Folha de S. Paulo
Discriminação positiva não viola o princípio
da igualdade, como já afirmou o STF
Transformar uma sociedade não é tarefa fácil,
especialmente quando o que está em disputa são as relações de hierarquia e
subordinação. Poucas ideias têm sofrido tanta resistência ao longo da história
quanto a de que todas as pessoas têm igual valor, devendo ser tratadas com
igual respeito e consideração, independentemente de suas diferenças.
Nesse sentido, é mais do que bem-vinda a
resolução em debate no Conselho Nacional de Justiça, por empenho da
ministra Rosa
Weber e do movimento de mulheres, voltada a reduzir
a assimetria de gênero nos tribunais do país.
Embora as mulheres constituam hoje 51% da população brasileira, são os homens que ocupam 77% das posições em nossos tribunais. Apesar de as mulheres terem ultrapassado os homens no ensino universitário e terem alcançado 40% das vagas na magistratura de primeira instância, muitos ainda são os obstáculos para que cheguem aos tribunais em posição de igualdade. O exemplo mais constrangedor dessa disparidade encontra-se na composição do Supremo, que ao longo de sua história secular contou com apenas três mulheres.
Em nota técnica apresentada ao CNJ, o Tribunal de
Justiça de São Paulo —o maior do país em número de processos e de
desembargadores— afirmou que nos processos de promoção "não há nem nunca
houve discriminação de gênero", apesar do número reduzido de
mulheres na corte. Hoje são 40 mulheres para um total de 314 homens.
O que a referida nota técnica não quer
aceitar ou não consegue compreender é que a discriminação de gênero ou racial
não decorre apenas de ações intencionais voltadas a prejudicar, excluir ou
privar alguém do gozo de um direito. De acordo tanto com a convenção relativa a
todas as formas de discriminação contra a mulher quanto com a relativa às
discriminações baseadas na raça, ambas ratificadas pelo Brasil, também são consideradas
discriminatórias as condutas, práticas ou processos cujo "resultado
prejudica ou anula o reconhecimento, gozo, ou exercício" de direitos e
liberdades pela mulher ou por grupos racialmente discriminados.
Nesse sentido, reconhecer que há discriminação
em uma instituição não significa afirmar que aqueles que a dirigem sejam
racistas ou machistas ou misóginos. Mas sim que as práticas daquela instituição
têm imposto um ônus desproporcional a esses grupos. Trata-se da tese da
discriminação indireta, já reconhecida pelo próprio Supremo.
O remédio para lidar com esse tipo de
discriminação indireta é criar programas especiais voltados a romper essas
inaceitáveis assimetrias baseadas no gênero ou na raça. Conforme as referidas
convenções, a discriminação positiva, voltada à equiparação de grupos
historicamente discriminados, não viola o princípio da igualdade, o que também
já foi reafirmado pelo STF em
inúmeras circunstâncias. Sem isso, dificilmente romperemos as trincheiras
institucionais da desigualdade.
Não é mera coincidência que essa questão e
tantas outras, como o aborto e
o marco
temporal, de enorme importância para a transformação da sociedade
brasileira na direção da construção de uma sociedade mais "livre, justa e
solidária", tenham sido pautadas por Rosa Weber, à frente do Supremo e do
CNJ.
A sobriedade, integridade, rigor e o
compromisso visceral e humanista com as promessas feitas pela Constituição são
apenas algumas virtudes que marcaram a trajetória dessa mulher pelo nosso
sistema de justiça.
Que esse legado inspire todas aquelas e
aqueles que têm a responsabilidade de aplicar a lei no Brasil.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
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