de galinhas. Relatou ainda que primeiro a polícia entrara numa
casa em que havia uma senhora, que ficou desesperada com a situação, pois não
sabia como lidar com a quebra de seus direitos. Logo os policiais perceberam
que se tratava de “gente de bem”, pois ela era crente, o segundo tipo de
cidadão - alguém que não tem o privilégio a priori de tratamento, mas que não é
tratada como culpado de antemão.
Continuaram atrás do meliante, como diria o
jornalismo policial de outrora, e entraram na residência mais precária daquela
senhora negra encontrada pelo Zé Murilo. Lá, viram o jovem negro na sala, junto
com várias estátuas vinculadas à umbanda. Pronto, pensou a equipe policial:
roubo de galinhas só pode ser coisa de macumbeiro, o terceiro tipo de cidadão,
geralmente preto ou pardo, que normalmente não tem a presunção da inocência a
seu favor. Obviamente que a Constituição brasileira definiu um modelo de
cidadania igual a todos, mas quem faz valer a lei são os valores de quem está
na linha de frente das políticas públicas, bem como os representantes do
pensamento mediano da sociedade, que são os políticos, apresentadores populares
na mídia e outros influenciadores em larga escala. Todos esses grupos vão dizer
que são contra o racismo, mas efetivamente não são antirracistas.
O processo de transformação dessa camada
profunda de racismo passa certamente pela educação. Por isso a Lei de Cotas é
tão importante, não só porque aumenta o percentual de pretos e pardos com
ensino superior, num país em que o “diploma” tem um significado positivo para
além do conhecimento embutido nele, mas especialmente em razão de criar
referências para os negros mais jovens, para que estes consigam sobreviver no
difícil caminho infantil e juvenil pelo qual passa a maioria da população
negra.
Só que essa política afirmativa no plano
educacional tem de ir além: é preciso que os reformadores, principalmente a
universidade e o movimento negro, levem esse avanço para a educação básica. É
preciso um currículo que trate efetivamente das injustiças raciais, do mesmo
modo que é necessário ter mais negros e negras como professores(as), diretoras(es)
e comandantes das secretarias municipais e estaduais de Educação. Sem se
alastrar para todos os ciclos de ensino, inclusive chegando fortemente à
primeira infância, o caminho das cotas será mais lento na transformação do
racismo. Afinal, além de aumentar a igualdade de oportunidades, é fundamental
ter ações educacionais para criar uma nova geração antirracista.
A questão racial também precisa estar mais
presente em outras políticas públicas para além da educação. Os serviços
públicos são um canal fundamental para aumentar a equidade na sociedade
brasileira. Mas também é preciso ter agendas antirracistas que se realizem nas
organizações da sociedade civil, nas empresas privadas e nas igrejas. Políticas
governamentais são centrais para a cidadania, mas sua feição mais profunda
depende igualmente da transformação dos valores sociais e da visão das elites
de um país.
O sonho de uma cidadania mais plena foi o
mote da obra de Zé Murilo. Ela melhorou nos últimos 35 anos, mas há ainda muita
desigualdade, e a questão racial é um dos maiores exemplos disso. O processo de
mudança antirracista será longo e múltiplo. Não obstante, perseverar nele é
sair da armadilha da escravidão que nos aprisiona há séculos.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
2 comentários:
Verdade.
Excelente análise. Só faltou terminar a história do roubo das galinhas...
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