Eu & / Valor Econômico
Questão amazônica é um crime continuado de
mais de meio século
Um certo desapontamento cercou os
resultados da Cúpula da Amazônia, em Belém do Pará, que reuniu governantes dos
países da região na segunda semana de agosto para uma definição de rumos em
face do agravamento de problemas, especialmente o ambiental.
Embora alguns países desenvolvidos estejam compreensivelmente preocupados com a questão do clima e, por isso, empenhados em estimular os países amazônicos a se envolverem mais ativamente em ações compensatórias para o desequilíbrio climático provocado também e principalmente pelos países ricos e sua alta dependência de combustíveis fósseis.
O documento final, divulgado pelo
Ministério das Relações Exteriores do Brasil, porém, mostra que a “questão
amazônica” é complexa. É extensa a lista de temas social e politicamente
problemáticos a enfrentar.
Nos debates e na documentação decorrente, a
preocupação centralizadora é a de evitar que o problema chegue ao ponto de não
retorno na questão ambiental decorrente da devastação da floresta.
Na verdade, o Brasil, ao menos, já chegou
ao ponto de não retorno se consideramos corretamente o que é a questão
amazônica. Ela não se limita ao clima e ao seu comprometimento pela ocupação
predatória que nela se deu nos últimos 60 anos, mais intensamente a partir do
regime militar.
A devastação da Amazônia a partir de 1964
foi o prêmio concedido pelo regime autoritário a um capitalismo retardatário
impregnado de anticapitalismo, baseado no acasalamento esdrúxulo de lucro e
renda da terra. Fundamento de um novo poder político, localista e conservador,
como é próprio do que decorre da propriedade fundiária, para que se perpetuasse
como modelo de poder.
A irracionalidade dessa vinculação
refletiu-se já nos anos 1970 nos efeitos do desmatamento, na disseminação do
trabalho escravo, na violência e no genocídio contra as populações indígenas,
na negação de sua condição humana como modelo de sociedade, na poluição dos
rios, na distribuição de uma pobreza iníqua a da privação de direitos aos
desvalidos.
Esse latifundismo é em boa parte baseado na
grilagem e usurpação de terras, de direito, alheias, como as de indígenas e
povos originários. A questão amazônica é consequência de um crime continuado de
mais de meio século, praticado com a lentidão e a omissão cúmplices do Estado.
Agora mesmo, na Câmara dos Deputados, uma
comissão de inquérito foi criada e atua para criminalizar as vítimas dessa
violência que legitimamente lutam pelo seu direito à terra de trabalho. Que lhe
foi garantido sucessivamente pelo Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão,
de 1755; pela Lei de Terras de 1850; pelo Estatuto da Terra, de 1964; e pela
Constituição de 1988.
O fundamento remoto do direito ao uso da
terra por parte de quem nela trabalha nos vem da Lei de Sesmarias, de 1375,
aplicável ao Brasil desde o dia 22 de abril de 1500. A concepção fundante do
direito fundiário brasileiro é a da posse útil decorrente do trabalho. Nenhuma
lei fundiária brasileira revogou essa premissa legal. Trata-se de um valor
social básico da sociedade brasileira, a valorização social do trabalho.
Várias das metas de urgência do documento
final da Cúpula da Amazônia depende de decisões de Estado, que abrangem o
compromisso da remoção da criminalidade que em boa parte é causa e agente da
questão amazônica.
Para a concepção delinquente de economia, a
destruição da floresta, dos rios e da própria terra é lucrativa, cria fortunas
com o desfrute indevido de terra alheia, mesmo as terras devolutas sob domínio
do Estado. Não é um acaso, mas um empreendimento daninho à natureza e à pátria,
porque lhe lesa o destino sobretudo de futuras gerações.
Há no documento referências à necessidade
política de combate à criminalidade ambiental e fundiária. Mas a cúpula não
levou em conta que essa criminalidade se tornou poderoso poder político, que
invadiu a estrutura do Estado - do Executivo e, sobretudo, do Legislativo.
O poder local é no Brasil o pai dos
poderes. A fúria reacionária de parlamentares das Comissões Parlamentares de
Inquérito em andamento é mais violenta do que a do machado que derruba a mata e
do que o mercúrio que envenena os rios.
O desalento com essas dificuldades, porém,
tem o contraponto de que as vítimas dessa violência estão organizadas como
sujeito coletivo de direito, na unidade de suas diferenças.
Tratadas como residuais, são as mais
habilitadas a reordenar o universo social, ambiental, econômico e político
amazônico de conformidade com os novos e criativos valores de seu ativismo de
resistência contra a coleção de injustiças que as aflige. Um novo e
transformador ser humano já nasceu dessas aflições. Não só como acólito do
presidente que sobe a rampa do Palácio.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).
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